O presente ensaio busca traçar as definições da genealogia do termo gênero para compreender os desdobramentos políticos em que está inserido o contexto democrático brasileiro, o qual vem propiciando a ascensão de movimentos neoliberais a partir da adesão de manifestações religiosas contra a ideologia de gênero como forma de validar discursos de ódio a minorias.
Assim, em caráter inicial, parte-se do pressuposto que a categoria gênero é construída socialmente, com o objetivo de colocar em questão noções que são consideradas essencialistas sobre a sexualidade.
Portanto, mesmo que a adoção do termo “gênero” tenha posteriormente repercutido em distintos graus de aceitação dentro do próprio movimento feminista e tenha resultado em uma série de debates quanto aos seus efeitos tanto epistemológicos quanto políticos, é evidente que as reações mais severas vieram de movimentos conservadores. Isso levou à questão do que é gênero em si, sendo esta uma divisão crucial ao compreender que o termo não é uma mera categoria analítica, mas sim uma relação de poder. Assim, os padrões de sexualidade feminina são, inescapavelmente, um produto do poder dos homens utilizado como instrumento para definir o que é necessário ou desejável. É um poder que, historicamente, está enraizado (WEEKS, 2000, p. 40).
Dessa forma, as reações anti-gênero e sua consequente construção de um “pânico moral” visando frear os avanços de políticas inclusivas, são uma resposta direta aos avanços de pautas feministas que vêm sendo desenvolvidas em conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) desde os anos de 1990. Como exemplo temos a Declaração e Programa de Ação da 2ª Conferência Internacional de Direitos Humanos realizada em Viena, no ano de 1993; a Declaração e Plano de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada em Cairo no ano de 1994; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em Belém no ano de 1994 e a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim no ano de 1995.
Todas essas convenções destacam e reconhecem a garantia dos direitos humanos das mulheres como uma parte inalienável, integral e indivisível de seu conteúdo. Elas tratam do conceito de saúde reprodutiva, determinam a violência contra a mulher como violação de direitos humanos, manifestam as relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens e definem o conceito de gênero para a agenda internacional, representando consenso dos Estados-membros das Nações Unidas com um compromisso mínimo com os direitos humanos das mulheres.
Como uma resposta quase automática aos avanços das pautas feministas, movimentos conservadores, os quais entendem gênero como uma natureza determinista que serve para delimitar os papéis de cada sexo, visto que em sua concepção o masculino e feminino são complementares, uniram forças para frear o avanço de pautas progressistas em torno do gênero. Assim, surge a pauta da noção de ideologia de gênero como uma estregia política eficaz viabilizando a atuação conjunta de atores cujos interesses são originalmente distintos (BIROLI, 2019, p. 79).
Para além das igrejas católica e evangélica, houve ainda a adesão de políticos neoliberais, profissionais do direito, da ciência política entre outras áreas, os quais somam esforços para combater ativamente um inimigo em comum: a suposta ascensão da ideologia de gênero e a extinção do núcleo familiar.
Em um contexto onde até mesmo alguns acadêmicos buscam combater o avanço de políticas de gênero, existem trabalhos como os de Jorge Scala (2010, p. 43-59), que possuem forte influência em manifestações pela manutenção da família tradicional e contra governos de esquerda, especialmente na Argentina e no Brasil, posteriormente espalhando-se por toda a América Latina. “O el género como herramienta de poder” tem a pretensão de elucidar quanto a suposta necessidade de combater ativamente o que denomina como uma “ideologia”, o que, na prática, só serve para validar discursos de ódio oriundos de movimentos conservadores que posicionam-se abertamente contra minorias.
Essa disputa pela genealogia do termo “gênero” vem ganhando espaço em discussões que envolvem a saúde reprodutiva de mulheres, a educação sexual nas escolas, os casamentos não-heterossexuais, a adoção por pessoas do mesmo sexo ou o próprio reconhecimento de identidades não-binarias, por exemplo.
Assim, a luta contra a ideologia de gênero seria uma resposta aos avanços que vêm ocorrendo a passos tímidos na América Latina quanto à temática dos direitos sexuais e reprodutivos, embasados não somente pela igreja, mas com adesão de organizações não governamentais caracterizadas por um forte perfil religioso e conservador.
Ao apresentarem-se como organizações seculares e democráticas, buscam elucidar o povo para os “perigos da ideologia de gênero” por intermédio de diversas ações políticas, onde utilizam de ferramentas como o lobby legislativo ou as denúncias a funcionários públicos, além de ações jurídicas mediante a apresentação de ações judiciais em que usam argumentos que julgam ser legais e “científicos” (CAMPANA; MISKOLCI, 2017, p. 729).
Por conseguinte, a construção da ideologia de gênero enquanto um conceito dá-se mediante a estruturação de um discurso que ressignifica essas palavras através de um significado até então inexistente, ocorrendo em grande parte pelo próprio discurso que a denúncia.
A ideologia de gênero é compreendida como uma entidade discursiva que se constrói em e a partir do discurso (SILVA, 2021, p. 333), onde os setores conservadores operam mediante confusões terminológicas e distorções da semântica, impondo conotações negativas ao termo com a finalidade de propagar o pânico moral e estimular a insurreição da população contra quaisquer avanços no campo dos movimentos feministas, minorias sexuais e LGBTQIA+.
Esse combate se dá mediante a propagação de pânicos morais, os quais emergem a partir do medo social com relação às mudanças, especialmente as percebidas como repentinas e talvez por isso mesmo ameaçadoras (MISKOLCI, 2007, p. 103). No caso da América Latina, o discurso anti-gênero, para além de combater ativamente o caráter ideológico de políticas e teorias de gênero, questões de gênero e especialmente quaisquer avanços atinentes a pautas LGBTQIA+, tornaram-se requisitos básicos para a composição identitária de partidos e candidatos da extrema direita neoconservadora (SILVA, 2021, p. 334).
A estruturação do pensamento neoconservador enquanto teoria, discurso ou prática, aponta que a atual crise que estamos vivendo quanto a valores (aqui encaixam-se questões de gênero e sexualidade) abriria espaço para a destruição das fundações da moralidade social (CORSETTI, 2019, p. 775).
No Brasil, o movimento antigênero começa a ganhar destaque a partir de 2011, no exato ano em que o Supremo Tribunal Federal (STF) veio a reconhecer a eficácia legal da união entre pessoas do mesmo sexo, sendo o estopim para os protestos neoconservadores que deram-se a seguir, mas não foi o único.
Um segundo motivo também foi o material didático do programa escola sem homofobia, o qual seria distribuído em várias escolas públicas, mas que após a forte oposição de conservadores, os quais apelidaram o material de “kit gay”, foi vetado pela presidenta Dilma Rousseff.
Paralelamente a isso, em um contexto onde há uma crescente contestação religiosa e conservadora quanto ao “Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBTIA+“, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara começou a ser controlada por um político neopentecostal em 2013 com o deputado Marco Feliciano do (PSC- SP).
Seguindo essa tendência, já em 2015, Eduardo Cunha (PMDB) é eleito presidente da câmara, o que corroborou para favorecer grupos católicos os quais estavam comprometidos em combater o conceito de ideologia de gênero. Por conseguinte, com o favorecimento de espaços para grupos católicos e pentecostais, somados a diversos conservadores no Congresso, como latifundiários e armamentistas, surge uma forte bancada conservadora, apelidada pela mídia como bancada BBB (boi, bala e bíblia).
Todos esses desdobramentos resultaram na eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018, pois o sintoma decorrente do pânico moral em torno das disputas pela semântica da palavra gênero, culminou em uma grande convulsão social que serviu de palco para a campanha que mobilizou-se abertamente pela luta contra a ideologia de gênero ao resgatar valores como “Deus, pátria e família”. Muito além do mero campo discursivo, o primeiro ano de governo do ex-presidente serviu de palco para um desmantelamento de políticas públicas ligadas a gênero, para além disso, serviu para validar não somente a violência física contra minorias, como também violências simbólicas de toda ordem.
Assim, conclui-se que os movimentos anti-gênero que estabeleceram-se no Brasil funcionam como uma ferramenta para legitimar a violência a sujeitos que não se enquadram nos padrões de hierarquia de gênero estabelecido por movimentos conservadores, as disputas em torno da ressignificação do que é gênero entre a comunidade científica e religiosa é nítida, tendo como principal fundo o sistema educacional.
Por intermédio do campo discursivo de ação contra essa chamada “ideologia”, ganharam espaço membros e partidos da extrema direita neoconservadora, os quais disseminam o pânico moral através de discursos, práticas e teorias os quais apontam que garantir um sistema inclusivo a minorias causará a destruição das fundações familiares, nesse viés, o gênero seria o principal inimigo em comum dos neoconservadores.
Esse fenômeno é produto da reação desses movimentos contra os avanços de liberdades individuais de decidir sobre o próprio corpo, a própria sexualidade, as demonstrações de amor, os direitos reprodutivos e tudo o que vai na contramão do que é considerado “moral” pelos religiosos.
Nesse bojo, em detrimento da constante ameaça a direitos humanos universais, destacando os de mulheres, negros e membros da comunidade LGBTQIA+, os quais encontram- se em uma ameaça cotidiana, ocorre a produção de processos de desdemocratização, que se retroalimentam graças à combinação de movimentos neoliberais com o campo religioso, sob a roupagem do combate ativo à “ideologia de gênero”, atuando como causa e efeito da perda de confiança em partidos políticos e na representação democrática.
REFERÊNCIAS
BIROLI, Flávia. A reação contra o gênero e a democracia. Buenos Aires: Revista Nueva Sociedad, v. 23, n. 65, 2019.
CAMPANA, Maximiliano; MISKOLCI, Richard. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, Brasília, Vol. 32, n. 3, 2017.
CORSETTI, Berenice. Neoconservadorismo e Políticas Educacionais no Brasil. São Leopoldo: Educação Unisinos. Vol. 23, n. 4, 2019, p. 774-784
MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, 2007.
ONU Mulheres. Declaração e plataforma de ação da IV conferência mundial sobre a mulher. Pequim: 1995. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp- content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf>. Acesso em 15 jul. 2023.
ONU Mulheres. Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Belém: 1994. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp- content/uploads/2013/03/convencaobelem1994.pdf>. Acesso em 15 jul. 2023.
ONU Mulheres. Relatório da conferência internacional sobre população e desenvolvimento. Cairo: 1994. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp- content/uploads/2013/03/declaracao_cairo.pdf>. Acesso em 15 jul. 2023.
ONU Mulheres. Declaração e programa de ação de Viena. Viena: 1993. Disponível em:
<http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_viena.pdf>. Acesso em 15 jul. 2023.
SCALA, Jorge. La ideología del género o el género como herramienta de poder. Rosário: Ediciones Logos, 2010.
SILVA, Elder. Neoconservadorismo e ofensivas antigênero no Brasil: a mobilização da “Ideologia de Gênero” e a produção de LGBTfobias no Governo Bolsonaro. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura. Vol. 04, n. 14, 2021.
PARKER, Richard. Cultura, economia política e construção social da sexualidade. In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. LOURO, Guacira. (Org.). 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. LOURO, Guacira. (Org.). 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Créditos da imagem: Reprodução. Domínio Público.
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text] [authorbox authorid=”396″]