No início de 2020 foi lançado o livro Tormenta: o governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, no qual a jornalista Thaís Oyama analisa o primeiro ano do governo Bolsonaro. Dada a velocidade com que a política se movimenta no atual contexto e, principalmente, o impactante acontecimento da pandemia de Covid-19 que se alastrou pelo Brasil e no mundo ao longo de 2020 – e que continua a afetar drasticamente nosso cotidiano −, o livro de Oyama pode parecer, a princípio, um apanhado de notícias velhas, um acúmulo de fatos registrados que parecem perder seu sentido no tempo, ainda mais quando o protagonista da trama é um presidente que, sem competência suficiente para tratar dos assuntos de Estado, faz de sua boca uma metralhadora verborrágica, cuja munição são afirmações negacionistas em meio à maior crise da saúde desde o advento da Gripe Espanhola, no início do século passado.

Mas esse não é o caso do livro de Oyama. Após quase um ano de sua publicação, ele parece um importante registro das ações, dos bastidores e da personalidade do atual presidente, Jair Bolsonaro. Na verdade, o poder de um livro encontra-se mais nas suas possibilidades de leitura que nos eventos que ele relata. Sendo assim, proponho um ensaio a partir de Tormenta, pensando o texto como um ponto chave entre o passado que leva Bolsonaro ao poder e seu primeiro ano de governo, o nosso presente, marcado pela pandemia, e nossas possibilidades de futuro, que não parecem ser as melhores.

 

 

Acendo no leitor o alerta: embora eu tenha divergido de grande parte dos historiadores e cientistas políticos, afirmando desde o final de 2015 que Bolsonaro tinha grandes possibilidades de ser o futuro presidente do Brasil – o que me levou a escrever o romance O vosso Reino, publicado em 2019 −, não sou futurólogo. Pelo que eu saiba, essa profissão ainda não existe. Ou seja, não tenho nenhuma capacidade de prever os acontecimentos futuros. Se eu tivesse essa capacidade, acreditem, eu não estaria vivendo no meio da loucura que parece ter tomado conta desse país. Na verdade, sou um historiador da literatura que às vezes se arrisca escrevendo ficção. E pesquisar a literatura é justamente tentar captar as sensibilidades. Do passado ou do presente.

Esse texto busca conciliar a leitura, a interpretação intelectual, com o campo dos sentimentos. Afinal, esse não seria um recurso importante para buscar compreender um país que parece ter abdicado da racionalidade em função de privilegiar seus instintos, suas intuições e seus sentimentos?

Esse é o primeiro ponto que destaco do livro de Thaís Oyama: compreender Bolsonaro e o bolsonarismo não tem nada a ver com a razão. É uma questão de sentimento. Eu diria que se o bolsonarismo tem um sentimento fundamental, este é o ressentimento. Sei que isso não parece muita novidade, mas é algo que deve ser sempre destacado. Que Bolsonaro vem do “baixo clero” do Congresso é notícia já muito divulgada, mas Oyama demonstra isso não só a partir de suas relações com a Câmara, mas também pela sua espacialidade: os escritórios ocupados por Bolsonaro e sua equipe na Câmara se davam nos piores alojamentos, relegados a deputados sem muita relevância. O espaço se relaciona com a pessoa e a história do atual presidente é a história de um rejeitado: pelos militares devido às suas insubordinações; pelos congressistas, devido à sua insignificância parlamentar – passou quase 28 anos mandando cartas a viúvas de militares e apresentando poucos projetos de leis, quase sempre não aceitos. No caso dos militares, essa rejeição é ainda mais problemática, pois o presidente sempre admirou a instituição. A imagem é semelhante à de um filho que busca agradar um pai severo que sempre o rechaça. Os leitores podem imaginar os tipos de complexos que se desencadeiam nesse tipo de relação.

Mas o ressentimento não se restringe apenas ao presidente. Ele também pode ser encontrado em outros membros do governo, principalmente no Ministro da Economia, Paulo Guedes. Ao ver sua proposta de reforma da Previdência ser “desidratada” e com o Congresso tomando a frente nas articulações para sua aprovação, Oyama revela que Guedes sentiu-se “derrotado”. O ministro esperava que a reforma da Previdência e o sucesso econômico do governo fossem a vitrine de seu êxito, o que, para Guedes, faria com que os “idiotas da PUC Rio” (OYAMA, 2020, p. 161) percebessem o erro ao “vetar” sua entrada na instituição. Segundo Oyama, o ministro acreditava que após concluir seu doutorado em Economia na Universidade de Chicago, ao voltar ao Brasil seria contratado para trabalhar na PUC ou na Fundação Getúlio Vargas. O sonho se resumiu ao convite para algumas aulas, mas nenhum contrato mais promissor aconteceu. Desiludido (e ressentido), Guedes preferiu culpar as “panelinhas” universitárias a admitir qualquer equívoco de sua parte e decidiu investir na iniciativa privada.

É possível fazer uma ponte entre Guedes e Bolsonaro. São personagens que, ao ocupar o poder, são movidos pelo sentimento de “dar o troco”. Em nenhum momento percebi no livro de Oyama a vontade, ou mesmo a intenção, de governar para um país. Tudo se resume a um “nós contra eles” embargado em um profundo sentimento de revanchismo. A racionalidade não consegue abarcar isso tudo. Todo mundo já viu esse roteiro em algum filme: imaginem a psique de alguém que foi desprezado ao longo de toda sua vida, sendo constante alvo de piadas, ocupando os piores lugares nas instituições, o tempo todo tratado como alguém menor e sem importância. De repente, o rejeitado se torna alguém popular, pois as pessoas, também se sentindo rejeitadas por seus políticos e abandonadas pelo sistema de governo, passam a se identificar com seus defeitos e entregam o poder a ele. Como se trata de alguém que passou a vida tentando provar que vale alguma coisa, agora que tem reconhecimento e poder em suas mãos, está mais convencido que nunca que seus critérios são os corretos e que todos os outros que falharam com ele estavam errados. Nunca houve um “bem comum” para alguém que passou a vida sendo achincalhado. O que se verifica é um sentimento de revanchismo associado a uma falta de proporção da realidade. E que beira à paranoia.

Esse é outro ponto que ressalto no livro de Oyama. Na verdade, a própria autora deixa isso claro em um capítulo intitulado “Paranoias, ideias fixas, medos e outros tormentos”. Bolsonaro sofre com mania de perseguição. Para o presidente, ele sempre pode ser alvo de ataques ou ameaças, seja ela de falsos amigos ou de inimigos imaginários, como os “comunistas”. O ponto que ganha destaque foi quando do episódio da facada. Após ser operado, o então candidato à presidência aceitou ser transferido da Santa Casa de Juiz de Fora para um hospital paulistano, menos o Sírio-Libanês, na percepção distorcida do presidente, “hospital de petistas” – tudo porque os ex-presidentes Lula e Dilma havia trado de câncer no local. Bolsonaro temia ser alvo de novos atentados em “campo inimigo”. A paranoia também parece se estender a seu filho Carlos Bolsonaro, que também vive preocupado com os inimigos reais e – principalmente – imaginários do governo. Carlos apresenta problemas psicológicos e consome remédios reguladores de humor, o que parece aumentar seu poder de chantagem emocional sobre o pai. Ao ser contrariado, Carlos é capaz de desaparecer por semanas, afetando o comportamento do pai.

Esse é outro ponto que o livro ressalta: Bolsonaro confunde público com privado, fazendo de seu governo um “puxadinho” da sua casa. Sua relação com a família é capaz de fazer o presidente se afastar de apoiadores – como foi o caso de Gustavo Bebbiano, ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República em 2019, falecido em março de 2020 – e se indispor com pessoas-chave em seu governo, como foi o caso do ex-juiz Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça, que não quis acobertar o envolvimento de Fabrício Queiroz com Flávio Bolsonaro na prática de “rachadinhas” – apelido dado ao desvio de parte do salário dos assessores de parlamentares. O caso ainda está em investigação, mas a situação de Flávio fica cada vez mais complicada. Para proteger o filho, Bolsonaro não se furtou a intervir na Polícia Federal ou mesmo buscar influências no Supremo Tribunal Federal, contado com o apoio do ministro Dias Toffoli – que, obviamente, nega qualquer interferência antiética.

Os excessos e condutas pouco apropriadas por parte do presidente levou deputados e senadores a considerar a incapacidade de Bolsonaro em governar e buscaram estabelecer um “parlamentarismo branco”, que pudesse servir de contrapeso às decisões do presidente e barrar seus principais despropósitos. A aliança envolveria desde membros da direita, como Rodrigo Maia − filiado ao DEM e atual presidente da Câmara dos Deputados – e Davi Alcolumbre – também filiado ao DEM e presidente do Senado – até membros da centro-esquerda, como Raldolfe Rodrigues − senador pela Rede Sustentabilidade – e Jacques Wagner – senador pelo PT. Isso nos leva a uma importante informação de bastidores: ao que pese os motivos políticos e éticos, o impeachment era algo descartado. Menos que oportunismo, a aliança foi concertada a partir de dois fatores: a dificuldade de se implementar um processo de impeachment a partir das condições objetivas: Bolsonaro tinha (e ainda tem) bastante apoio, tanto do setor empresarial, quanto da população – e as possibilidades de golpe institucional – o próprio vice-presidente, Hamilton Mourão se tornou um caso suspeito.

O livro de Oyama apresenta ao menos duas camadas: uma mais superficial, que não traz nenhuma novidade para quem acompanhou as notícias durante o primeiro ano de mandato de Bolsonaro; e uma camada mais profunda, na qual os bastidores e o psicológico do presidente é apresentado aos leitores. Menos que um conjunto de relatos, a obra é importante por nos possibilitar a compreensão daquilo que não é dito nas notícias, mas que determina grande parte das ações do presidente: um ponto de contato entre a paranoia, a obsessão, a vontade de poder e o ressentimento, que não pode ser medido a partir de padrões racionais.

Esse governo “irracional do ressentimento” não significa que o presidente não seja responsável pelos seus atos, muito menos que não existe certo cálculo em suas ações. Apenas expressa que a lógica pela qual Bolsonaro opera não é a mesma medida pelo “bom senso”, muito menos objetiva o bem comum. De fato, dadas as declarações do presidente, bem como suas ações durante a maior crise de saúde em mais de um século – as mais óbvias, a defesa da hidroxicloroquina e sua resistência a implementar políticas de vacinação −, a (in)consciência de Bolsonaro parece se inclinar para uma atração pela morte. Isso fica evidente com suas políticas de armamento e mesmo em suas cismas de perseguição. Suas práticas se dirigem muito mais a uma política da morte que a políticas preventivas. Talvez nem o próprio presidente tenha clareza em relação a isso, o que significaria que essa inclinação para a morte está ancorada em um nível ainda mais profundo de sua mente.

Olhar para o livro de Thaís Oyama nos leva a compreender melhor a atuação de Bolsonaro durante a pandemia. Esse olhar deve nos conduzir a um nível mais profundo que o dos noticiários, direcionando-nos para esse elo confuso de sentimentos que baliza não só as ações do presidente, mas também do próprio bolsonarismo. Nesse sentido, pode ajudar a orientar nossas ações no presente. Existe algo muito errado no Palácio do Planalto, mas provavelmente tem algo muito errado em nossas táticas até o momento. Bolsonaro – e o livro de Oyama também mostra isso – é um personagem bastante popular. Bonachão, simples, é de fácil identificação com o povo. Não se trata apenas de teatro: o presidente parece realmente representar uma parcela da população que sempre se ressentiu da política, e mesmo das universidades públicas, que para muitos ainda permaneceram fechadas.

Eu acreditei que Bolsonaro seria o futuro presidente ainda em 2015, e continuo acreditando que muito provavelmente ele será reeleito em 2022. Até o momento, os dados tem afirmado isso e tudo o que temos é a esperança de que uma crise grave poderia despertar a população. Essa ideia, além de ser de péssimo tom, é sustentada apenas na especulação. A realidade tem dado provas contrárias disso. Talvez o bolsonarismo tenha perdido algo de força, mas o governo segue forte. É hora de considerar as possibilidades reais, pesando nossos ideais, mas pensando seriamente nos perigos e probabilidades dessa reeleição. Se Bolsonaro for reeleito ele conseguirá indicar mais quatro ministros aos STF até 2026. Com isso, salvo engano, ele terá indicado seis ministros e além de controlar o Executivo, terá forte influência no Judiciário. Se nossos ideais se mostrarem incapazes de vencer Bolsonaro, talvez, mais do que nunca, seja hora de consertar uma aliança pragmática. Nem que essa aliança seja feita a partir de futuros inimigos. Enquanto a ultradireita avança, o centro e a centro-direita talvez não terão forças suficientes para derrotar o bolsonarismo, e a esquerda precisa superar seus infantilismos: a disputa por quem é mais “à esquerda”; a busca de uma performance autolegitimatória que insiste em condenar aquele que “não é suficientemente de esquerda”, evocando o espectro da traição; o personalismo messiânico; o preconceito aos evangélicos. Thaís Oyama termina o livro afirmando que os olhos de Bolsonaro estavam fixos em 2022. Nós parecemos ainda nem ter superado o baque da derrota de 2018, insistindo em não ver o óbvio.

 

 

 


REFERÊNCIAS

OYAMA, Thaís. Tormenta. O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: AP Foto/André Borges. Reprodução. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/08/bolsonaro-diz-que-resolveu-desavencas-com-mandetta-e-que-nao-e-hora-de-derrubar-presidente.ghtml 

 

 

 


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