Um fantasma percorre América Latina. É o fantasma do acontecimento

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As últimas semanas têm mudado a atmosfera catatônica em que a nossa experiência do mundo vem se desdobrando. No clima de saturação de “novidades” que nada mudam nem nada alteram, e no marco de uma crise econômica que – tendo seu ponto de início na borbulha imobiliária nos Estados Unidos no ano 2008 – não se resolve, as burguesias procuram o resguardo dos seus interesses, em concordância com o desdobramento dos conservadorismos religiosos. Aliás, as apostas pós-neoliberais como as do chavismo na Venezuela, o correismo no Equador, o kirchnerismo na Argentina, o evismo na Bolívia e o lulismo no Brasil, vêm confrontando uma crise de legitimidade e um processo de desgaste que se manifesta de diversas formas.

Aproveitando este cenário, o espectro neoliberal retorna com força tentando impor e espalhar as suas políticas em todo o orbe, e não apenas nos países periféricos (a rebelião em Hong Kong e as greves na França são um exemplo disto). Do mesmo modo como aconteceu no Sacudón na Venezuela – em 27 e 28 de Fevereiro do ano 1989 –, o aumento das passagens no transporte público e a aprovação do pacote de medidas neoliberais acordado entre o governo do Equador e o Fundo Monetário Internacional (FMI), no passado mês de outubro, gerou uma série de protestos impulsionados por motoristas, estudantes e docentes, os quais foram fortemente reprimidos pelo governo Lenin Moreno. Na tentativa de conter os protestos, o governo decretou um Estado de exceção que, ao invés de dissipar a onda de distúrbios, detonou uma revolta popular imprevisível. O toque de recolher, as detenções arbitrárias, as mortes e desaparecimentos não conseguiram conter a explosão popular (estudantes, trabalhadores, camponeses e indígenas) que foi se intensificando na medida em que acrescentava o espírito de desobediência e desafio por parte da população. Barricadas, tomadas de rua, paralizações, saques, arcos e flechas, além da sua duração e extensão (o caráter nacional), foram o traço distintivo da rebelião.

Uma inversão nas relações de poder marcou o ritmo da explosão acontecimental no Equador. Uma comunidade indígena deteve uns oficiais das Forças Armadas e, a partir dali, o movimento indígena de todo o país começou a se deslocar em todos os cantos do território para acabar na tomada da cidade de Quito. Apenas com as suas flechas, os seus arcos e a sua coragem, os indígenas confrontaram e conseguiram neutralizar às forças repressivas do Estado. Logo, o governo Moreno foi obrigado a abandonar a capital – mudando sua sede para Guayaquil, uma cidade marcadamente racista e aristocrática – e, sob um contexto de dualidade de poder, acabou acolhendo a exigência fundamental da rebelião, ou seja, a anulação do decreto 883 que continha o pacote de medidas neoliberais acordados com o FMI. A exigência da rebelião, no entanto, não impediu a restauração do governo que, imediatamente após a negociação, impôs um novo decreto junto com o desdobramento de uma onda repressiva da qual pouco se sabe pelas mídias e redes.

No começo do outubro, a cidade de Santiago, no Chile, acordou com o aumento nas tarifas das passagens no transporte público. Os estudantes resistiram à medida com a evasão do pagamento das passagens e replicada pela população como forma de protesto e de resistência, acabando, aos poucos dias, num enfrentamento violento com os “carabineiros” nas instalações da rede subterrânea de transporte. Em resposta, o governo decidiu criminalizar as ações de protesto com medidas judiciais, o que acrescentou o descontentamento geral da população, que saiu massivamente às ruas em várias cidades do país. Na tentativa de acalmar o clima de instabilidade, o governo decretou um estado de emergência que acabou por detonar a rebelião popular que ainda hoje está em curso.

Por serem protestos contra o aumento das passagens e contra a repressão, a rebelião chilena foi tomando cada vez mais um caráter propriamente político. A exigência deixou de ser apenas pela derrogação do aumento das passagens e das medidas repressivas e judiciais, para reivindicar mudança no texto constitucional que, ainda hoje, mantém fundamentos estruturais e programáticos da ditadura de Pinochet. Dali para a frente, as medidas repressivas, cada vez mais agressivas, do governo Piñera, não tem podido conter a explosão social e política que, aliás, tem se convertido num espaço de produção sentimental e estética sem precedentes.

Desta forma, o caráter acontecimental da rebelião chilena não se reduz apenas ao caráter multitudinário da irreverência popular diante do poder do Estado. O próprio povo chileno tem como precedente a rebelião estudantil pela gratuidade do ensino, acontecida no ano 2011. Também não se reduz à dualidade de poder que vem pautando a dinâmica social e política nesse país. Além de tudo isso, o que há é a não submissão da força disruptiva aos limites estabelecidos pela engrenagem superestrutural que se desenvolve no âmbito do possível. Há, aliás, uma avalanche criativa de novas possibilidades e experiências sociais, estéticas e sentimentais.

A pulsão tanática mobilizada pelo governo Piñera através de suas políticas de terror[1], não tem conseguido neutralizar nem dissipar a explosão poética da rebelião chilena. Os fatos trágicos gerados pelo terrorismo de Estado, como por exemplo o vazamento dos olhos dos manifestantes, tem virado símbolo: o tapa-olho é, hoje, um símbolo que, num mesmo ato, denuncia e desafia. A canção das meninas de Lastesis, que denuncia a violência da sociedade patriarcal e a do Estado, tornou-se viral e hoje constitui-se num hino para as mulheres no mundo. Orquestras sinfônicas fazem parte da vertigem criativa do acontecimento chileno. A música de Vítor Jara “O direito de viver em paz” é interpretada tanto em multidões (por orquestras, agrupações e pessoas) quanto na atitude desafiante de uma cantora de ópera na sacada do seu apartamento, ou na solidão de um trompetista enquanto os carabineiros passam na sua frente. Enfim…

No mês de novembro, e sob um contexto histórico, social e político marcado pela guerra civil, a população na Colômbia se jogou massivamente nas ruas acatando a convocatória de paralização nacional contra o pacote de medidas econômicas estabelecidas pelo governo Duque. Da mesma forma como aconteceu no Chile e no Equador, a repressão empreendida pelo governo colombiano através dos Esquadrões Móveis Antidistúrbios (Esmad) catalisou a revolta popular, ao invés de neutralizá-la, ou que derivou numa intensificação dos protestos e, em resposta por parte do Estado, no decreto de toque de recolher. Conscientes do perigo que significa protestar na Colômbia, sobretudo sob um estado de sítio, a população em geral armou-se de coragem, desafiando o governo em manifestações multitudinárias, paralizações e panelaços. Isto, no contexto colombiano, é bem significativo e denota uma novidade sem precedentes, tendo em vista a tradicional política de terror e de extermínio que o Estado tem assumido contra os movimentos e organizações sociais, sindicais, estudantis, camponesas e de direitos humanos.

Porém, estas emergências acontecimentais não começaram em outubro. No mês de setembro o Haiti foi protagonista de um levante popular – que ainda hoje se mantém – cujo detonante foi a escassez de combustível e a falta de acesso aos serviços básicos como o transporte público, a eletricidade e a água. A partir de então, barricadas e manifestações multitudinárias tem mantido as ruas bloqueadas e intensificado a situação de instabilidade social e política no país. Em resposta, o governo assumiu uma ofensiva repressiva cujo saldo em número de mortos supera as quarenta pessoas. No caso do Haiti, a rebelião exige o derrocamento do presidente Jovenel Moïse e, ainda mais, a mudança radical do sistema político. Diferentemente das outras emergências insurrecionais, a rebelião haitiana não tem tido a mesma visibilidade midiática.

Finalmente, a situação na Bolívia também é revestida de traços acontecimentais. O clima de instabilidade política gerado pela irregularidade do processo eleitoral presidencial, e que derivou num golpe de Estado impulsionado pela burguesia boliviana, a igreja evangélica e um importante setor dos militares, abriu uma fissura através da qual emergiram atores, forças e vozes até então ocultos pela lógica da polarização política. Vozes do movimento indígena e do movimento feminista conseguiram fazer visíveis suas denúncias, posicionamentos e perspectivas diante do processo de degradação das conquistas obtidas após a guerra da água no ano 2000 e a guerra do gás no ano 2003. Enquanto Evo Morales conseguia sair do país e se refugiar no México, camponeses, estudantes, operários e indígenas, especialmente na cidade de El Alto, resistiam e confrontavam o golpe de Estado nas ruas. No entanto, o poder de fogo e superestrutural dos golpistas conseguiu se impor, deixando um saldo de vários mortos, centenas de detidos, uma feroz política repressiva e a instauração ilegítima de Jeaninne Añez como presidenta da República.

O que faz estas rebeliões serem acontecimentos? Entendo por acontecimento a irrupção intempestiva do impossível dentro da ordem superficial do mundo. Nesse sentido, e especialmente nas rebeliões no Equador, no Chile e na Colômbia, o que destaca é o fato delas serem um ponto de inflexão no panorama social e político atual. Elas constituem emergências impensadas e impossíveis nos seus contextos de “origem”. No entanto, e para além da sua capacidade de quebrar a ordem e de serem imprevisíveis, elas destacam-se sobretudo pela sua singularidade no interior de um contexto sentimental e político marcado pelo desgaste e a catatonia. Nos espaços em que emergiram, estas irrupções abriram um novo plexo de possibilidades que ultrapassou e ultrapassa os limites estabelecidos pelo que, até agora, constituía-se, com seus distintos matizes, no referente hegemônico das estratégias dxs oprimidxs, a saber, as apostas pós-neoliberais encarnadas no chavismo, o lulismo, o correísmo, o kirchnerismo e o evismo. O que se destaca, pois, é o caráter independente das rebeliões no Equador, Chile e Colômbia com relação à pauta destas referências pós-neoliberais.

Estas rebeliões caracterizaram-se, sobretudo, pelo fato de não ficarem submetidas às prescrições das organizações partidárias destas esquerdas pós-neoliberais nem à engrenagem superestrutural da institucionalidade política. Isto não se traduz, contudo, numa ausência de perspectivas de caráter programático, mas na concorrência de estratégias, até então ocultas, na disputa pela orientação emancipatória da força disruptiva destas rebeliões. No caso do Chile, especialmente, e talvez como produto do aprendizado do que aconteceu no Equador, a rebelião mantém sua desconfiança com relação às tentativas de conciliação e não abre mão nem faz concessões aos oferecimentos feitos pelo governo Piñera.

No entanto, alguns riscos ameaçam a potencialidade disruptiva e emancipatória das emergências que concorrem e convulsionam a nossa América hoje. Em primeiro lugar, elas correm o risco de serem absorvidas pela normalização e o desgaste no interior do regime de organização neocolonial e neoliberal que vem se impondo nos nossos países. A força intempestiva e a quebra da ordem e do espírito das resignações – que até agora vinha orientando os desejos e perspectivas dos setores sociais oprimidos –impulsionadas pelos protestos, manifestações, barricadas, greves e paralizações em distintos pontos da América Latina, pode tender para um processo de normalização e de hábito se estes não levam para além toda a explosão criativa de desejos, imagens, afetos, formas de luta e relações que têm produzido. Em segundo lugar, estas emergências acontecimentais correm o risco de serem dissolvidas, banalizadas e neutralizadas na dinâmica de seleção, produção, reprodução e despejo do que “acontece” por parte das mídias e redes sociais. Elas correm o risco de serem uniformizadas no regime das simulações[2], ou seja, de terem dissolvida e igualada a sua autenticidade no interior do espectro das “novidades” mediáticas. Desta forma, uma vez que vêm à tona e diante da impossibilidade de serem ocultos, estes acontecimentos correm o risco de serem cooptados e domesticados no fluxo das redes sociais e, logo, despejados.

Lembro do filme de Woody Allen, To Rome with love. Nele Roberto Begnini encarna o Leopoldo, um personagem nulo e chato que, do nada e sem razão nenhuma, vira famoso graças às mídias. Mas a fama dele vai embora da mesma forma em que ela havia surgido, e a figura de Leopoldo é substituída por outra, ficando, pois, no esquecimento. A novidade trivial alimenta as mídias e gera uma espécie de ebriedade e euforia instantânea que é substituída por outra antes de se dissiparem os efeitos da anterior. A autenticidade acontecimental das rebeliões na nossa América é ameaçada pela possibilidade de ser encaixada nesse regime de produção artificiosa de “novidades” simuladas.

Assim, a surpresa acontecimental acaba por ser absorvida pelas foices da voragem mediática. Frente à necessidade de visibilizar e espalhar pelos meios e redes sociais a novidade disruptiva que abriu e reconfigurou o espectro de possibilidades hoje, as rebeliões no Chile, Equador, Haiti e Colômbia, bem como as lutas de resistência popular e indígena que hoje confrontam o golpe de Estado na Bolívia, correm o risco de: 1) serem reduzidas à “novidade” fátua que alimenta o movimento das mídias e, logo depois 2) deixarem de ser “notícia” e ficarem apagadas no repertório narrativo do que estas mídias reconhecem como o que “acontece”.

O Equador deixou de ser notícia e, enquanto as mídias e redes se debruçam na busca frenética de “novidades”, o Estado pune a ousadia disruptiva dos estudantes, trabalhadores e povos indígenas com uma forte política repressiva. Centenas de ativistas e líderes de movimentos sociais, estudantis e de esquerda, muitos deles vinculados ao ex-presidente Rafael Correia, têm sido perseguidos e presos sob acusações que apontam para a sua criminalização e conexão com o crime organizado e, mais ainda, para a consideração dos protestos de outubro como atos de terrorismo.

Haiti, cujo povo foi o primeiro em se rebelar e cujo impacto mediático foi bem menor ao do Equador, Chile, Colômbia e Bolívia, se mantém numa situação de instabilidade e exceção. Um presidente sitiado na casa do governo, barricadas, ruas bloqueadas, greves, já formam parte do cotidiano lá, e a exigência geral pela renúncia do presidente converteu-se em bandeira e ponto de consenso nos setores de oposição ao regime político.

Os protestos e paralizações multitudinárias no Chile não abandonam o espaço público nem abrem mão das suas exigências, embora a política repressiva do governo tenha se intensificado: soda cáustica na água usada pela polícia antimotim, estupros, desaparições forçadas, assassinatos, centenas de detidos, centenas de pessoas com os olhos mutilados, criminalização dos protestos, vêm sendo parte do coquetel repressivo.

Há quase um mês que se iniciou o paro nacional na Colômbia e os protestos multitudinários continuam ocupando as ruas e marcando os ritmos das tensões sociais e políticas nesse país, para além das políticas de terror que historicamente têm definido as práticas repressivas do Estado.

O silencio midiático sobre a Bolívia, após a consolidação do golpe de Estado, oculta o grande número de detenções arbitrárias e de perseguições a líderes sociais e políticos que durante vários dias se mantiveram nas ruas resistindo o golpe. Todo isso acontece enquanto o governo usurpador de Jeaninne Añez consolida o retorno tanto das políticas neoliberais quanto do conservadorismo evangélico.

As ruas na França voltam a se esquentarem com novas jornadas de protestos e greves gerais, e em Hong Kong a juventude irrompe de novo, mantendo o clima de instabilidade política e social no país.

No cenário de tensões e de resistências gerado pela disputa entre o espectro neoliberal e o espectro emancipatório do acontecimento, corresponde a nós escovar a contrapelo as narrativas mediáticas a partir das quais nos chega e se divulga o que está “acontecendo”, não apenas na nossa América, mas no mundo. Auscultar e mantermos vigilantes sobre os processos que se abriram com estes acontecimentos que surpreenderam o cenário social, político e estético no nosso tempo é, talvez, uma das nossas tarefas fundamentais.

 

 

 


NOTAS

[1] Vazamento dos olhos dos manifestantes produto dos disparos com balas de borracha, uso de soda cáustica na água contra os manifestantes, centenas de mortos e desaparecidos, milhares de detidos… Enfim.

[2] Chamo regime de simulação a esta produção artificiosa de novidades triviais, em oposição à produção imprevista, originária e autêntica do acontecimento.

 

 

 


Créditos na imagem: Movimentos sociais protestam na Bolívia. Reprodução Instagram.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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