CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência. Curitiba: Ed. UFPR, 2017. 171p.
Historiador das ciências e professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mauro Condé faz um interessante e rigoroso trabalho investigativo de complexos episódios da historiografia da ciência produzida no século XX: o papel e os usos do conhecimento científico, as disputas epistemológicas, o debate internalismo versus externalismo, a escrita da ciência como atividade científica e filosófica inserida no tempo. Publicado no segundo semestre de 2017 e correspondente à série “Pesquisa”, da Editora UFPR, o livro intitulado Um papel para a história é resultado do curso que Mauro Condé ministrou durante o evento da Escola Paranaense de História e Filosofia das Ciências/UFPR, em 2013[1].
O livro Um papel para a história aborda o problema da historicidade da ciência, entretecendo a relação entre ciência e historicidade com uma reflexão filosófica e didática. Demonstra que a ciência, por se tratar de um constructo humano, tem um passado, uma história não convencional, não cumulativa e não linear, e uma historicidade.
Duas ideias-força sustentam a argumentação de Condé acerca do passado e da historicidade da ciência, ambas extraídas das reflexões do influente pensador da ciência Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas, obra lançada em 1962. A primeira ideia refere-se a um novo conceito de história: “Se a história fosse vista como repositório para algo mais que anedotas e cronologia, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina” (CONDÉ 2017, p. 24; KUHN 2013, p. 59). A segunda ideia alude a “‘um papel para a história’ do conhecimento científico” (CONDÉ 2017, p. 24; KUHN 2013, p. 59-69). Amparando-se também em reflexões de mais dois respeitados pensadores da ciência no século XX, Ludwik Fleck e Ludwig Wittgenstein, Condé propõe, de forma original e coerente, partindo do que ele denomina de “gramática da ciência”, a tese de uma “nova imagem da ciência”.
Crítico das concepções epistemológicas positivistas que consideram a ciência um saber a-histórico, contínuo e meramente descritivo e cumulativo, Condé defende a concepção de uma “epistemologia histórica” voltada para a ideia de que a ciência tem uma história e esta história integra a ciência e altera, por sua vez, o seu produto final (CONDÉ 2017, p. 20-21). Considera o saber científico intrínseco à história, à contingência e à variabilidade temporal como sendo a própria “historicidade da ciência”. Nesse sentido, a compreensão do conceito de historicidade para Condé é uma exigência para se conseguir assimilar o seu programa epistemológico para a história das ciências.
No primeiro capítulo, Condé traz a lume alguns conceitos-chave necessários para se entender as perspectivas de Koyré e Zilsel em torno do surgimento da ciência na modernidade, conceitos como “capitalismo”, “cultura”, “progresso tecnológico”, “invenções tecnológicas”, “máquinas”, “individualismo”. Discute a famosa querela internalismo versus externalismo a partir das obras desses pensadores, como também as suas contribuições para a noção de historicidade da ciência. Pontua e examina os avanços e as limitações tanto da tese de Koyré quanto da de Zilsel para o alargamento dessa noção.
No segundo capítulo, a análise pormenorizada de Condé da tese de Fleck aspira a mostrar como esse pensador relaciona ciência e sociedade e concebe a ideia de historicidade da ciência, depositada na obra de 1935, intitulada Gênese e desenvolvimento de um fato científico. O aspecto substancial da ideia fleckiana de historicidade da ciência é, como entende o autor, a noção de que os mecanismos de produção do conhecimento não podem ser compreendidos em si e por eles mesmos, mas em seu contexto histórico e social.
No terceiro capítulo, Condé examina o tema da historicidade da ciência na obra fundamental de Kuhn, intitulada A estrutura das revoluções científicas e lançada em 1962. Para Condé, Kuhn é quem melhor lida com o paradoxo ciência e historicidade. De acordo com o autor, o filósofo da ciência estadunidense não impõe uma solução final para essa complexa relação, mas concilia permanência e mudança, natureza e cultura. Na visão de Condé, à medida que afirma a historicidade de todas as coisas, Kuhn institui uma “nova imagem da ciência”. Essa proposta kuhniana de “conciliação” entre o científico e o social e a constituição de uma “nova imagem da ciência”, o autor explora bem ao longo do capítulo.
No quarto e último capítulo, a fecundidade da tese de Condé é expressa quando ele traz à baila a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, depositada sobretudo nas Investigações filosóficas, obra de 1953. Ele explora o problema da linguagem e sua importância para compreensão da ciência e construção do conhecimento científico. Condé faz avançar os estudos em história das ciências ao propor o que ele nomeia de “gramática da ciência”, uma forma de estudo sistemático, descritivo e analítico do saber científico, com a finalidade de solucionar problemas de natureza epistemológica. De acordo com Condé, essa proposta produz uma “nova imagem da ciência”.
As linhas argumentativas do livro de Condé estão fundamentadas em uma abrangente pesquisa, com bibliografia diversificada e especializada. É nítida a familiaridade do autor com as obras de pensadores da ciência e os seus comentadores em diversos idiomas, com o predomínio do inglês, o que lhe permite passear entre eles com segurança e sem perder de vista o tema primordial de seu livro. Condé analisa em especial as obras de Koyré, Zilsel, Kuhn, Fleck e Wittgenstein. Tais autores são relacionados entre si e também a outros autores, como Popper, Bloor, Shapin. O exame de Condé das obras desses autores é feita de forma detida, zelosa e sistemática, com ênfase na interpretação de conceitos e palavras em seus contextos originais de criação.
No que concerne ao diálogo com a historiografia das ciências, o leitor sente um pouco a falta do diálogo de Condé com a produção historiográfica brasileira mais recente que lida com as ciências e que também as entende como um saber humano, como um produto intrinsecamente associado ao processo histórico, cultural, social, econômico, político. Mas isso não diminui a importância tampouco compromete a qualidade do livro que o autor entrega ao público brasileiro.
Considera-se, portanto, o livro de Mauro Condé uma contribuição significativa não só para os estudos mais gerais relacionados à historiografia, à história, à filosofia e à sociologia das ciências que estão sendo levados a cabo no Brasil, mas também para o esclarecimento de questões pertinentes à historicidade das ciências, possibilitando assim outras frentes de pesquisas, interpretações e questionamentos sobre esse tema.
[1] O curso completo pode ser encontrado no Canal da Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência/UFPR. Lá, Mauro Condé discute e procura responder a uma série de questões, desconfortos teóricos e interpretativos acerca do tema da historicidade da ciência. O autor trata de algumas questões debatidas no referido curso de forma mais extensiva no livro em tela.
Referências
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência. Curitiba: Ed. UFPR. 2017.
KUHN, Thomas S. Introdução: Um papel para a história. In: Kuhn, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução: Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 12. ed. São Paulo: Perspectiva. 2013, p. 59-69.
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Raylane Marques Sousa
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