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A Estação Primeira de Mangueira de Todos nós

A Estação Primeira de Mangueira de todos nós: Narrativas (2/5)

Narrar é apresentar – oralmente, textualmente, iconograficamente, musicalmente – a maneira como percebemos a sociedade, a natureza, o tempo. Como sintetiza Luiz Gonzaga Motta (2013, p. 18), “narrando, construímos nosso passado, nosso presente e nosso futuro. As narrativas criam o ontem, fazem o hoje acontecer e justificam a espera do amanhã. A coerência narrativa cria o tempo, o nosso tempo.” Cada narrativa é expressão de como um indivíduo ou grupo assimila o que está vivenciando. Há muitas narrativas possíveis acerca de cada evento relacionado ao carnaval. O debate, a troca de experiências e os testemunhos sobre a Mangueira ocorrem ao longo de todo o ano, imiscuídos pela paixão pela verde e rosa.

A escola de samba é um tema que une pessoas que, mesmo morando em diferentes cidades ou países, compartilham a afinidade com o universo carnavalesco. Debater o que ocorreu e especular sobre o próximo evento é uma necessidade permanente, com a qual enredam-se narrativas de torcedores, componentes, direção e trabalhadores. Seja na quadra de ensaios da escola – a da Mangueira é nomeada Palácio do Samba –, nos bares embaixo do viaduto que fica à sua frente, no próprio Sambódromo, em salas virtuais surgidas no contexto da pandemia do coronavírus, as narrativas acerca dos assuntos carnavalescos, felizmente, não têm fim. O próprio descolamento até o local de desfile, considerando tanto o transporte dos grandes carros alegóricos, quanto de cada desfilante, com fantasias comumente volumosas, já constitui momentos memoráveis, afinal requer toda uma logística.

Cada componente da escola de samba integra parte de uma expressão cultural registrada enquanto patrimônio[1]. Apesar desses reconhecimentos, parte da sociedade ainda questiona a sua relevância para a cultura e para a dinâmica social em suas diversas faces, inclusive a econômica. A “incorporação de todos os grupos sociais, em todas as suas manifestações, à memória do país” (D´ALESSIO, 2012, p. 88) enseja um trabalho contínuo da sociedade, afinal a história e a memória nacional se constituem de vários narradores e lugares de fala. Cada participante da comunidade carnavalesca é um narrador em potencial a respeito das escolas de samba. E a voz mangueirense vai longe, “Pois ninguém vai calar a Estação Primeira” (COM DINHEIRO OU SEM DINHEIRO, EU BRINCO!, 2018).

As narrativas se expressam, também, por meio da música ou do cinema, onde os temas relacionados à Mangueira podem ser recontextualizados. Na música Derradeira Estação a escola se mescla à cidade do Rio de Janeiro: “São Sebastião crivado/Nublai minha visão/Na noite da grande/Fogueira desvairada/Quero ver a Mangueira/Derradeira estação/Quero ouvir sua batucada, ai, ai” (ESTAÇÃO DERRADEIRA, 1987). No documentário Fevereiros é apresentado o universo da Maria Bethânia – homenageada pela Mangueira em 2016 – por meio de depoimentos acerca da escola, da cidade de Santo Amaro, e da cantora (FEVEREIROS, 2019).

As escolas de samba são repletas de histórias e memórias que fomentam narrativas, sendo o enredo apresentado a cada ano expressão máxima da capacidade de criação, consagração e reelaboração de novas tramas. Roland Barthes afirma que “inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas (…)” (BARTHES, 2011, p. 19). Por meio dos enredos pode-se inovar na forma e no conteúdo dos temas apresentados.

Cabe ao carnavalesco e às pessoas vinculadas à criação cultural, elaborar e desenvolver o tema que vai ser apresentado pela escola, ou seja, o enredo. Segundo o Manual do Julgador, o quesito enredo envolve tanto a criação quanto a apresentação de um tema ou conceito que será avaliado considerando a sua densidade cultural, a clareza e a coerência na roteirização, a capacidade de compreensão e a criatividade na transposição da concepção para a realização do desfile (LIESA, 2020, p. 16). O enredo define como a escola se apresentará, pois orienta a criação do samba-enredo e das fantasias, das alegorias e dos adereços. O clima nas escolas advindo de cada enredo é assunto corrente no chamado mundo do samba. No animado período pré-carnavalesco são debatidas possibilidades de sucesso ou fracasso dos desfiles devido ao enredo que será desenvolvido.

Um enredo que integre uma narrativa contemporânea, vinculada com a escola, com potencial cênico e musical, e que reverbere em quem o assiste (jurados, espectadores, mídia) é um caminho para o êxito da escola. Os desfiles da Mangueira realizados entre os anos de 2016 e 2020, tendo como carnavalesco Leandro Vieira, estão nitidamente alinhados a essas diretrizes. Formado em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2005, Vieira parece atento em apresentar tramas narrativas caras à identidade mangueirense.

Em Maria Bethânia: a Menina dos olhos de Oyá, no ano de 2016, a cantora popular foi celebrada em um desfile impregnado de uma brasilidade do interior do país e de profunda religiosidade popular. O sincretismo entre o catolicismo e as religiões de matriz africana retorna em Só com a ajuda do Santo, no ano de 2017, mostrando que variações sobre um mesmo tema podem gerar desfiles distintos e igualmente densos. A necessidade de reafirmação de que o carnaval é uma manifestação popular relevante origina, em 2018, o enredo Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco! O questionamento sobre quem escreve e quem aparece na história hegemônica do Brasil esteve presente em História para ninar gente grande, de 2019. A trajetória e os valores de um dos nomes mais influentes na história da humanidade – Jesus – foi apresentada em A verdade vos fará livre, em 2020. Pela densidade e importância do homenageado é de se questionar o motivo desse enredo, até então, não ter sido desenvolvido por outra grande escola. Mas talvez poucas estejam preparadas para cantar versos em que o homenageado declara: “Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira/Me encontro no amor que não encontra fronteira/Procura por mim nas fileiras contra a opressão/E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão” (A VERDADE VOS FARÁ LIVRE, 2020).

Além do requinte do conjunto plástico, a força da trama narrativa – aliás alçada a categoria de discurso –, caracterizou a escola nesses desfiles onde não houve receio em dar opiniões na avenida. Afinal, como afirma Maria do Rosário Valencise Gregolin (1995, p. 16), “as estruturas narrativas convertem-se em discurso quando assumidas pelo sujeito da enunciação: ele faz uma série de escolhas, de pessoa, de espaço, de tempo e de figuras, contando a história a partir de um determinado ponto de vista”. Ao tratar de assuntos ligados à memória, à história e à identidade da população brasileira, pelo viés da diversidade, a Mangueira tem reafirmado o seu papel de protagonismo cultural.

Dos cinco desfiles concebidos por Leandro Vieira, três, os de 2016, 2017 e 2020, destacaram a religiosidade brasileira. Sinal de que há sintonia entre os componentes da escola e a fé. No ano de 2016 a Mangueira cantou “Oyá/Entrego a ti a minha fé” (MARIA BETHÂNIA: A MENINA DOS OLHOS DE OYÁ, 2016). Em 2017 a escola passou ao som de: “No peito patuá, arruda e guiné/Para provar que o meu povo nunca perde a fé” (SÓ COM A AJUDA DO SANTO, 2017). Em 2020, apresentou um Jesus transposto ao Brasil e, mais especificamente, ao Morro da Mangueira.

A descrição do setor final do desfile de 2019 parece sintetizar a abordagem que perpassa os enredos concebidos pelo carnavalesco Leandro Vieira: “exaltar as lutas vitoriosas das multidões de ‘favelados’ – homens e mulheres pobres, moradores de comunidades espalhadas pelo Brasil – (…). É o Brasil assumindo a identidade do morro. É a Mangueira refletindo o Brasil” (VIEIRA, 2019, p. 319). Esses desfiles garantiram a presença da escola entre a seis primeiras colocadas, ou seja, a volta no Desfile das Campeãs. Nos anos de 2016 e 2019 a Mangueira consagrou-se campeã do carnaval.

Cada enredo instiga nos corações e mentes da nação mangueirense – e de todos os apreciadores do carnaval – interesse em aprofundar o conhecimento sobre os temas apresentados. Os desfiles as escolas de samba mostram que além de ensinarem samba também podem colaborar com o desenvolvimento do senso crítico dos componentes – e da sociedade em geral – em relação a vários temas. O auge da construção coletiva preparada durante meses ocorre no Sambódromo.

 

 

 


REFERÊNCIAS

A VERDADE VOS FARÁ LIVRE. Compositores: Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo. In: Sambas de Enredo 2020. Universal Music, 2020.

BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In: Análise Estrutural da Narrativa, por Roland BARTHES et al. Tradução: Maria Zélia Barbosa Pinto. 7. Ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

COM DINHEIRO OU SEM DINHEIRO, EU BRINCO! Compositores: Lequinho, Júnior Fionda, Alemão do Cavaco, Gabriel Machado, Wagner Santos, Gabriel Martins e Igor Leal. In: Sambas de Enredo 2018. Som Livre, 2018.

D´ALESSIO, Márcia Mansor. Metamorfoses do patrimônio: o papel do historiador. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2012: pp. 79-89.

ESTAÇÃO DERRADEIRA. Compositor: Chico Buarque. In: Francisco. RCA, 1987.

FEVEREIROS. Diretor: Marcio Debellian. Debê Produções, Canal Brasil, Globo Filmes, 2019.

GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. A análise do discurso: conceitos e aplicações. Alfa Revista de Linguística, 1995: pp. 13-21.

LIESA. Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro – Manual do Julgador. Rio de Janeiro, 2020.

MARIA BETHÂNIA: A MENINA DOS OLHOS DE OYÁ. Compositores: Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão. In: Sambas de Enredo 2016. Universal Music, 2016.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013.

SÓ COM A AJUDA DO SANTO. Compositores: Lequinho, Júnior Fionda, Flavinho Horta, Gabriel Martins e Igor Leal. In: Sambas de Enredo 2017. Universal Music, 2017.

VIEIRA, Leandro. Justificativa do Enredo – Mangueira. In: Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro – Manual do Julgador – Abre Alas, por LIESA, pp. 316-319. Rio de Janeiro, 2019.

 

 

 


NOTAS

[1] As matrizes do Samba no Rio de Janeiro, incluindo o Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo integrarem o Livro de Registro das Formas de Expressão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, desde 20/11/2007. As Escolas de Samba que desfilam na Cidade do Rio de Janeiro são registradas como Patrimônio Cultural Carioca por meio do Decreto Municipal n. 28.980 de 31/01/2008.

 

 

 


Créditos na Imagem: Reprodução. Desfile da Mangueira, 2020, “A verdade vos fará livre”. Fotografia: Fernando Grilli.

 

 

 

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