Comecei a escrever este texto às vésperas da final da 24ª edição do Big Brother Brasil, que aconteceu em 16/abr de 2024, há pouco mais de 1 mês. Os desdobramentos do pós-BBB 24 ajudaram a formar uma certa memória da temporada e a amadurecer algumas percepções. Por exemplo, a de que a final lembrou os dias de jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, quando telões são montados em praças públicas para exibição ao vivo das partidas, artistas são convidados, e o público comparece para uma grande festa Brasil adentro. Quem estava na pequena Alegrete, cidade com pouco mais de 70 mil habitantes do pampa gaúcho, ou na metrópole do Amazonas, a capital Manaus, ou na abençoada pelo Nosso Senhor do Bonfim, o Salvador da Baía de Todos os Santos, de onde vieram os finalistas, pôde agrupar-se para acompanhar a revelação do grande desfecho de um dos programas de maior sucesso da TV brasileira, o BBB.
Muitas são as formas de referir-se e classificar o Big Brother Brasil. Um experimento antropológico megalômano, uma sessão de tortura psicológica coletiva e televiosionada, uma máquina de fazer dinheiro, um programa de televisão super interessante, o lixo do gosto humanos exibido em rede nacional… O que é o BBB, afinal? O Big Brother Brasil é, antes de tudo, um programa de entretenimento para a televisão, formatado como um reality show. O formato é propriedade de uma produtora holandesa, a Endemol, e foi inspirado no livro 1984, do britânico George Orwell. O enredo de 1984 é determinado pela figura do Grande Irmão, um ser tirânico dotado do olho que tudo vê, e narra a jornada de Winston Smith, um cidadão comum de 39 anos que viu este sistema totalitário ser erguido, e a quem, até o dia 3/abr de 1984, restou o olhar pretensamente mudo sobre a vida provável e possível no interior do sistema. Pretensamente mudo pois os cidadãos dessa antiga e fictícia Londres, a terceira maior província da Oceania em 1984, são constantemente vigiados por uma “teletela”, um aparelho monitor que te olha enquanto você olha para ele. Qualquer gesto inadequado ao Grande Irmão pode ser passível de punição.
A ideia-forte da vigilância constante através de câmeras foi adaptada para o programa de entretenimento, que confina um grupo diverso de pessoas em uma casa cenográfica, onde são exibidas a todo tempo. O cenário da casa é importante pois sustenta a proposta de um gênero textual como o reality show, que propõe simular, em um show de TV, a própria realidade. Ao público é oferecida a oportunidade de assistir diversos indivíduos, com toda sorte de formação, personalidades e caráter, agindo em situações relativamente cotidianas, como nas tarefas domésticas ou em uma festa de fim de semana. O convívio já traz, em si, suas benesses e suas provações, seu potencial consensual e conflitivo para as relações humanas. Mas a presença das câmeras apimenta ainda mais estas relações, levando os participantes a agir em função de aparecer ou de esconder-se delas. E, apimentando ainda mais a exposição, o elemento competitivo. Ao final de mais ou menos 3 meses, 3 participantes terão sido escolhidos para chegar à final, mas somente um, o grande escolhido, colocará as mãos no pote de ouro, o prêmio milionário.
“Escape do paredão”. Este é o mantra mais repetido dentro da casa. Contido neste mantra está o chamado para que estejam atentos ao que acontece ao seu redor, que se posicionem e sejam sujeitos decisivos, que atuem sobre a realidade percebida e colocada para si, que façam o que for preciso para não terminarem na berlinda. Alerta à uma vida ativa e crítica no interior do jogo, comprometida com o tecido de suas próprias histórias. “O que for preciso” pode ser ter ímpeto para vencer as provas, que são de habilidade, de agilidade, de sorte ou de resistência, ter ousadia para disputar outras cartas e prêmios no jogo, como o surpresa Poder Curinga, comprado através de um leilão com a moeda local, as estalecas, e ter a sensibilidade necessária para adotar um posicionamento que seja ao mesmo tempo adequado para o público, agradável o suficiente para os juízes externos conduzirem o herói na sua jornada rumo à vitória, mas também adequado aos seus próprios valores e limites individuais. O dilema vale tudo pelos milhões? ocorre, inevitavelmente, a todos os participantes. E a resposta, afinal, só se alcança no decurso das decisões individuais em cada checkpoint de seus caminhos, prontamente avaliadas pelo público julgador.
O BBB é, indiscutivelmente, um dos programas mais assistidos da TV. Dados divulgados entre 9 e 11/mar de 2024 mostraram que, com dois meses no ar, o BBB 24 já tinha superado em 6% a audiência da edição de 2023. No mesmo marco, tinha sido exibido em 8 de cada 10 aparelhos de televisão e alcançado 118 milhões de pessoas. Até o fim da edição, manteve uma média de 20 pontos no Ibope e ocupou 43% das principais metrópoles do país (Painel Nacional de Televisão). Em termos de público, ampliou em 7% os espectadores adolescentes (14-17 anos), e em 3% os adultos (35-49 anos). Na web também deu muito certo: registrou 34% a mais de menções que em 2023. Teve quase 1.100 tags emplacadas nos Trends do X/Twitter Brasil e 245 no X/Twitter Mundo. O BBB 24 foi a produção mais assistida e mais consumida do streaming Globo Play durante o período de sua exibição. Foi um caso de sucesso e realizou a potência do conceito “do Plim ao Play”, que integra a comunicação através de canais de TV, computador e celular, e se baseia em qualidade, tecnologia e análise de dados.
A presença dos patrocinadores no programa é indicador do mesmo sucesso. Em 2024, o BBB levou um número recorde de marcas para o ar, 20, e vendeu todas as cotas do patrocínio – que foram ainda mais caras nesta edição. A Seara, por exemplo, foi a marca com maior engajamento do BBB 24, tendo avançado sobre 2023, quando ficou em segundo lugar, perdendo para o Zé Delivery. No marco de dois meses, já somava mais menções que no período correspondente do BBB 23 – 118,6 mil menções em 2023, contra 179 mil em 2024. Isto foi percebido pelo público, que notou que cada dinâmica, espaço, situação do BBB tinha se tornado espaço para publicidade. E o resultado veio. Em 2024, a Rede Globo teve o melhor primeiro trimestre do ano em arrecadação, R$ 3.7 bilhões, superando 2016, quando cobriu os Jogos Olímpicos no Rio/RJ. O sucesso foi tamanho, a ponto de garantir à Globo a renovação do contrato com a Endemol por mais 4 anos, deixando tudo certo para o programa ir ao ar até 2028. O BBB 24 ficou conhecido por ter recuperado o formato de uma crise histórica. O que quer que tenha se passado por lá, fato é que o público brasileiro gostou.
O BBB 24 foi assistido pela TV, e movimentou paixões e ações na web. Monitorando os dados digitais sobre o programa 24h/24h, a atenção máxima às respostas do público ajudou a direção a afinar o foco do enquadramento dos enredos desenvolvidos no programa. Além de entreter o público e emitir uma certa mensagem, como a comunicação clássica da televisão, o programa inovou ao trazer para a TV a análise de dados própria do ambiente digital. Exerceu, assim, o papel de influenciador, que diz de um ethos próprio do mundo digital, especialmente das redes sociais, o qual uma de suas características mais marcantes é o medo do cancelamento, fenômeno que parte da reprovação do público e que implica, justamente, seu poder de influência. Desse modo, considerando que o público se interessou pela edição, perguntar sobre o que o público gostou, o que o público aprovou e rejeitou, e com o quê exatamente se engajou, pode revelar o que está quente na linguagem atual dos brasileiros. É olhar para o BBB 24 buscando ver o que viu quem foi visto pela mesma tela.
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Analisemos, pois, o pódio do BBB 24, tomando-o como um índice das histórias que conquistaram as mentes e os corações dos brasileiros. Foi o vencedor desta edição do jogo, chegando ao primeiro lugar do pódio com 60.52% dos votos, Davi Brito, um jovem preto de 21 anos de idade. Soteropolitano, Davi era morador de Cajazeiras, um dos 41 bairros que formam a região do Miolo de Salvador, e trabalhava com a Uber até se tornar um brother. O campeão faturou o maior prêmio da história do BBB, R$ 2.92 milhões de reais. O vice-campeão, que levou 24.25% dos votos, foi Matteus Amaral. Gaúcho de 27 anos, estudante bolsista de Engenharia Agrícola, Matteus foi logo apelidado de “Alegrete”, tomando como seu o nome próprio de sua cidade natal. Matteus ganhou o prêmio de R$ 150 mil. Em terceiro lugar, com a premiação de R$ 50 mil, ficou Isabelle Nogueira, 31 anos, natural de Manaus/AM, com 14.98% dos votos. Formada em Letras, a amazonense chegou a lecionar, mas fez carreira mesmo como dançarina profissional. Por mais de dez anos foi ela quem deu vida à Cunhã-Poranga do Boi Garantido, no dionisíaco Festival de Parintins.
O Festival Folclórico de Parintins, maior e mais importante manifestação cultural do Amazonas, acontece anualmente em todo fim de junho. A festa traduz para a linguagem indígena o auto do boi sertanejo, tal qual era praticado por maranhenses que migraram do Nordeste para o Norte. Lembrando as competições entre as tragédias gregas, o festival acontece em um estádio próprio, o Bumbódromo, que pode receber mais de 35 mil espectadores. Lá, as agremiações do Boi Garantido e o Boi Caprichoso dispõem grandes alegorias onde será encenada a história do boi, morto pela língua e por amor, sacrificado e ressurreto. O enredo é desenvolvido em atos, e é julgado por 21 quesitos estruturantes. Alguns dos quesitos são os próprios personagens arquetípicos do auto, como os casos do Amo do Boi, da Sinhazinha da Fazenda, do Pajé, e da Cunhã-Poranga. De acordo com o regulamento do Festival de Parintins, item 9, “Cunhã-Poranga” significa “moça bonita, guerreira e guardiã, que expressa força através da beleza”. Até os anos 1980, a mais bela da aldeia só se expressava na parca figura de miss, mas a beleza foi deglutida no estômago do boi e ruminada como força feminina. Isabelle Nogueira, sem dúvidas, foi trajada de Cunhã-Poranga para o BBB 24.
Isabelle adotou um estilo de jogo na maior parte do tempo discreto, ainda que fosse fiel escudeira de Davi, que jogava no sentido contrário à noção de discrição. No primeiro momento, a moça só deixou visível a sua beleza indígena, mas foi cutucada com vara curta e virou onça. “É noite de lua cheia e eu fico assim, acesa”, se defendeu em seu primeiro conflito, com MC Binn. O funkeiro ouviu um trecho de um desentendimento entre Isabelle e Davi, e supôs que ela estava sendo manipulada por seu aliado. Binn levou essa percepção para ela em uma conversa, quem foi assertiva na resposta: “não nasci para ser manipulada”. A Bela Nogueira foi a grande irmã de Davi dentro do BBB 24 desde o início do jogo, quando, para a maioria dos participantes da casa, independentemente dos grupos rivais que viriam a se formar, já estava difícil estabelecer um convívio amistoso com o participante. As impressões gerais sobre Davi eram díspares, aporéticas. Ele foi o corpo do embate entre Bem e Mal, ora encarnando todo o Bem, ora todo o Mal. E Isa ficou no meio deste espectro. Apesar do brado retumbante contra Binn, fato é que até o último dia de jogo Isabelle esteve enredada no dilema ser ou não ser manipulada por Davi, eis a questão. Por diversas vezes, foi confrontada pela casa por essa relação e enquanto lutava pelo próprio Davi, lutava também pelo direito de viver seu destino ao lado daquele que escolheu chamar de amigo. Essa amizade foi a pedra fundamental de suas convicções e o farol para muitas de suas ações. Guerreou, afinal, por poder dizer sua própria palavra e seguir suas decisões. E foi justamente isto que esteve em jogo quando se aproximou de Matteus Alegrete, que a acompanhou no fim – não só do jogo, o fim da finitude, mas ao fim de seus destinos, o fim da finalidade.
Matteus Amaral entrou no programa com o desejo de levar para a Globo a cultura do Alegrete, no Rio Grande do Sul. Contou ter sofrido bullying na infância por usar roupas típicas da estância, traje composto por boina, camisa abotoada, cinto, bombacha e bota. No BBB 24, o exibiu com orgulho. Seu sotaque, considerado “carregado”, que também foi motivo de chacota no período escolar, até chamava a atenção no BBB 24, mas de uma forma leve, fazendo todos rirem, como quando acusava alguém de “se fazer de cabrito vesgo pra mamar em duas tetas”. Fazia questão de mostrar que era um sujeito de vida singela e gostoso da lida do campo. “Sou simples. Cato bosta e domo cavalos”, apresentou-se. Mostrava-se apaixonado pelo seu cavalo com nome de passarinho, o Chupim, que ganhou mais dois companheiros de estábulo, dois raçudos, como presente de Jayme Monjardim. Matteus cotidianamente compartilhava saberes sobre a vida no campo como quem compartilha sobre a vida em si, ela mesma, em absoluto. Falou, por exemplo, de como são sensíveis e, exatamente por isso, absurdamente fortes, os cavalos.
Égua da luta! Acostumado aos desafios da terra, no BBB 24 Matteus se enredou, mesmo, foi nos fios do amor. Chegou ao fim com Isabelle Nogueira, mas para que seu destino se completasse, precisou receber o punhal de um amor traído. Seu coração já havia sido quebrado por outra sister, a Deniziane, 9ª eliminada do programa, com 52,02%. Dizem que foi a torcida de Davi, que se voltou contra ela na briga dos limões. Mas, na verdade, foram as moiras. Anny entrou no BBB dizendo que tinha uma orientação intuitiva muito clara: não deveria formar casal lá dentro. Acontece que Matteus foi se achegando… E Anny, errante em seu caminhar. Sua amiga, Beatriz Reis, costumava dizer que ele era o genro que toda mãe queria ter. Toda mãe, não necessariamente a filha… O sapatinho de Cristal que guiava a busca do Príncipe Encantado cabia exclusivamente em um só pé, o da Cinderela… Ou melhor, da Cunhã-Poranga. E de mais ninguém. Correndo o risco de ser julgado mal pelo público por já ter se relacionado com uma sister na mesma edição, Matteus foi levado pela toada de Isa, a Bela. O respeito, principal valor de seu jogo, seria abalado com o gesto? Se abalado, seria tão trágico o seu destino quanto o de Anny? O público fez coro que não, e prevaleceram os fatos de que já haviam terminado, e de que Anny não era lá tão a fim do garanhão. O Sapo – neste caso, um brazuca cururu – precisava mesmo da Cunhã-Poranga para encantar-se como príncipe. “Posso não ser boi-bumbá, mas meu coração por você está garantido”, disparou o gaúcho como uma flecha, acertando em cheio a moça bonita da aldeia amazônida.
Olhando retrospectivamente, a sensação é que a personalidade dos personagens já estavam definidas, dispostas, lançadas. Ao menos, seus caracteres arquetípicos. Isabelle Nogueira, uma mulher bela e madura, vivente da floresta, conhecedora das lutas da vida, dos caminhos do mundo e da palavra de Deus, que pegou emprestadas as vestes da Cunhã-Poranga e foi guerrear com beleza. Conhece o bálsamo da cura, e expressou seu aspecto guardião, protetor, em sua relação com seu curumim, Davi. A amizade com Davi revelou um outro arquétipo estruturante de sua personagem, pouco trabalhado no texto e muito no contexto, o de Irmã Mais Velha. Em diversos momentos, Isa falou do compromisso e do cuidado com sua irmã de 9 anos de idade e, em doses altas, este dispositivo também se expressou no BBB 24. Sabia ser Irmã Mais Velha aqui fora e levou essa bagagem lá para dentro. A história da guerreira e seu curumim também foi escrita com compromisso e cuidado. Quando pensava alto, gostava de registrar que não concordava com todas as atitudes do brother, que o aconselhava e o repreendia nas ações das quais discordava, sem assumir para si a responsabilidade pelo destino por ele traçado, e sem deixá-lo pelo caminho.
Assim como Isabelle, Matteus também parece ter revelado no programa a força do Irmão Mais Velho. Aproximou-se das gurias quando ainda eram amigas de sua (ex)namorada, Anny, e chegaram em um bonito lugar de proteção e cuidado, de respeito à liberdade e à autonomia. Associou-se a Davi e teve que se defender da casa lembrando que não era seu pai, mas foi seu Irmão Mais Velho na maior parte do tempo. Foi companheiro de Davi, servindo de anteparo para que o baiano projetasse seus discursos. Em algumas vezes, assim como Isabelle, o aconselhou e o repreendeu. Disputaram entre si a atenção da moça bonita, de quem Davi tinha acesso a todas as atenções e não escondia roer-se de ciúmes. Chegaram a enfrentar-se em um leve desentendimento na reta finalíssima quando, tendo eliminado todos os participantes do grupo Gnomos, Davi decidia se eliminaria quem considerava mais fraco ou mais forte e virou a mira para seus aliados, sendo Matteus o primeiro. O gaúcho retrucou e o movimento de Davi foi interrompido, e a pólvora estourou em outro lombo. Trabalhador do campo, estudioso das construções, falador da lida e da vida, de caráter bom e respeitoso, o genro que toda a mãe quer, um príncipe encantado, tudo isso em roupas de peão dos pampas e sotaque da estância. No sentido inverso ao de Isabelle, apresentou os caracteres antes de constituir o arquétipo, já que sua missão principal seria, afinal, apresentar o gaúcho do Alegrete.
***
Continua…
O texto foi originalmente enviado em maio de 2024. Devido às invasões que comprometeram o funcionamento do site da HH Magazine, sua publicação precisou aguardar o restabelecimento pleno da plataforma.
Créditos na imagem de capa
Ana Carolina Monay dos Santos
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