Houve um tempo em que para capturar o Saci bastava lhe roubar o gorro vermelho. Hoje não mais: ele salta trôpego e cambaleante pelas ruas capturado pelo crack. Seu cachimbo é seu bem mais precioso. Limpo e brilhante. Se antes tirava as roupas do varal por traquinagem, hoje é para trocar por pedra.
Curupira trocou o fumo que era oferecido por quem se embrenhava nas florestas por pares de tênis novos. Agora ele integra crews de corredores e participa de maratonas. Pode ser visto correndo sem parar em parques da cidade, praças e ciclofaixas.
A mula-sem-cabeça está em vias de receber um julgamento justo. Ela que se apaixonada por um padre entregou-se a ele na sacristia e foi a única amaldiçoada na história. O sacerdote foi transferido de igreja, onde segue se aproveitando de fieis e desviando o dinheiro das doações. Filmagens de celular mostram orgias pós missa regado a drogas e consumo desenfreado de vinho. A Igreja já declarou que repreendeu e que vai expulsar o religioso. Mas até agora nada. Enquanto isso, a mula vaga gritando pela noite.
E já faz tempo que não se avistam botos rosas. Considerados talaricos estão jurados de morte por todos.
Nesse novo mundo tecnológico cheio de luzes piscantes atordoantes surgiu um novo ser. Um felino gigante. De tamanho pleistocênico vagava pelas florestas brasileiras devorando o que lhe aprouvesse. Entretanto, não se camuflava na selva, pois tinha como característica principal sua cor amarela neon que anunciava sua presença, especialmente sob a luz solar ou da Lua. Era chamada popularmente de onça-neon pelos mateiros e pantaneiros – sábios que a deixavam em paz para manter o equilíbrio da cadeia alimentar – mas rapidamente apelidada de neonça por hipsters urbanoides.
Mas a bem da verdade, essa onça não nasceu em nenhuma lenda indígena, nem dos contos africanos adaptados aos novos tempos nem muito menos uma corruptela do que os olhos europeus viram ao invadirem o novo mundo. Era assim, sem mais nem menos, sem muitos mistérios, uma criação de laboratório. Zero misticismo e muita ciência. Simples assim.
Cientistas usaram enzimas que fazem vaga-lumes brilharem em embriões de uma onça. Obviamente que o experimento começou em camundongos, então acharam que seria uma boa ideia tentarem em animais maiores e – por que não? – selvagens. Optaram pelo felino. Como todas as etapas da pesquisa deram certo até aqui, decidiram testar a reintrodução de animais geneticamente modificados na natureza. Doparam a onça, inseriram um rastreador para avaliar suas reações e movimentos – pularam etapas da reintrodução na selva – e a soltaram.
Logo nos primeiros dias, perceberam que ela percorria longas distâncias em pouco tempo. Que ela repousava por pouco tempo. Por imagens de satélites era possível acompanhar em tempo real o animal, um dos impactos não previstos era sua alimentação. Sua fome parecia insaciável. Solta sem querer pelos cientistas perto de uma fazenda, ela praticamente devorou boa parte do gado criado ali. Foi quando começou de fato o problema, pois o fazendeiro contratou caçadores para eliminar o felino.
Um erro. O felino sabia de seu potencial e não fazia a menor questão de se esconder. Os caçadores estavam acostumados com onças normais e se embrenharam na mata esperando abater um animal de porte usual. Morreram todos. Eram quatro os caçadores. Imagens de satélites mostram os homens entrando na mata e caminhando em linha reta na direção da onça-neon, que rapidamente os abateu. Ela parecia ter fome. O vídeo que num primeiro momento pareceu entreter os cientistas virou preocupação. Afinal jornalistas, blogueiros, instagramers, youtubers, tiktokers etc começaram a comentar o episódio. Além disso, enquanto os cientistas riam assistindo às imagens de satélite, atrás dele estava em pé o chefe do departamento, um militar ligado ao governo que se fez perceber por uma respirada profunda.
Nesse instante o ar da sala onde os cientistas estavam gelou e o tempo parou. Era melhor ter encontrado a tal onça-neon. Lentamente viraram para trás e deram de cara com o militar olhando-os com a fúria de um fuzil. Seu olhar os mirava como um tanque. Literalmente num estalar de dedos, soldados entraram correndo naquela sala, colocaram sacos nas cabeças dos cientistas e os arrastaram para fora da sala. Nunca mais se ouviu deles.
Militares ocuparam as caberias e começaram a movimentar satélites, analisar imagens e gráficos. Tudo em silêncio.
A única frase foi a do militar de maior patente: – Tragam o gato de volta.
Poucas horas depois, um helicóptero militar pousou na fazenda onde a onça-neon atacava. Militares desceram e s deslocaram até a sede. Foram entrando sem falar nada e se instalaram na sala de estar. O dono da fazenda foi correndo em direção a eles, queria gritar e saber o que estava acontecendo, mas antes de abrir a boca, um soldado surgiu em sua frente impedindo que ele entrasse na sala e lhe disse: – Viemos capturar a onça.
Entretanto, ainda que rapidamente, o fazendeiro vê por cima do ombro do soldado o que parecem ser duas caixas grandes pretas colocadas no gramado. Ele dá alguns passos para trás e a porta se fecha diante de seus olhos.
Na sala, o oficial de maior patente se posiciona diante da porta. –Atenção! – Ele diz firme. Nesse instante as caixas se movem e se revelam dois cães-robôs: quatro patas, sem cabeça e sobre as costas o que parecem duas metralhados.
– Câmeras funcionando bem – Diz um soldado sentado na mesa de madeira de lei olhando para a tela de um notebook.
– Cacem – ordena o oficial de maior patente e os cães robôs partem em velocidade mata adentro.
Seria questão de tempo até a neonça ser abatida. A ideia não era leva-la com vida de volta ao laboratório.
Pelo notebook os soldados acompanhavam a caçada. Ainda que as imagens tremessem havia imagens infravermelhas, térmicas, captação de movimento e triangulação para cercar a onça.
– Onça avistada – avisou o soldado.
– Abater – diz o oficial.
Ninguém o responde. Não por desacato ou desrespeito, mas porque ele está falando com os cães-robôs que cercam o felino gigante. A onça percebe o cerco e parte para cima da máquina mais próxima. O robô se ergue sobre duas pernas. A onça pula contra o que seria o peito do robô que cai de costas e tenta girar sobre si mesmo, sem sucesso. A onça rapidamente sai de cima da máquina, mas volta e dá uma patada na caixa central do robô afundando parcialmente a peça – o exército não contava com isso. O outro cão-robô começa a atirar. Vários tiros são disparados. Alguns acertam o animal que mesmo ferido avança na direção do robô, enquanto aquele que estava no chão enfim consegue se levantar e vai na direção da onça e também começa a atirar.
Nenhum projetil é desperdiçado. A mira dos robôs é certeira. A onça cai. Seu peito sobe e desce com a respiração ofegante. A saliva misturada com sangue escorre da boa do animal. Sua pupila vai se dilatando e perdendo o brilho. Os cães-robôs se aproximam e terminam o serviço. As máquinas podem ser vistas correndo de volta para a fazenda sob as ordens de se reagruparem ao pelotão. Uma fumaça cinza sobe fina por entre as árvores.
Créditos na imagem: Divulgação. Thiago Ronza Bento.
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