Neste ensaio, nos sugerimos a dialogar com o tema proposto na chamada para contribuições a partir da história de um jovem brasileiro estudante de filosofia, chamado Tobi, que se deparou com questionamentos que vão ao encontro daquilo que apresentamos neste espaço: dizer da relevância ou não das Ciências Humanas e Sociais na compreensão do mundo que emerge junto à pandemia do Covid-19.

Há algum tempo, o jovem Tobi vem se questionando sobre o papel da Filosofia no mundo atual. Essa sua inquietação começou em dois momentos. O primeiro deles aconteceu durante a reforma da Base Nacional Comum Curricular que retirava a filosofia e a sociologia como disciplinas obrigatórias do Ensino Médio. Por conta dessa reforma algumas questões foram levantadas, como o impacto social daquela ação e qual o objetivo ou projeto político daquele governo em atacar as Humanidades e as Ciências Sociais. Depois de pensar, o estudante não encontrou nenhuma resposta que o satisfizesse. O tempo passou, e in-conscientemente aquelas perguntas foram guardadas. O segundo momento se refere a um encontro de amigos. Nesse encontro, no final da noite, o estudante foi interpelado sobre “o que fazia uma pessoa que estuda filosofia”. Naquele instante, perguntas passadas o encontraram, atualizadas e transformadas. Tobi era questionado a respeito do papel da filosofia, do filósofo ou do estudante de filosofia. Ele já havia percebido que não era uma pergunta de cunho apenas prático-pragmático que poderia ser respondida com algo como “dar aulas disso ou daquilo”. Os amigos queriam mais. Naquele lugar, era exigida uma reflexão fora dos muros da universidade, de maneira clara e satisfatória, que alcançasse a todos. O estudante não teve condições de responder às questões levantas pelos amigos. Então, Tobi sorriu e disse que esse era um assunto para outra hora. Ele, de fato, não tinha respostas para aquelas perguntas. Depois de muito pensar, o tempo passou e in-conscientemente elas foram guardadas.

Quatro meses depois desse segundo momento, surgiu para Tobi uma chamada para publicação de um ensaio sobre as Humanidades e as Ciências Sociais em um mundo impactado pelo novo coronavírus. Naquele dia, eram 61.888 mil casos confirmados, com 4.205 óbitos no Brasil (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, p. 14.). A princípio, já o parecia um tema inquietante. O primeiro questionamento que encontrou o estudante fazia referência acerca de qual seria a importância das Humanidades neste mundo determinado pela técnica, no qual as perguntas como “para que isso serve?” ou “como isso me ajuda nos meus problemas do cotidiano?” são muito comuns; e o segundo dizia respeito ao Brasil, sobre como um projeto político que recusa contribuições científicas poderia escutar as contribuições das Humanidades e das Ciências Sociais. Um dejàvu, fantasmas que voltaram a assombrá-lo, o tensionando sobre o papel da filosofia, do filósofo, das Humanidades e das Ciências Sociais, neste Brasil sob os impactos da pandemia do Covid-19.

Tobi resolveu escrever o ensaio a partir de seu caminho de tensões até então. Ele havia reconhecido que as posições, os questionamentos, os medos e as angústias deviam ser lançadas. Assim, externando e dando voz, seria possível ser escutado. O estudante utilizou o livro Espectros de Marx, do filósofo Jacques Derrida, para ajudá-lo a cruzar todas as suas tensões naquele texto. Nele, o filósofo, dizia que “deveria aprender a viver aprendendo não a conversar com o fantasma, mas a ocupar-se dele, dela, a deixar-lhe a fala, seja em si, no outro, no outro em si: eles estão sempre aí, […] nos dão a pensar a repensar o “aí” desde que se abra a boca, mesmo em um simpósio e sobretudo quando se está falando numa língua estrangeira” (DERRIDA, 1994, p. 234). Alguns dos fantasmas que Derrida se referia foram nomeados pelo estudante: os pobres, os imigrantes, os que sofrem violência etc. A partir disso, o jovem escreveu que, em meio à pandemia do Covid-19, o papel da filosofia, das Humanidades e das Ciências Sociais era caro. É preciso, por elas, nomear os fantasmas que o vírus trouxe. Um vírus que retira a dignidade, uma vez que não permite velar entes queridos e priva as pessoas de certa liberdade. Tobi entendeu que deveríamos nomear os fantasmas, conversar e dar voz a eles. Ao escrever, mesmo que in-conscientemente, seus inúmeros fantasmas, inquietações, se encontraram com outros tantos fantasmas. Naquele texto, pode dar voz a tudo isso. Externou seus fantasmas e os fantasmas que vieram à tona com a Covid-19, como a fragilidade humana, o abismo social, a liberdade, a concentração de produção de medicamentos do setor primário, a soberania das nações etc.

Com base no que foi ilustrado, queremos defender que é preciso dar voz aos fantasmas através das Humanidades e das Ciências Sociais. O problema da Covid-19 atinge a todos, “o vírus não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade, nos colocando igualmente diante do risco de adoecer, perder alguém próximo e de viver em um mundo marcado por uma ameaça iminente” (BUTLER, 2020). No entanto, “a desigualdade social e econômica garante a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo” (BUTLER, 2020). Os que estão à margem são mais impactados. Os mais pobres sentem mais efeitos, sem condições adequadas de saneamento básico, de higienização, de alimentação e de disponibilidade de leitos na rede pública. Os mais ricos, apesar de também sofrerem com o vírus, têm mais possibilidade de se isolar, com adequado saneamento, higienização, alimentação, e dispõem ainda de leitos privados.

Tudo isso descortina muitos fantasmas – nacionalismo, racismo, xenofobia -, como apontou Butler. Precisamos repensar esse modelo de sociedade a qual construímos, que é injusta, perversa, que coloca o capital acima da vida e que tem nos fantasmas que se mostram os seus indesejáveis, sempre a fim de exorcizá-los. Por isso, é função das Humanidades e das Ciências Sociais sempre dar voz a esses fantasmas – que vêm até nós, que nos assombram -, fazê-los falar, seja através da escrita, da fala ou de algum outro gesto e, assim, nos comunicar com eles. É possível escutar somente aquele que fala, e só se debate, se dialoga, a partir disso. Por isso, acreditamos que a preocupação dessas áreas deva ser verbalizar, nos gestos, na escrita, na fala, todos os fantasmas, para que assim, talvez, alguém os escute.  Desse modo, cabe às Humanidades e às Ciências Sociais ser esse lugar da escuta e de acolhimento e depois, deixar que os fantasmas, que assombram o Brasil e o planeta em tempos de pandemia, falem por elas.

Por fim, temos ainda inquietações a respeito do papel dessas áreas: seria de sua responsabilidade ser escutada e acolhida? Não ser escutada por um governo que é hostil a elas apagaria a importância dessas áreas ainda que estejam deixando que os fantasmas falem? Esperamos que todos esses fantasmas lançados encontrem uma certa acolhida de outro – governo, organismo, pessoa ou fantasma.

 

 

 


REFERÊNCIAS

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim epidemiológico especial: coe-covid19. Acesso em: 27 abr. 2020. Disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/27/2020-04-27-18-05h-BEE14-Boletim-do-COE.pdf.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto, e a nova internacional. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

BUTLER, Judith. O capitalismo tem seus limites. São Paulo: Rede Brasil Atual, 2020. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acesso em: 04 maio 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: André Coelho/Getty Images.

 

 

 

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