Imagine dormir, cair em sono profundo, e acordar sete séculos no futuro. Foi exatamente isto que aconteceu ao francês Louis Mercier, um personagem do Ancien Régime. Depois de passar uma noite em companhia de um amigo inglês, em animado debate filosófico, adormece e acorda 700 anos à frente do seu tempo, em uma Paris profundamente transformada. A monarquia ainda vigora, mas temperada com uma organização social e econômica mais justa; a diferença entre ricos e pobres não desapareceu, mas as distâncias diminuíram; e, como não há classes ociosas, o trabalho foi reduzido significativamente. Assim, desenha-se um futuro de avanço e progresso, apoiado em convicções humanistas, esclarecidas e racionais – o sucesso das melhores ideias dos philósophes iluministas.
O romance do século XVIII, L’An 2440, agradou aos leitores, tornando-se um best seller da publicação clandestina de sua época. À necessidade de contrafação adivinha da escrita irônica, pela qual o autor utilizava as figuras menores dos censores, para zombar das autoridades do reino. A censura, inclusive, é um dos temas fundamentais da obra. No último capítulo do primeiro volume, Mercier visita abiblioteca nacional. Supõe que vai ao encontro de uma infinidade de tomos cuidadosamente organizados, como na biblioteca do rei Luís XV. Para sua surpresa, porém, chega a uma sala estreita, com quatro pequenas estantes. Abismado, pergunta o que aconteceu com a quantidade enorme de material impresso acumulado desde o século XVIII, os manuscritos e incunábulos, os folhetos, as gravuras e tudo mais. Queimamos tudo, responde o bibliotecário, 50 mil dicionários, 100 mil livros de poesia, 800 volumes de legislação, 1 milhão e 600 mil livros de viagem e 1 bilhão de romances. Uma comissão de virtuosos leu todos os livros, eliminou o que era falso e inútil, resumindo tudo à sua essência: algumas verdades e preceitos morais básicos, que cabem perfeitamente nas quatro estantes.
Como na Bibliotèque du Roi, a Fundação Palmares reduz tudo ao essencial. Reunidos desde 2019, o grupo responsável pelo exame dos livros realizou um “levantamento temático”, “trabalho árduo e dedicado” de equipe, a fim de enumerar toda obra afastada da missão da instituição. Metodologicamente, por força de regimento e de lei, julgou-se inadequado e alheio o conteúdo voltado a temáticas como sexualização de crianças, ideologia de gênero, pornografia e erotismo, manuais de guerrilha, de greve e de revolução, “bandidolatria” e “bizarrias”, 54% do acervo bibliográfico.[1]
Algumas exclusões são diretamente justificadas. Machado de Assis e Câmara Cascudo, por exemplo, foram condenados devido à desatualização. Não é aceitável que se escreva “chronica” em vez de “crônica”, “Hespanha” em vez de “Espanha” ou “annos” no correto lugar de “anos”, como se verifica na edição de 1938 de Papéis Avulsos. Florestan Fernandes e Aldo Rebelo integram a lista por “intromissão partidária” e o filósofo Ruy Fausto por escrever sobre Marx.
Outras exclusões são sumárias, apresentando-se apenas as informações bibliográficas. Para citar apenas os brasileiros novamente: Bernardo Ricupero, Caio Prado Junior, Marilena Chauí, Maria Cristina Machado, Nelson Werneck Sodré, Moniz Bandeira, Maria da Conceição Tavares, Mauricio Grabois e Celso Furtado. Dentre outros, diversos outros.
Segundo a professora Marisa Midori (Escola de Comunicação da USP) o estudo carece de cuidado biblionômico, uma vez que as referências listadas são incompletas; a crítica “metodológica” aos relatórios anteriores é equivocada; e, a ideia de que livros publicados antes do novo acordo ortográfico de 2009 são ultrapassados é descabida. Faltaria à equipe coerência externa à afirmação de que parte do acervo é alheio à temática negra, considerando que a questão é nacional e de classe. Igualmente, faltaria coerência à crítica interna, ao distinguir os livros arbitrariamente como alinhados ou alheios à missão institucional.[2]
Em parecer técnico e nota de repúdio publicada no YouTube, Ana Virginia Pinheiro (Biblioteca Nacional e Unirio), destaca que não consta na literatura científica da área, devidamente reconhecida por lei e de competência atribuída às instituições de ensino superior, os critérios de seleção apontados pela Fundação Palmares. O relatório emitido, portanto, carece de bases técnicas e científicas mínimas que suportem a argumentação da equipe responsável. Políticas e parâmetros claros de diagnóstico da coleção, tipologia documental, estudos de uso pela comunidade e bibliografia científica sequer aparecem no documento. Em seu lugar, a única orientação adotada foi a exclusão.[3]
Em contrário às duas professoras, mergulhadas no debate academicista – ligado somente aos círculos universitários, sem contato com a sociedade – julgamos que cabe saudar a Fundação. Não é a primeira vez, nem será a última, que a seleção cuidadosa transforma um acervo sem finalidade em uma livraria útil a esta ou àquela missão. Na verdade, o olhar atento do historiador nos informará que esta é a regra, marcada pela reincidência, não a exceção. Assim, ao mesmo tempo em que se baseia na tradição, caminhando por terreno firmemente assentado, também se inova na administração pública, dando maior leveza e praticidade ao patrimônio acumulado de forma desorganizada. Uma verdadeira biblioteca do futuro, como sonhou Mercier.
NOTAS
[1] CNIRC. Retratro do Acervo: A dominação marxista na Fundação Palmares, 1988-2019. (Relatório). [S. l.]: Fundação Palmares, 2021. Publicado em: 11 jun. 2021. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2021/06/atual-cnirc-01-17-06-21.pdf. Acesso em: 17 jan. 2021.
[2] ] MIDORI, Marisa. O governo Bolsonaro e o mal-estar dos livros: Sobre o expurgo do acervo bibliográfico da Fundação Palmares (primeiro ato). Jornal da USP. (Site). Publicado em: 18 jun. 2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/o-governo-bolsonaro-e-o-mal-estar-dos-livros-sobre-o-expurgo-do-acervo-bibliografico-da-fundacao-palmares-primeiro-ato/. Acesso em: 18 jun. 2021.
[3] PINHEIRO, Ana Virgínia. Parecer técnico sobre o expurgo de livros da Fundação Palmares. YouTube. (Plataforma digital). Reprodução de vídeo, 14 min. Publicado em: https://www.youtube.com/watch?v=M–de6pkYPA. Acesso em 20 jun. 2021.
Créditos na imagem: Reprodução. Grandville. Ombrés porté. 1836.
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