Abigail de Andrade (1864-1890) foi uma pintora brasileira nascida em Vassouras, no Rio de Janeiro. Abigail foi a primeira mulher a ser premiada com a Grande Medalha de Ouro (1884) na então principal exposição de arte do Brasil: a Exposição Geral de Belas Artes promovida pela Escola Nacional de Belas Artes, com a tela “Cesto de Compras”. Cabe destacar que, por alguns anos de sua carreira – antes de passar por problemas pessoais e ser duramente julgada pela sociedade ao ponto de que seu “esquecimento” fosse incentivado pela imprensa e demais agentes do campo artístico -, Abigail fora uma das pouquíssimas mulheres artistas que eram consideradas artistas. Isto é, a qualidade de seu trabalho era tão bem reconhecida que mesmo o fato de mulher e não sendo aluna regular da ENBA – atributos pelos quais deveria ser considerada amadora segundo o campo artístico da época.
Suas obras se enquadram no movimento Realista, e se destacam das obras de seus contemporâneos por tratar de questões sociopolíticas – como a Abolição da Escravatura – de forma a deixar espaços de reflexão a serem “complementados” pelo espectador, mas sem deixar de refletir a opinião da artista sobre o contexto em que vivia. Suas obras tendem a apresentar um problema ou situação juntamente a possíveis soluções, de forma que somos chamados a refletir uma, duas, três vezes sobre o que estamos vendo. Esta característica coloca a artista como pioneira no trato com o moderno, principalmente no trato com conceitos e propósitos para além da estética. A obra que analisaremos é “A Hora do Pão”, tela a óleo feita por Abigail em 1889.O Realismo surge da necessidade de retratar a vida com seus problemas e costumes cotidianos. Isso diz respeito não apenas às classes mais abastadas, foco dos movimentos anteriores, como também às classes mais baixas. O Realismo é, por isto mesmo, carregado de referências políticas em suas linguagens, sobretudo, no trato com problemas sociais. Na Europa, o Realismo tem como objetivo principal o contraponto ao Romantismo, que na maioria das vezes trazia narrativas que eram fruto de uma visão individualista e imaginativa, o Realismo tem a objetividade como sua maior característica.
O Realismo brasileiro, especialmente em Abigail, dará atenção ao passado colonial e suas reminiscências na sociedade após a Abolição. A artista tende a tratar do cotidiano destacando a questão racial, discussão que tomava a frente neste momento da História do País. Uma outra característica de suas obras é o fato de tratarem de cenas cotidianas e na maioria das vezes, cenas externas/ de rua, algo incomum à pintura brasileira mais prestigiada. “A Hora do Pão” é uma pintura de gênero na qual o meio se sobrepõe aos personagens – aspecto realista – mas sem deixar de nos chamar a pensar sobre as figuras humanas em suas atividades domésticas, de recreação (crianças) e de trabalho. Sobre sua técnica, a tinta a óleo permite que a artista crie passagens tonais, sobreposições e degradês suaves, dada a secagem lenta. Vemos um contraste balanceado; a luz aparece em tons quentes e, no caso dos pontos não tão iluminados, há uma atenção maior aos detalhes. Bem calculada, a cena parece se dividir entre o ambiente urbano e o rural com suas paletas terrosas. O foco está numa certa triangulação entre as pessoas ao centro e a porta para a qual leva a escada, e os elementos à volta corroboram para nos chamar de volta ao centro. Para cada pessoa representada, a artista atribui um “universo”: embora a fotografia não permita ver com clareza, pessoalmente, a obra traz uma riqueza de detalhes surpreendente em cada expressão, assim como no restante da cena. De um ponto de vista contextual histórico, nota-se a figura do negro atribuída à questão do trabalho, mas também numa posição de espera ou de ócio enquanto o vendedor atende as crianças. Abigail sugere a situação de subjulgamento e marginalidade à qual a população negra se encontraria no Pós-Abolição, em oposição aos diversos novos projetos de modernização voltados às grandes cidades e à melhoria de vida da população branca. A obra se encontra hoje em coleção particular.
Um aspecto interessante sobre a obra é que ela é responsável por “abrir” a exposição “Moderno quando?”, inaugurada no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2021. Com curadoria de Aracy Amaral e Fernanda Teixeira, a exposição busca apresentar elementos modernos surgidos na pintura brasileira para além da Semana de Arte Moderna de 1922. Ao lado direito, “A Hora do Pão” é a primeira obra na qual o espectador pousa os olhos. A localização da obra chama a atenção por vários motivos: primeiro, pela dificuldade de encontrarmos uma de suas obras em exposição, já que quase todas – senão todas – pertencem a coleções particulares; segundo, pelo reconhecimento por parte da curadoria sobre a importância e a inteligência da composição da obra, ao ponto de ela ser a primeira apresentada ao público; terceiro, por ter sido feita por uma mulher, apresentada ao lado de obras de Almeida Júnior, pintor ao qual foi comparada e que apresenta mais obras expostas neste projeto, criando quase um “choque”, como se a obra de Abigail quase desaparecesse não fosse sua posição de destaque no projeto curatorial e expográfico. O moderno em Abigail é justamente este chamar à realidade, chamar o olhar de volta a um passado que a sociedade ainda insiste em renegar, ao invés de se dispor a olhá-lo criticamente e repará-lo em todas as medidas possíveis para que cresçamos coletivamente.
Créditos na imagem: Divulgação. A Hora do Pão. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra12005/a-hora-do-pao. Acesso em: 21 de março de 2022. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
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Paula de Souza Ribeiro
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