A série britânica Peaky Blinders é violenta. Deixemos esse aspecto bem claro, desde já. Assassinatos, mutilações, espancamentos e toda sorte de crimes são constantes ao longo das 6 (seis) temporadas. Porque falar dela então[1]?! Nos últimos anos, o Brasil e boa parte do mundo estão assistindo a ascensão de uma extrema-direita com ampla retórica e prática de violência contra grupos minoritários e contra as instituições do Estado Democrático; sendo assim, falar de uma série violenta por excelência é útil?  O lançamento da sexta e última temporada no Brasil, no último 10 de junho, pela plataforma de Streaming Netflix e o fato de acreditar que há elementos pouco explorados na trama configuraram as motivações iniciais deste texto[2].

Os elementos que se pretende discutir têm a ver, por um lado, com as relações entre as formas de recordação[3] e a identidade e, por outro, o papel do trauma e a identidade. Antes, creio ser útil fazer uma breve descrição do objeto, para além do aspecto da violência, que se almeja abordar. Lançada em 2013 pela BBC, Peaky Blinders aborda a trajetória de uma gangue que usa navalhas em suas boinas, cujo centro é a família Shelby, da cidade industrial de Birmigham na Inglaterra, mais precisamente na localidade de Small Heath. Seu líder é Thomas (Thommy) Shelby, interpretado pelo ator irlandês Cillian Murphy. Ladeados à Thomas, fazem parte da família os irmãos Arthur (Paul Anderson) o mais velho, John (Joe Cole), Ada (Sophie Rundle), Finn (Alfie Evans-Meese na 1ª temporada e Harry Kirton nas subsequentes) o caçula, além da tia Polly Gray (Helen McCrory) e seu filho Michael Gray (Finn Cole), a partir da 2ª temporada, seu tio Charlie Strong (Ned Dennehy) e o filho desconhecido de Thommy, Duque (Conrad Khan), na última temporada[4].

Os acontecimentos se passam no pós-Primeira Guerra – a primeira temporada se inicia em 1919 e a última se passa em 1934. As 6 (seis) temporadas contam com o mesmo número de 6 (seis) episódios cada e foi criada e dirigida por Steven Knight. Os negócios da família Shelby, inicialmente, se resumem ao campo das apostas ilegais nas corridas de cavalo, roubos e proteção. Eles contam com uma casa de apostas localizada numa rua bastante movimentada de Small Heath e subornam excessivamente policiais para não serem presos. Além disso, contam com um relativo número de funcionários (eram 18 no início da segunda temporada).

 

O trauma ou “Não escuto as pás do outro lado da parede”

A discussão sobre o trauma se concentrará na personagem central da trama: Thommy Shelby. Quando estava na concepção deste texto, ainda sem assistir à última temporada, acreditava que ao longo da série havia um deslocamento do papel da guerra na identidade dos Peaky Blinders. Que ela se deslocava de um trauma, no sentido de que a pessoa repete o fato esquecido em forma de ação, ação que se dá no corpo[5] para uma rememoração, para uma lembrança compartilhada de certos acontecimentos e que este fato constituía algo central na identidade dos Brummie Boys and girls. Ao terminar de assistir a 6ª temporada, creio que essas duas formas coexistiram ao longo de toda a série.

Sinais indicativos do trauma da guerra são o uso constante do ópio e álcool e os pesadelos ao longo de noites mal dormidas. Há vários momentos ao longo das 6 (seis) temporadas em que este trauma se manifesta, assim como a tentativa de Thommy em lidar com ele.  O trauma aparece nos pesadelos recorrentes na primeira temporada e prossegue até a última temporada [episódio 2], na cena em que Thommy está caído no banheiro, tremendo e em aparente convulsão até ser socorrido por Lizzie, sua esposa naquele momento.

No que se refere à tentativa de lidar com ele, ou seja, de desimpedir essa lembrança, selecionamos alguns momentos. O primeiro é uma conversa de Thommy com Gracie – espiã do Serviço Secreto Britânico e que se tornaria sua esposa – no pub The Garrison. Ele diz “Sabe, na França, me acostumei a ver homens morrendo. Nunca me acostumei em ver cavalos morrerem. Eles morrem de um jeito horrível.”[6] Esse diálogo sinaliza uma tentativa da personagem em desimpedir a memória no plano patológico-terapêutico[7].

Um outro diálogo, desta vez com Danny Whizzbang, aponta no mesmo sentido de tentativa de lidar com o trauma

-[Danny]Tem problemas suficientes, certo Thommy? O uísque e o ópio. […] Eles nos deram a pior tarefa, Thommy.

-[Thommy] Às vezes dura a noite toda. E eu fico aqui deitado, escutando as pás e as picaretas contra aquela parede ali. E rezo para o sol aparecer atrás da cortina antes de conseguirem entrar[8].

O trauma e as tentativas de lidar com ele, no líder dos Peaky Blinders, parecem se manifestar de modo mais intenso em momentos em que o protagonista se sente acuado ou mesmo sem encontrar novos desafios. O diálogo dele com Polly (final da 4ª temporada) é significativo nesse sentido

-[Polly] Já sabia que você não iria, fui ao médico por você. Tudo bem, os rapazes não sabem que está doente.

-[Thommy] Não estou doente, Polly.

-[P] Começa quando você para, quando descansa. Podem ser os nervos. A guerra. Pode ser o álcool, uma melancolia.

-[T] É, bem, sim, é a merda da bebida. É a bebida. A bebida penetrou meus ossos.

-[P] Lizzie quer ver você.

-[T] Não.

-[P] Tom, a barriga dela está aparecendo.

-[T] Não quero vê-la, Polly[9].

Por fim, acreditamos que a tentativa de lidar com esse trauma emerge em momentos que Thommy enxerga no interlocutor alguém capaz de compreender os sentidos dessa experiência. Em seu diálogo, em um jantar num ferro velho, com a líder sindical Jessy Eden isso parece ficar nítido

-[Thommy] Bem, como pode ver, meu lado natural das    barricadas é o mesmo que o seu e, como sabe, um dia eu acreditei.

-[Jessy] Mas a guerra mudou você.

-[T] Sim.

-[J] O homem que eu amava não conseguia falar quando voltou. Nem uma palavra.

-[T] Eu disse poucas palavras verdadeiras desde então[10].

Em nossa análise, só há um momento em que Thommy parece ter superado o trauma da guerra. Ele ocorre quando ele e Gracie tem sua primeira noite juntos. Ao acordarem, ela pergunta se ele está bem. Thommy diz “Não escuto as pás do outro lado da parede[11], numa clara referência a possível superação no plano pessoal desse acontecimento, o que a sequência da série deixa evidentemente claro que não acontecerá.

Nessa primeira parte, o trauma da guerra foi analisado no plano patológico-terapêutico sempre em nível individual. Os Peaky Blinders são um grupo. Tentemos então identificar como a experiência da guerra afeta a identidade desse grupo.

 

In the Bleak Mindwinter

Milhões de homens e mulheres viveram a experiência da guerra e saíram de lá traumatizados. Sendo assim, poderíamos nos questionar se de fato essa experiência é um elemento importante na identidade desse grupo já que afetou uma enormidade de pessoas, não sendo exclusividade dos Peaky Blinders.

Por isso, acreditamos que a recordação de um momento em particular da guerra é fundamental na identidade do grupo. Esse momento é narrado por Thommy no funeral de seu irmão John, na 4 ª temporada. Thommy diz

É assim que John queria que fosse. Uma fogueira. A verdade é que nós morremos juntos certa vez. Arthur, eu, Danny Whizzbang, Freddie Thorne, Jeremiah e o John. Separados do grupo de recuo, sem nenhuma bala, esperando a cavalaria prussiana vir e acabar conosco. Enquanto esperávamos, Jeremiah disse para cantarmos ‘In Bleak Mindwinter’. Mas fomos poupados. O inimigo nunca veio. E todos concordamos que tudo que viesse depois seria bônus. E quando chegasse a nossa hora, todos nós lembraríamos.[12]

Emerge aqui a ideia de uma segunda vida, já que aquela da guerra era considerada por todos não mais existente. E mais que isso, a forma de recordação seria cantar “In the Bleak Mindwinter”. Assim, a lembrança coletiva em momentos de dor, sofrimento ou quando o grupo se sente pressionado ou ameaçado deste momento específico é fundamental na constituição da identidade dos Peaky Blinders.

É óbvio que a identidade deve ser compreendida como representação produzida por um sujeito (individual ou coletivo) sobre si mesmo e pela qual deseja ser percebido pelos demais agentes sociais[13] e que aqui falamos apenas da forma como esse sujeito coletivo – a gangue – percebe-se a si mesma. A forma como os outros a percebem tem a ver, por óbvio, com a origem cigana e com o lugar onde surgiram, Small Heath, região extremamente pobre e violenta da cidade.

Essa identificação é elemento importante na medida em que faz com que Thommy perceba os limites e as barreiras impostas a um grupo que começa na ilegalidade – de fato, os muitos crimes praticados por eles nunca cessaram – que gostaria de tornar os negócios da família legítimos, mas que ao longo da série nota que não será o fato de terem negócios legalizados que os fará serem aceitos em certos círculos sociais da elite inglesa e, particularmente, londrina. Essa impossibilidade é enunciada pela líder sindical Jessy Eden em diálogo com Thommy. Eis:

-[Jessy] Eu pesquisei sobre você. Nós pesquisamos. Nunca foi amigo do governo. Eles usaram você. E imagino que já tenha aprendido que dinheiro algum o permite transpassar as barreiras de aço que separam as classes?

-[Thommy] Sim. Sim, aprendi[14].

Nossa análise fica mais interessante quando observamos o que Polly Gray diz em diálogo com Thommy após recordar o fato de quase ter sido morta na forca. Ela diz

Não estou ficando daquele jeito. Porque me dei conta de uma coisa na fogueira. Sou igualzinha a vocês agora. A você e ao Arthur. Eu estava morta naquela forca e aí fui salva. Então tudo a partir de agora é bônus. Mas o que eu não tinha entendido até hoje, é quando já morreu, você está livre.[15] [grifo nosso].

Ora, esse enunciado parece caminhar na direção do que Michael Rothberg chama de memória multidirecional[16]. Polly parece tomar de empréstimo a lembrança do In The Bleak Mindwinter, dos que lutaram na guerra, para dar sentido à uma experiência sua, de quase morte. Ou seja, a lembrança constante desse episódio da guerra pelos homens não impediu que uma mulher recordasse um acontecimento traumático de sua vida. Assim, essas duas memórias – a dos homens na guerra e de Polly na forca – não competem pelo mesmo espaço; pelo contrário, elas se imbricam. Isso acaba por matizar os vínculos diretos entre memória e identidade.

Assim, a Thommy e aos Peaky Blinders nada parece mais importar, pois tudo é bônus desde então, como mostra um diálogo seu com o garçom do pub The Garrison. Ao ser questionado se iria atrás do amor de Gracie, Thommy diz que já não se importa com ela, pois ela é parte do passado e também não se preocupa com o futuro. Após olhar para o relógio, ele enuncia a única coisa que importa: “Este um minuto. O minuto do soldado. Numa batalha é tudo que se tem. Um minuto de tudo, de uma só vez. Tudo que veio antes não é nada. Tudo o que vem depois não é nada.[17]

 

 

 


NOTAS

[1] Um aviso ao leit@r: haverá vários spoilers nesse texto.

[2] O elenco da série sofreu um duro golpe: o falecimento da atriz Helen McCrory (Polly Gray), uma das personagens centrais da trama, em abril de 2021, em decorrência de um câncer, impossibilitando sua participação na última temporada. Algumas mudanças no roteiro em função desse acontecimento são visíveis na sexta temporada.

[3] ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução Paulo Soethe (coord.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

[4] Agradeço aos comentários precisos e pertinentes de Charlene Morais e Cristiane Coimbra.

[5] RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Trad. Alain François [et al]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. P. 84.

[6] Temporada 1, Ep. 3. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2013. 57min.

[7] RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. P. 83-93.

[8] Temporada 1, Ep. 3. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2013. 55min.  Esta e demais traduções são minhas.

[9] À PAZ [Temporada 4, Ep. 6]. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2017. 56min. Esta e demais traduções são minhas.

[10] À REVOLUÇÃO [Temporada 4, Ep. 5]. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2017. 57min.

[11] Temporada 1, Ep. 5. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2013. 56min.

[12] BÁRBAROS [Temporada 4, Ep. 2]. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2017. 57min.

[13] POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 200-212, 1992.

[14] À REVOLUÇÃO [Temporada 4, Ep. 5]. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2017. 57min.

[15] BÁRBAROS [Temporada 4, Ep. 2]. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2017. 57min.

[16] ROTHBERG, Michael. Multidirectional memory: remembering the Holocaust in the Age of Decolonization. Stanford: Stanford University Press, 2009. P. 1-21.

[17] Temporada 1, Ep. 6. Peaky Blinders: sangue, apostas e navalhas. Direção: Steven Knight. Inglaterra: BBC, 2013. 54min.

 

 

 


Créditos na imagem: Peaky Blinders se preparam para confronto nas ruas de Birmingham. Série Peaky Blinders. Médium. Disponível em: https://medium.com/@matheusrrm/a-luta-de-classes-em-peaky-blinders-74f409d1b115.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “256”][/authorbox]