Na rua de uma importante cidade brasileira encontrava-se uma casa grande em estilo normando. Residência, local de encontros, de música, de festas e de livros, muitos livros. Tantos, que certa vez, saturado de leituras, o dono deles desinteressado desse “vício”, os distribuiu entre amigos antes de partir para o interior do país. Na casa residia um escritor muito conhecido pelo uso de um monóculo, talvez um modismo de sua juventude. Mais tarde os trocou por outros, de aros arredondados, cujas fotos de outrora não me deixam mentir. Antes de residir na última casa da rua, passou um tempo na Alemanha. Nas rodas de amigos, já de volta ao Brasil, quando mergulhado muito fundo em suas viagens etílicas, cantava em alemão e contava “causos” da dona da pensão de estudantes que o abrigou naqueles anos. Do alto de seus 1,78m, um senhor, pai de 7 filhos, que gostava muito de cigarros e uísque, desaba. E como gostava de cigarros! Eram em média dois maços por dia. Até o fim não os abandonou. Gostava dos franceses, mas na falta deles, os nacionais o saciavam. O próprio médico que o cuidava admitiu que o proibir de fumar seria inútil. “Não se considerava supersticioso, embora não usasse marrom ou fumasse o 13º cigarro do maço. Gostava de viajar de avião e viajou muito. A trabalho ou lazer, conheceu quase a Europa inteira e muitos países da América, do Sul e do Norte. Não era muito religioso e alegava que a fé de sua mulher equilibrava essas contas com o mundo desconhecido. Tinha pavor da morte e não gostava de passar pelas portas de cemitérios.

Pouco antes havia acordado e tomado café como de costume. Naquela época se encontrava acometido por uma forte pneumonia, agravada por um câncer pulmonar, possivelmente resultante dos cigarros que fumara durante toda a vida, e assim a sombra da morte que tanto detestava o acompanhava diariamente. Informou ao enfermeiro que gostaria de ir do quarto para o escritório. Encontrava-se disposto naquela manhã de sábado. Mesmo com a saúde debilitada, trabalhava em seus escritos, ao que parece três ou quatro livros já iniciados. Na aconchegante sala, folheava jornais e conversava com os familiares. No curto trajeto o apagar das luzes. O escritor subitamente cai para trás. Seu coração para de bater.  Rádio e televisão anunciaram que havia desaparecido “o homem cordial”, nobiliaria que carregou a vida toda.

O curioso é que alguns dias antes ele havia deixado sua cama e descido para almoçar. Não imaginava que seria a última vez que realizara tão simples e prazeroso gesto.  À mesa encontravam-se: um futuro presidente, um deputado, um religioso e um de seus filhos, um conhecido compositor. Falaram de política, eleições, coisas sérias para aquele momento do país, que há décadas sofria as agruras da repressão. Eis que em meio as elucubrações sobre os destinos pátrios, o escritor, sempre avesso às formalidades, cantarola “Sassaricando”, conhecida marchinha carnavalesca, mas com um toque de sua irreverência: a cantarolou em latim!

 

2. Morreu em trânsito, entre o quarto de dormir e o escritório, local da agitação intelectual. Avesso às formalidades, preferiu que em seu velório não o rodeassem de flores, velas e nem que tocassem música, muito menos que se fotografasse ou que fizessem imagens para televisão. Um dos carros fúnebres, o que levaria coroas e flores, retornou vazio. Sabia que um de seus filhos causava furor por onde passava. Na sua morte não foi diferente. Preferiu a cremação e dela esvair-se no tempo e no espaço como pó a ficar imóvel, preso em uma caixa de madeira esperando o tempo fazer o favor de decompô-lo. Os jornais no dia seguinte informavam que o velho escritor seria cremado no Cemitério da Vila Alpina. Além de amigos e familiares, muitos curiosos aglomeraram-se em frente à Capela, não para solidarizarem-se em momento tão difícil, antes para verem seu filho ilustre. Dentre os curiosos, talvez, ninguém soubesse quem fosse o defunto! – “Perdi meu melhor amigo”! cansou de ouvir o filho durante as condolências. Ficara de fato arrasado. Uma revista de fofocas registrara dias depois, que após finalizada a cremação, o compositor entrou em um carro que o levaria dali e não mais conseguira reprimir o choro, que contido, durante todo o tempo, agora escorria como água de cachoeira. Passado o tumulto, uma bênção final foi dada por um frei amigo da família e importante dominicano, crítico e bastante interessado pelas aflições políticas daqueles anos. “Vamos beber para homenageá-lo”, disse em seguida outro amigo a uma emissora de TV!

O religioso conhecia bem o finado escritor. Em suas palavras: “Os mansos terão o reino do céu, os aflitos serão consolados…Para um homem anticonvencional como foi o nosso querido amigo e pai, uma oração anticonvencional”. A viúva, com as mãos entrelaçadas próximas do coração, em permanente oração ouvia as palavras do frei: “Conhecemos os frutos, as sementes, seus filhos, sua obra. Mais do que ninguém ele nos ensinou a ler a história do Brasil com uma leitura pela ótica dos pequenos, dos humilhados”. Durante a fala, um admirador anônimo do morto sabia muito bem do que o religioso estava falando. Ele mesmo já havia presenteado cinco de seus amigos com as obras do falecido.

 

3. Corria o ano de 1982 e o velho escritor morria sem experimentar a desventura de ver completado mais um ensaio, não de seu punho sobre a nossa história, mas aquele, da estupidez humana, que é essa “guerra já em princípio nos mares do sul”. “Foi bom para ele”, dizia um amigo em nota na imprensa, “homem de sentimento, profundo conhecedor da alma brasileira”. Talvez um dos grandes problemas de quando morrem pessoas queridas seja a lembrança construída por aqueles que ficaram. Claro que as qualidades serão rememoradas. Porém, o que o velho escritor não sabia era que seus pares, outros intelectuais o transformariam em um quase mártir das letras brasileiras.

Lembrando muito as carpideiras nordestinas, tão bem descritas por um grande amigo seu, um desses necrológios saídos na imprensa assim dizia: “quando vi sua morte temi pelo desfalque irreparável de sua ausência. Morre um homem de espírito, um monge, que teve sempre os olhos abertos para os problemas do mundo, sem perder o sentido de nossa vocação, de nosso pendor para o convívio harmônico com os outros povos”. O mais surpreendente é que quem o escreveu não o havia conhecido. Mas seguia: “Pessoalmente, lamento as oportunidades, não poucas, que me fugiram de conhecê-lo de perto. Pois, admirador de suas ideias, da sua lucidez intelectual, metei em mim aquela volição natural que os gregos tanto enfatizavam de se conhecer não apenas as ideias de um homem, mas o homem.”

Vivendo entre os livros, recolhido no acalanto de sua vasta biblioteca, não deve ter tido arrependimentos do que fez, seguia o necrológio. Esquecendo seus triunfos, suas glórias, consubstanciou-se no filho, para dizer com orgulho e humildade: “hoje sou apenas o pai de um conhecido compositor”. Misto de modéstia oratória e orgulho paterno. Um outro chegado, também soltou nota em importante revista semanal. Recordando o morto, contou de seu desleixo para com os meandros acadêmicos fruto de sua personalidade avessa a protocolos. O escritor havia chegado atrasado para uma banca da qual era membro arguidor. Vestia paletó, não de cor marrom que tinha repúdio, compondo o conjunto, uma gravata colorida. Empunhava flores em uma mão e o trabalho do candidato na outra. Mantinha um ar tranquilo. “Qual a tese de hoje?”, perguntou na porta do prédio da faculdade em que lecionava havia pouco tempo. “A do professor fulano”, responderam. “Qual?”, repetiu intrigado! “Aquela sobre o período republicano”, veio a resposta. Resolvido o impasse de onde seria a sabatina, entrou e fez uma arguição memorável, saborosa e pertinente. Nem o candidato, nem ninguém se deu conta de que ele sequer sabia o tema e a pessoa que iria encontrar. Ou por outra: vai ver tinha até lido a tese!

O mais interessante desses pequenos relatos póstumos é que todo mundo quer ter o prazer de dizer que conviveu com o morto, que foi o seu melhor amigo, o mais confidente, que frequentava a sua casa, etc. Uma espécie de saldo simbólico de prestígio. Não obstante, esses depoimentos construíam imagens divinas do homenageado. Aqui uma, mistura de intimidade, poesia e santidade: “Embora me ligasse ao grande companheiro o sentimento de admiração e da amizade, quase não nos vimos nos últimos anos. Basta dizer que foi em Amityville, nos arredores de NY, na residência de Ernesto Guerra da Cal, em 1966, depois de termos estado em Boston, na Universidade de Harvard, que nos encontramos pela última vez. Estou a vê-lo na pequena enseada ao fundo da casa, olhando as águas tranquilas, e é essa a imagem que dele ficou, como no colorido de um retrato de corpo inteiro. Mas o certo é que continuei a conviver com o escritor, nos anos subsequentes, e com a devida frequência, sempre que tirava um de seus livros da estante, para voltar a caminhar com ele, recolhendo-lhe a dupla lição- a de seu saber e de sua vida cordial”. Se fosse o depoente cristão declarado, poderíamos supor que livro em questão pudesse ser a bíblia.

 

4. Passada uma semana de sua morte, as homenagens concentravam-se agora na missa de sétimo dia. O mesmo frei, que com ele havia almoçado, e que confortara a família no velório e na cremação seria o responsável pela celebração religiosa, que aconteceria no Convento dos Dominicanos. Da família compareceram quase todos. A viúva e seis, dos sete filhos. Completando os presentes, muitos amigos. Não foi uma missa convencional. A começar pela simplicidade, seguida de música, não aquelas carismáticas de evocação à Deus, mas as de seu filho, músicas das quais gostava muito e que refletiam as aflições do povo, seus costumes e o cotidiano da “gente humilde”, dos trabalhadores, etc. Mesmo assim, a liturgia fora seguida à risca. Nas primeiras fileiras encontravam-se os familiares, o filho famoso estava acompanhado de sua esposa, grande atriz de teatro e televisão. Parecia dentre os outros, o filho mais abatido.

As falas do frei mencionaram os escritos do morto. Afinal, como amigo deve ter sido também um leitor de suas linhas. Livros que evocavam o nosso passado profundo, que acusavam os verdadeiros objetivos dos colonizadores, que trouxeram a morte aos índios, que saquearam nossas riquezas naturais e que denunciavam também o autoritarismo ainda persistente. Saindo da crítica aos oprimidos, a cerimônia voltou-se a intimidade do casal, tão bem conhecida pelo religioso. Relatou o amigo, que “em sua última noite, o escritor deu a mão a sua companheira e pediu que cantasse com ele. Ela começou a cantar “Acalanto”, mas ele disse: “essa não!”, e começou a cantar “O que será”, uma de suas prediletas. Dentre os que também assistiam a missa, além dos amigos próximos, talvez os amigos dos amigos. Admiradores de seu trabalho como escritor, dentre os quais um outro futuro presidente.

 

5. Por fim, após as cinzas ao vento, o restabelecimento da vida cotidiana. Solidariedade familiar e amizade formavam nova massa após ruínas. Pelo menos no início. Àqueles que haviam homenageado o morto, “a família do escritor impossibilitada de agradecer pessoalmente as manifestações de pesar de todos os amigos e entidades, expressou seu profundo reconhecimento”. Era o que dizia uma nota na imprensa. E assim foram descansar, ao contrário da memória do velho que ainda hoje permeia os mais diversos lugares. Como um espectro, um fantasma, ele ainda vive em seus textos, em corredores, bibliotecas, nas placas de rua, de praças e na memória social, afinal seu filho continua na pauta do dia. Descobrira que também herdara do pai o talento para as letras. Não só na grande mídia, ambos circulam agora, lado a lado nas prateleiras de livrarias mundo afora. Camões sabe muito bem disso!

 

 

 


Créditos na imagem: Sérgio e Chico Buarque.

 

 

 

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