HH Magazine
Ensaios e opiniões

A educação pela derrubada

De tempos em tempos, em nossas formas cada vez mais aceleradas da contemporaneidade, alguns temas e objetos de debate, mesmo não sendo inteiramente novos, ganham impulso renovado nos dispositivos digitais e nos meios virtuais – esses suportes do nosso espaço público. Nas últimas semanas, dia após dia, vários textos e artigos expuseram pontos de vista por vezes radicalmente opostos a respeito da controvérsia quanto à derrubada de estátuas que homenageiam indivíduos cujas trajetórias foram marcadas por inúmeras violências e opressões cometidas contra a população negra e indígena. Curioso movimento de ideias, quase frenético, em relação a objetos que são praticamente invisíveis no nosso cotidiano, exceto quando eles não mais estão lá ou estão no chão ou no fundo de rios.

As intervenções tiveram lugar em diversas parte do mundo e foram resultantes da onda de manifestações antirracistas que se alastraram após o brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Por outro lado, essas iniciativas iconoclastas possuem já uma longa história. O revolucionários franceses colocaram no chão símbolos e monumentos relacionados à antiga ordem aniquilada. Mudanças de regime político são também pródigas em produzir iconoclastias como parte da afirmação de uma nova soberania. Mais recentemente, em 2015, na África do Sul, o movimento Rhodes deve cair (Rhodes Must Fall) interpelou as autoridades para que a estátua do colonizador e racista Cecil Rhodes fosse retirada da Universidade da Cidade do Cabo. Entre nós, Borba Gato, o conhecido bandeirante, foi tingido de vermelho em 2016. Nas manifestações contra as políticas de austeridade neoliberal no Chile, no ano passado, os ativistas não pouparam a imagem do conquistador espanhol Pedro de Valdivia. O que parece singularizar a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston, em Bristol, no último mês de junho, é o contexto de sua ocorrência: o de um movimento cada vez mais global de luta contra o racismo e as formas variadas de opressão herdadas do escravismo ocidental.

Essas ações no espaço público geraram, como era de se esperar, fortes reações negativas – amplificadas e, muitas vezes, excessivamente simplificadas pelas redes sociais –, que se espalharam entre jornalistas, historiadores e autoridades políticas. Dentre elas, cabe mencionar a de Emanuel Macron que, em discurso no dia 14 de junho, afirmou, de modo enfático, que “a França não derrubará estátuas” e “não apagará nenhum traço e nenhum nome de sua história”. Aqui o registro que se inscreve na edificação de estátuas e monumentos parece ser o mesmo que justifica sua permanência: a unidade nacional. Se a nação construiu estátuas, ela deverá mantê-las. A preservação é a marca da continuidade que une os cidadãos do presente aos do passado em uma comunidade imaginada. A derrubada, nesta perspectiva, representa nada menos do que a destruição da história, o apagamento do passado e o desfalecimento da comunidade política. Toda iconoclastia deverá ser castigada.

A derrubada de estátuas incorreria num equívoco ainda maior, o “maior pecado dos historiadores”, o anacronismo, compreendido, grosso modo, como o julgamento do passado pelas lentes do presente. Esse erro é também sintoma de um “frenesi moralista” de certos grupos identitários, a partir do qual nos colocamos na posição de decidir quem merece ou não ser lembrado mediante avaliações retrospectivas que, não raro, conjugam irresponsabilidade e desprezo pela inteligência do passado (JEANNENEY et al, 2020). É como se, para fundar novas formas de justiça no presente, devêssemos ocultar os atos mais repugnantes dos nossos antepassados. Os antídotos ao mal do anacronismo são igualmente bem conhecidos: a explicação e a contextualização incessantes.

Essa percepção negativa da recente onda iconoclasta remonta, em primeiro lugar, a uma visão de que os registros do passado são a própria história, a sua materialização acabada. As reflexões sobre como conhecemos ou elaboramos o passado avançaram consideravelmente desde o século XIX, a ponto de não mais aceitarmos que as evidências ou documentos disponíveis sejam a revelação pura das experiências de homens e mulheres de outros tempos. Só há história na medida em que interrogamos esses vestígios, submetendo-os à crítica, sempre elaborada a partir do aqui e do agora. Mesmo se todos os monumentos, as estátuas, os escritos ou os fragmentos do passado fossem destruídos, ainda assim poderíamos fazer e escrever história: a história dessa destruição. A derrubada de estátuas, portanto, não apaga a história, mas dota-a de novos significados e rumos (PACHÁ e KRAUSE, 2020).

A reivindicação do anacronismo nos suscita outras questões e problemas. O bom analista do passado deveria ser aquele capaz de respeitá-lo em suas especificidades e valores próprios. Porém, quais são os valores de uma época? Quem os representa? Com base em quais silêncios e ocultamentos? A defesa da permanência da estátua de Colston ou de qualquer outro traficante ou dono de escravos, sob a justificativa de que se tratava de indivíduos que “sintetizavam” uma época, acaba por ignorar a existência de tantos outros sujeitos que não compartilhavam a ideia de que era aceitável que alguns homens fossem proprietários de outros. Nenhuma época é homogênea, nenhum monumento ou estátua pode ser representativo de uma sociedade, que é sempre um campo de disputas, de contradições e de memórias conflitantes. E é sempre bom lembrarmos: quando uma estátua é derrubada ou ressignificada, não é do passado – a ser respeitado pelo zeloso estudioso que não se deixa seduzir pelo pecado mortal do anacronismo – que falamos, mas do presente. Como certeiramente afirmou Boaventura de Sousa Santos, as estátuas “são parte do nosso presente e são contestadas porque representam contas que não foram saldadas, destruições e injustiças que não foram reparadas” (SANTOS, 2020).

A edificação de um monumento ou a construção de um estátua instauram, de imediato, uma memória a ser perpetuada com seus valores intrínsecos e pretensamente dignos de representarem todo um tecido social. Mas, como nos lembra Elizabeth Jelin, “a memória não é o passado, mas a maneira em que os sujeitos constroem um sentido do passado, um passado que se atualiza em seu enlace com o presente e também com um futuro desejado no ato de rememorar” (JELIN, 2014, p.15). Trata-se também da ambição de deter o fluxo e a voracidade do tempo através da monumentalização e eternização de certos indivíduos e valores. O historiador francês Pierre Nora, consagrado por sua conhecida obra sobre os “lugares de memória” na França, qualifica essas expectativas relacionadas à perenidade das estátuas como “ilusões da eternidade” (NORA, 1984). Estátuas e monumentos são, em certo sentido, anti-históricas, na medida em que representam memórias que atravessam o tempo isentas de críticas e desacordos. Talvez esteja aí uma das chaves para compreender a indiferença popular em relação a essas construções. Elas sempre estiveram e estarão em nossos espaços públicos, então para que discutir o que está eternizado?

Apesar de suas pretensões à eternidade, estátuas dizem muito pouco sobre o que desejam representar, mas bastante sobre quem as ergueu. Elas são espaços simbólicos que projetam formas de dominação que se cristalizam em visões específicas e particulares sobre a história. Para cada estátua levantada, são incontáveis as histórias apagadas e os sujeitos interditados no espaço público. Como inscrição disputada no interior da vida política das cidades, a edificação desses monumentos de pedra e bronze está longe de ser um momento de comunhão perfeita, mas realça contradições, conflitos e dissensões.

As estátuas, em geral, só produzem efeitos e induzem à reflexão sobre as violências do passado e do presente quando se encontram ameaçadas. Simon Schama indaga quantos visitantes do London Docklands Museum fizeram uma pausa diante da imponente estátua de Robert Milligan, proprietário de 526 seres humanos, e se interrogaram sobre o papel que a escravidão desempenhou para a consolidação das fortunas mercantis da Companhia das Índias Ocidentais (SCHAMA, 2020). Antes de ter suas formas tingidas, a estátua de Borba Gato estimulou quantas pessoas a tomarem nosso passado colonial como uma chave para a compreensão da desesperadora situação dos indígenas no Brasil atual? No caso britânico, a derrubada da estátua de Colston pode desencadear uma discussão significativa sobre como monumentos e homenagens foram importantes na sustentação do imperialismo, que não era apenas um empreendimento econômico e militar, mas também cultural.

Entre 1672 e 1689, a Royal African Company, dirigida por Colston, transportou 100 mil negros escravizados da África para as Américas. As vítimas carregavam a barbárie marcada no peito com a insígnia da companhia: RAC. Aproximadamente 20 mil delas sucumbiram a doenças e à fome e foram jogadas ao mar. Ainda assim, a inscrição da estátua derrubada de Colston continha a seguinte frase: “um dos filhos mais virtuosos e sábios” da cidade. Durante anos, muitos cidadãos de Bristol tentaram, através de petições e medidas judiciais, ao menos alterar a infame inscrição, sem sucesso. A presença da estátua contrastava com a existência de um museu de história colonial na cidade e aumentava, a cada dia, a sensação de descompasso entre os tempos do horror escravista e o nosso, no qual a luta antirracista e as críticas ao passado imperial se transformaram em pautas absolutamente inadiáveis. A derrubada da estátua do traficante de escravos ativou, na percepção da historiadora Gurminder K. Bhambra, uma rara oportunidade de reavaliação e desmitificação do imperialismo britânico ainda fortemente popular no imaginário político e na educação pública (BHAMBRA, 2020). Trata-se, dentre outras coisas, de lembrar que a Inglaterra aboliu o tráfico, como orgulhosamente decantam os defensores do “universalismo britânico” após lucrar mais de dois séculos com ele, ou, ainda, de que a abolição produziu também uma indenização aos antigos proprietários que, em cifras atuais, equivaleria a algo em torno de 65 bilhões de dólares.

A derrubada de estátuas é ainda uma ação performativa na disputa pela cultura visual pública e pelo direito de ocupar o território (BEIGUELMAN, 2020). Performances, gestos e espetacularizações são também formas de ressignificar o espaço público e de construir e/ou reformar imaginários. Derrubar uma estátua não deveria ser visto como o apagamento da história, mas justamente o oposto, pois significa a perda da reverência à eternidade, à memória definitiva, ao passado monumentalizado. Podemos continuar falando do passado de opressão que persiste no presente, demonstrar seus horrores para as gerações atuais por meio de monumentos e recordações que representem as vítimas e não os opressores. As cidades não são espaços mortos e as transformações que asseguram sua vitalidade e potência são sempre o resultado de disputas políticas e culturais.

“O que fazemos quando recordamos?”. A pergunta feita pelo filósofo Manuel Cruz, na introdução de Adiós, historia, adios, deveria ser a de todo analista disposto a escrutinar o que está em jogo na fúria iconoclasta recente. Para Cruz, a resposta é: fundamos o passado, ou seja, estabelecemos o que deve ser rememorado e esquecido, quais atores e eventos merecerão as glórias de nossas lembranças no presente e no futuro e quais deverão ser definitivamente afundados nas águas de Lete, o rio do esquecimento. Como nenhuma época pode se arvorar a fundar, de modo irremediável, o passado, a nossa também possui seu direito de subverter memórias só aparentemente sólidas e estabelecidas. Podemos, assim, interrogar as múltiplas formas de desigualdade que estruturam nossa sociedade e deixam suas marcas no espaço público ao longo do tempo. Se sentimos que somos ainda moldados por esses processos históricos gestados pelo escravismo e pelo racismo, então nada mais justo do que realizarmos um acerto de contas. Um dos sinais distintivos de uma comunidade política amadurecida é o constante exercício de reavaliação do seu passado e dos seus mitos de origem. Estátuas de traficantes de escravos e de colonizadores só puderam ser visíveis em nosso cotidiano em função de uma brutal assimetria que tocava não apenas nas relações materiais entre brancos e negros, mas também na produção simbólica de memórias e narrativas do passado. É, portanto, absolutamente compreensível que as lutas contra as injustiças do presente se voltem criticamente contra as injustiças do passado, reconsiderando o que podemos admitir, hoje, como memória tolerável. Não há configurações e reconfigurações dos espaços públicos que sejam neutras. A derrubada de estátuas, mais do que nos despertar o assombro, deveria nos levar a perguntar o que aconteceu no passado que justificasse tal ato. A luta por direitos, em sociedades democráticas, jamais pode estar desconectada da memória. Toda vez que uma estátua é posta no chão, aprendemos um pouco mais sobre o passado, sobre nós mesmos e sobre o futuro.

 

 


REFERÊNCIAS

BEIGUELMAN, Giselle. Ataques a monumentos enunciam desavenças pelo direito à memória. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/ataques-a-monumentos-enunciam-desavencas-pelo-direito-a-memoria.shtml. Acesso em: 14 jun.2020

BHAMBRA, Gurminder K. A statue was toppled. Can we finally talk about the British Empire? The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/06/12/opinion/edward-colston-statue-racism.html?referringSource=articleShare. Acesso em: 01 jul.2020

CRUZ, Manuel. Adiós, historia, adiós: el abandono do pasado en el mundo actual. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.

JEANNENEY, Jean-Noël et al. L´anachronisme est un péché contre l´intelligence du passé. Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/06/24/deboulonnage-des-statues-l-anachronisme-est-un-peche-contre-l-intelligence-du-passe_6043963_3232.html. Acesso em: 24 jun. 2020.
JELIN, Elizabeth. La lucha por el pasado: como construimos la memoria social. Buenos Aires. Siglo XXI Editores Argentina, 2017.

NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Tomo I. Paris: Gallimard, 1984.

PACHÁ, Paulo e KRAUSE, Thiago. Derrubando estátuas, fazendo história. Época. Disponível em: https://epoca.globo.com/cultura/artigo-derrubando-estatuas-fazendo-historia-24487372. Acesso em: 02 jul.2020.
SANTOS, Boaventura de Sousa. As estátuas do nosso descontentamento. Sul21. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/06/as-estatuas-do-nosso-descontentamento-por-boaventura-de-sousa-santos/. Acesso em: 01 jul.2020.

SCHAMA, Simon. History is better served by putting the Men in Stone in museums. Financial Times. Disponível em: https://www.ft.com/content/1117dfb6-8e51-46ec-a74b-59973a96a85a. Acesso em: 14 jun.2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Giulia Spadafora/NurPhoto/AFP

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “153”][/authorbox]

Related posts

Ouro Preto em 4 cantos

Luiz Ricardo Resende Silva
1 ano ago

ET

Luiz Ricardo Resende Silva
2 anos ago

novembro adentro

Adriano Menezes
4 anos ago
Sair da versão mobile