A palavra “conquista” evoca muitas questões historiográficas; hoje essa noção é empregada por inúmeros historiadores, segundo os quais abdicar dela seria uma tentativa de apagar a violência inerente ao processo de estabelecimento das colônias e da relação dos europeus com os povos nativos no que atualmente é a América. A trajetória de uma noção muda constantemente, o sentido que esses termos transmitem são ressignificados e novas visões são apresentadas. Assim, quando pensamos essas alterações associadas ao termo conquista, podemos encontrar amparo nas contribuições de Tzvetan Todorov e Matthew Restall.
Tzvetan Todorov era um linguista búlgaro radicado na França, cuja obra destacada aqui é A Conquista da América: a Questão do Outro. Embora o próprio tenha declarado que não era seu objetivo escrever uma história da Conquista, mas sim utilizá-la para falar sobre o presente, seu livro reverberou e, até hoje, é pilar em livros didáticos e programas de cursos universitários (Kalil, Fernandes, 2019, p. 89). Na obra ele tenta explicar como a “conquista” se deu com poucos espanhóis e escasso conhecimento da região e, nesse sentido, apresenta, primeiramente, as concepções presentes na historiografia sobre a causa da “conquista” — guerra bacteriológica, superioridade bélica, rivalidade entre as comunidades, entre outras — para, posteriormente, argumentar sua tese: a “conquista” se deu devido à linguagem, europeus e nativos operam em dois campos semânticos e de comunicação, nos primeiros ela se dava entre homens e, nos segundos, a natureza e o divino se manifestavam pelos sacerdotes, ou seja, entre o homem e o mundo (Todorov, 1999, p. 80).
O autor acredita que os espanhóis venceram pelo uso dos signos. Sua abordagem semântica requer a interpretação desses signos e que venha a foco uma suposta hierarquização da linguagem. Como os incas seriam desprovidos de escrita, os astecas possuíam escrita pictográfica e os maias tinham “rudimentos” de escrita fonética, os europeus, para ele, estariam melhor habilitados para lidarem com os signos (Ibidem, p. 94). Esse suposto “domínio” dos signos seria crucial porque a sociedade mexica baseava-se em presságios e previsões. Todorov argumenta que se em suas interpretações da realidade o tempo é cíclico, seria possível prevê-lo e acrescenta que, pelo ineditismo da situação, o “rei” Montezuma II teve dificuldade em “improvisar” no momento da “conquista” não prevista por seus antepassados (Ibid., p. 82 e 102).
Encontramos alguns “pecados” no livro de Todorov, como anacronismos e proximidades com interpretações definidas por Restall como “mitos da conquista”. Ainda assim, o autor rompe com dois entendimentos muito consolidados na historiografia: 1. a interpretação católica da “conquista” que coloca os europeus como aventureiros superiores e diminui a brutalidade do processo e 2. a Leyenda negra, concepção protestante que apresenta os colonos como monstros e sanguinários. Contudo, ele recai, em alguns momentos, na ideia de “choque entre dois blocos” que coloca os indígenas como dóceis — como a prisão de Montezuma —, ingênuos e, simultaneamente, bárbaros. Posto isso, o linguista talvez caminhe, em seu parecer sobre a linguagem e a técnica, para o “mito da superioridade” e, na análise da riqueza, desconsidera a possibilidade de outros bens cobiçáveis além de metais.
T. Todorov inova ao fundamentar-se na perspectiva dos vencidos. Para isso ele, em um processo analítico singular, reanalisa fontes tradicionais (Kalil, Fernandes, 2019, p. 88), mas, especialmente, emprega relatos dos indígenas transcritos por missionários. Restall dá um passo adiante: serve-se, como fonte, de relatos deixados pelos Maias e por principales, suas traduções e suas ambiguidades. Matthew Restall é um historiador britânico e um dos maiores expoentes da chamada “Nova História da Conquista” e da “Nova filologia”. Em seu livro Sete Mitos da Conquista Espanhola ele tenta desmistificar o processo da “conquista”, tornando-o menos maniqueísta e mais complexo, mostrando haver interesses em confronto de ambos os lados.
Portanto, visa romper com as ambivalências das representações indígenas presentes nas metanarrativas que os apresentam, concomitantemente, como ingênuos e sexualizados; selvagens, infantilizados e imóveis (Restall, 2006, p. 189). Ao colocar a resistência e lutas diretas ou indiretas por parte dos nativos, a Nova História da Conquista deve cuidar para não incorrer na Leyenda rosa, isso é, o apagamento da violência. Com os devidos cuidados, vislumbra-se um ponto basilar: a posição do indígena como ativo, com interesses a serem defendidos; por exemplo, durante muito tempo os Tlaxcala acreditaram terem manipulado os espanhóis contra os mexicas, e não o oposto (Ibidem, p. 212-213). No capítulo “Os índios estão se acabando: o mito da desolação nativa” Restall aprofunda seu estudo sobre o mito da inatividade e da construção dos indígenas como ignorantes, infantis e nefastos, além da suposta crença deles, um pouco explorada por Todorov, de que os espanhóis eram deuses. O historiador aponta a raiz de muitas dessas questões pela existência, na narrativa historiográfica tradicional, do “mito do salvador branco” que substituiria a cultura dos indígenas (Andrade, 2008, p. 3).
Uma das metanarrativas vigentes na ocasião da “conquista” foi que os conflitos estariam ocorrendo nos moldes de sobre-humano versus subhumanos (Restall, 2006, p. 207). Muitas das ideias medievais de que existiriam seres em um estado intermediário entre os animais e humanos foram empregadas nesse contexto; a existência de “monstros” e de “indígenas disformes” se daria, para eles, devido ao calor (O’Gorman, 1995, p. 27). Desse modo, para os conquistadores, os nativos eram uma tábula rasa; tais colonos ressoavam três grandes mitos sobre os nativos: 1. a “ausência” de religião que facilitaria a cristianização; 2. a crença de que eles eram ‘mudos’, isso é, que tinham uma linguagem tão primitiva que não expressavam uma comunicação verdadeira e 3. a pouca utilização de armas por serem “rematados covardes que agem como crianças” (Restall, 2006, p. 186).
Em seguida, Restall (Ibidem, p. 192-201) questiona a ideia da apoteose dos colonos, se ela aconteceu foi pontualmente e por pouco tempo, considerando que as fontes mostram ambiguidades de tradução, bem como a ausência de registros nas correspondências para o rei. Essa apoteose insere-se em um contexto amplo que coloca o nativo como crédulo e primitivo e os espanhóis como superiores na manipulação e na tecnologia. Apesar da colaboração de algumas elites nativas na elaboração dos planos da “conquista” e da vida colonial, o mito da desolação esteve vigente por tanto tempo por ser consoante a cosmovisão europeia do século XVIII; ele explica a colonização e implica uma reação de desigualdade e deferência que influi na estrutura colonial.
Restall critica nominalmente Todorov. Para o historiador, este aceita o mito da Apoteose de Cortez sem o questionar, ainda que, ressalte, ele não seja o único, visto que tal mito “se encontra ainda mais arraigado na compreensão da Conquista no Ocidente hoje do que no século XVI” (Ibid., 2006, p. 192). Essa divergência evidencia outra diferença entre Todorov e Restall: o primeiro atribui grande importância aos presságios, enquanto Restall argumenta que “os povos nativos não se caracterizavam por uma propensão inata ao pensamento esotérico, mas tinham tanta probabilidade quanto os europeus de fazerem escolhas com base na ‘pragmática do senso comum’” (Ibid., p. 207).
Não obstante, acredito que ambos incorrem em deslizes metodológicos ao projetarem nos europeus do século XVI compreensões vigentes no século XIX; por exemplo, o emprego da noção de “progresso”, praticamente inexistente naquele momento. Por conseguinte, uma melhor historização dos colonizadores, considerando suas variações regionais, torna-se indispensável, pois os europeus, em sua maioria, compartilhavam uma percepção cíclica do tempo e não eram todos católicos, havendo uma diversidade religiosa em convivência (Burke, 2010, p. 80–81 e 91). Por conseguinte, os “presságios” não constituem um elemento exclusivo dos nativos americanos.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, M. T. Resenha: Sete mitos da conquista espanhola. Revista História em Reflexão, Dourados: UFGD, v. 2, n. 3, jan./jun. 2008.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GRUZINSKI, Serge. A águia e o dragão: ambições europeias e mundialização no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KALIL, L. G.; FERNANDES, L. E. Narrando a Conquista: como a historiografia leu e interpretou os acontecimentos ocorridos no México entre 1519 e 1521. História da Historiografia, v. 12, n. 30, maio/ago. 2019, p. 71-103.
O’GORMAN, Edmundo. La invención de América: investigación acerca de la estructura histórica del nuevo mundo y del sentido de su devenir. 4. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.
RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 68-112.
Créditos na imagem de capa:
Na obra, “Os espanhóis, com aliados tlaxcalanos, combatem os astecas, que atiram pedras.” (Restall, 2006, p. 189).