HH Magazine
Ensaios e opiniões

Enquanto o mundo explode: “O som ao redor” de Kleber Mendonça Filho como crítica ao sonho moderno

“Isso aqui não é São Paulo e Belo Horizonte não, isso aqui [aconteceu] aqui [em Recife]. É a área da gente”. A frase enunciada pelo segurança Clodoaldo (Irandhir Santos) ao se referir ao assassinato de um companheiro de mesma profissão dá o tom da resignação do personagem na trama “O som ao redor” do diretor Kleber Mendonça Filho. Vivendo (ou sobrevivendo) numa Recife que se modernizou tanto quanto as outras grandes capitais, os pobres homens agora encaram formas de violência que até então só sabiam que existiam nas grandes metrópoles. O passado não permitiu experenciar a violência que o desenvolvimento metropolitano trouxe para eles. Nesse sentido, o que catalisa a tragédia dessas pessoas comuns é a sua própria consciência histórica, fruto de um mundo cada vez mais acelerado e que os distancia de seu “lar” (ou passado orientador).

Antes de dar prosseguimento a essa reflexão, é necessário estabelecer outros pontos que fundamentam a obra lançado em 2013. Primeiramente, o filme do diretor pernambucano é uma clara alusão ao Brasil contemporâneo, onde personagens de uma classe média urbana vivem em suas bolhas privadas pautando sua própria existência pela força do tédio, a necessidade do consumo e, consequentemente, a garantia de segurança – inevitabilidade central da configuração urbana brasileira desde seus primórdios. A estrutura social se completa a partir de uma camada trabalhadora formada por empregadas domésticas e outros trabalhadores informais, como os próprios seguranças, flanelinhas e vendedores de CD’s piratas. Por fim, no topo da pirâmide social está o representante da estrutura patriarcal brasileira (dessa vez, atualizada), o velho Francisco, herdeiro de senhores de engenho e da economia escravista, dono de grande parte dos imóveis da rua onde se passa a trama, e símbolo máximo de um passado-presente, aquele que se enraíza no aqui e agora.

Temporalmente a obra se articula pela mescla do antigo e do contemporâneo: De um lado, o passado agrário, exposto pelas fotos selecionadas pelo diretor, que tomam a tela logo nos primeiros minutos do filme. Imagens que remetem ao distanciamento bucólico; a calmaria e o silencio da pobreza do semiárido; a casa-grande, nosso passado ainda vivo. Do outro, o contemporâneo, com seus prédios altos que escondem parte da vista do céu; os vários ruídos e barulhos, emanados por aviões, eletrodoméstico, ou mesmo pela tensão que se oculta na aparente calma do lugar, mas insurgente assim que os conflitos sociais vêm à tona, como é o caso do flanelinha que risca o carro de uma senhora mal-educada, ou os surreais gritos que surgem quando João, jovem herdeiro da casa-grande, passeia com sua parceira pela área que antes fora parte da estrutura escravagista brasileira. O contemporâneo é o falso silêncio, que esconde o caos permanente por meio da promessa de segurança, ou, temporalmente falando, de distanciamento do passado e progresso das condições de vida. Por esse ângulo, a cena final conduz o telespectador a perceber que em algum momento o que está por “debaixo do tapete” surge na forma de uma impiedosa explosão, rompendo com a aparente calma.

Segundo Ivone Daré Ribeiro, as tensões de classe na trama devem ser analisadas a partir da realidade inóspita enfrentada pelos mais pobres nas transformações e continuidades do Brasil agrário em Brasil urbano:

Não se pode mais falar que esses trabalhadores [informais], muitos dos quais deixaram o campo movidos pela ilusão de ascensão social na cidade, não estejam integrados ao país ou a comportamentos e valores urbanos. Só que sua integração implica e reforça a manutenção da velha estrutura de iniquidades originadas de um país agrário, acrescentando-lhe novas pitadas. Sem os vínculos da dependência da família patriarcal, deixados de lado há muito, ficam ao Deus dará e exploram as potencialidades do mercado onde elas aparecem, lícita ou ilicitamente. (RIBEIRO, 2015, p. 159)

A par desses “dois Brasis” (tomo emprestado aqui o título do célebre livro de Jacques Lambert), diferenciados ainda mais nos processos de modernização do país, a tradição intelectual brasileira buscara entender nossas características culturais e estruturais a partir da chave moderno/antigo. Assim, Sergio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Gilberto Freyre, entre outros, introduziram novos panoramas ao debate sobre as características do país. Captadas, elas orientam a obra de Kleber Mendonça Filho, que (assim como Lambert) se vale das perspectivas “etapistas” do desenvolvimento para os países periféricos. Em outras palavras, o filme do autor pernambucano apoia-se em certa proposição muito comum à história brasileira para construir seu argumento: a de que uma etapa de nosso desenvolvimento, rumo a esteira do progresso do capitalismo global, perpassaria por subverter algumas lógicas remanescentes do Brasil colonial e imperial por meio de um projeto nacional-desenvolvimentista, industrializador, urbanista e de tendência universalista.

O sonho moderno do futuro melhor aliena frente a incômoda realidade brasileira: o passado se acumula no presente, numa relação promíscua entre o tradicional e a moderno. A lógica patriarcal e clientelista do velho impõe a autoridade, é necessário “beijar sua mão”. Entretanto, a estranha simbiose da temporalidade nacional dispõe da versão oposta: a ideia de modernidade que passa por cima e cerceia, mascarando tempo e espaço, onde o primeiro se nutre de um falso rompimento com o passado, além de um processo de aceleração do tempo que desumaniza; enquanto a luta pelo espaço agride os corpos e modifica locais a bel prazer, para “inglês ver”, como é o caso do Rio de Janeiro na Primeira República, cidade modelo inspirada em Paris, o ápice do progresso na época. Ou o mesmo Rio de Janeiro em 2016, quando as Olimpíadas fizeram ruir localidades inteiras que estavam aquém do mesmo progresso – estética, moral e economicamente.

É possível imaginar que o cronótopo brasileiro dispõe das condições para o que o historiador alemão Hans Gumbrecht chamou de “presente amplo”. Por um lado, o progresso não garantiu a prosperidade geral, limitando os horizontes de expectativa positivos e as perspectivas de futuro, seja de uma classe média entediada, apetecida pelo consumo e por prazeres rápidos, ou de trabalhadores informais que vivem inundados pelo cerco da violência e não podem retornar à simplicidade do passado. Por outro, os passados se acumulam, não oferecendo orientação ou mesmo identificação, mas um referencial saudosista, anacrônico (representado por Anco, filho de Francisco, no filme). Segundo o teórico alemão, viveríamos assim em um presente estendido:

O amplo presente, com seus mundos simultâneos, ofereceu sempre e já, demasiadas possibilidades, por isso, a identidade que possui – se possui alguma – não tem contornos definidos. Ao mesmo tempo, o fechamento da futuridade torna impossível agir, pois nenhuma ação poderá ocorrer onde não houver lugar para projetar sua realização. O presente em expansão dá espaço para o movimento em direção ao futuro e ao passado; mas esses esforços parecem redundar no regresso ao ponto de partida […]tal movimento imóvel frequentemente revela estar estagnado, revela o fim do propósito dirigido. (GUMBRECHT, 2015, p. 15)

Pode ser questionável se o passado em “O som ao redor” não serve de orientação, visto que ele traz consigo o elemento da autoridade, e, consequentemente, de estabilidade. Assim, esse passado em sua empreitada ao presente está acompanhado de seus modos, cultura e vivência, mas o que poderia significar uma expansão para outros mundos possíveis por meio de um modelo de “conservação crítica”, na verdade significa um fechamento para a ação, visto que as condições de dominação (explicitadas criticamente no filme a partir da representação das classes urbanas) se estabelecem na conjuntura material e intelectual da vida presente. Em outras palavras, o horizonte de expectativa (projeto de futuro) na contemporaneidade urbana está congestionado pela insegurança, sendo que o próprio passado também já não é mais passado pela sua mescla com os elementos modernos limitantes. Dessa maneira, o que nos resta vai de encontro ao embargo desse caráter caótico da modernidade – tragicamente sem sucesso.

 

 

 


REFERÊNCIAS

RIBEIRO, Ivone Daré. O som ao redor: sem futuro, só revanche? In: Revista Novos Estudos. Editora Cebrap, 2013. p. 159

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso Amplo Presente: Tempo e Cultura Contemporânea. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo: UNESP, 2015. p. 15

 

 

 


Créditos da Imagem: Cena do filme O Som ao Redor

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “56”][/authorbox]

Related posts

O cavalo

Editor Colaborador
5 anos ago

Necropolítica e a visão do favelado numa guerra não declarada

Luana Brunely da Silva
8 meses ago

Serenidade para com a História

Pedro Almeida Candido Gondim
2 anos ago
Sair da versão mobile