Talvez não exista exemplo melhor do que o longa A fuga das galinhas, produzido a partir das técnicas do stop motion, para compreendermos o argumento central de Byung Chul-Han em Sociedade do Cansaço. Os 23 anos que separam A fuga das galinhas (2000) e A fuga das galinhas: a ameaça dos nuggets (2023) ilustram muito bem, ao meu ver, a mudança de sociedade na qual vivemos, bem analisada por Han.
Não é a intenção aqui, vale dizer, proceder a uma análise fílmica profunda e demorada, tampouco promover o debate exaustivo. A ambição é bem mais modesta: apenas sugerir que A fuga das galinhas 1 e 2 podem servir muito didaticamente para pensarmos como era a “sociedade da disciplina”, do Vigiar e punir, e como é a “sociedade do cansaço”. Isto é, são exemplos muito eloquentes – ao menos assim entendo – do que Han pretende sustentar.
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No filme de 2000, as ações se desenrolam em uma pacata granja no interior da Inglaterra sob a rígida vigilância da Sra. Tweedy e seu marido, Sr. Tweedy. A paisagem da granja é basicamente composta por tons de cinza, grades, cercas, cães de guarda, portões e proibições tanto espaciais quanto comportamentais.
As galinhas, aqui seres animados dotados de consciência, têm por única tarefa botar ovos ao longo de toda sua vida, sob uma rotina pré-determinada, que prevê quantidades a serem alcançadas e punições para as desviantes. Na granja, vigilância e punição estão estritamente associados. Nesse ambiente, cinza e mórbido, a trama se desenrola, basicamente, em torno das inúmeras tentativas de fuga das galinhas, encabeçadas por Ginger, líder do galinheiro.
O final é feliz e, com sucesso, as galinhas conseguem fugir da granja e alcançar uma ilha segura, sem a presença humana, onde puderam construir uma sociedade das e para as galinhas, distante dos controles aos quais eram submetidas nos tempos da Sra. Tweedy.
É a partir dessa ilha que a história se desenrola em A fuga das galinhas e a ameaça dos nuggets. No longa de 2023, agora produzido pela Netflix, as cores cinzas e pretas dão lugar ao colorido da ilha, a noite e as sombras cedem espaço ao dia e à luz. Nesse novo ambiente, Ginger e Rocky agora possuem uma filha, a curiosa e aventureira Molly. Conforme essa crescia, no entanto, o tamanho da ilha parecia diminuir. Na medida em que a curiosidade aumentava, as restrições de jamais sair ou procurar contato com as margens próximas (onde habitavam humanos perigosos) ficavam cada vez menos importantes. Molly, então, planeja uma fuga da ilha e leva seu plano a cabo com sucesso.
Chegando do outro lado da margem, logo se depara com o outdoor de uma granja, repleta de galinhas felizes e alegres (e gordas). Sem efetivamente conhecer o que significava aquele espaço, o encantamento na jovem Molly se faz automaticamente. Restrita ao mundo da ilha, a vontade de conhecer novos espaços, mesmo que proibida por Ginger, era grande.
Depois de algumas peripécias, e já com a comunidade das galinhas da ilha em sua busca, Molly consegue chegar ao espaço encantador da nova granja, sob administração justamente do casal Tweedy (que sobreviveram ao acidente do primeiro filme e, não satisfeitos, retomaram as atividades no mesmo ramo).
O interessante é que agora a granja é bastante diferente. Não há grades, cercas, arames, cães de guarda, vigilância direta do Sr. Tweedy e sua espingarda, horários e rotinas rigorosas, espaços bem delimitados onde cada galinha deve ficar e produzir ovos e nem o controle pessoal da Sra. Tweedy sobre os ovos postos. Tudo isso cedeu lugar a uma outra lógica (ou racionalidade, se assim quisermos) de organização e controle das galinhas. A produção passa a ser incentivada e controlada não mais pela repressão, mas sim por sucessivos estímulos positivos.
Na Fund-Lund Farms, há alegria. O espaço é aberto e de livre circulação, sem guardas ou coisa do tipo, pelo contrário: há brinquedos, jogos, comida à vontade, passatempos variados, não existem restrições de horário ou rotina. Um espaço em tudo diferente da antiga granja de onde Ginger e suas companheiras viveram.
Molly, porém, não demora a perceber que existe algo de errado: as galinhas usam uma espécie de coleira que desativa seus sentidos, tornando-as incapazes de efetivamente perceber que estavam em uma prisão – colorida e cheia de brinquedos, mas ainda uma prisão. Em outras palavras, a coleira, controlada pelos Tweedy, fazia com que as galinhas não pensassem. Os estímulos positivos, o ser feliz a todo momento, explorando todas as experiências daquele espaço, tomavam o tempo inteiro das galinhas.
Ora, nesse ponto estamos prontos para sugerir que A fuga das galinhas: a ameaça dos nuggets pode servir para pensarmos as proposições do filósofo sul-coreano, radicado na Alemanha, Byung-Chul Han.
Para Han, a sociedade ocidental passou por uma transformação importante nas últimas décadas. O auge do capitalismo neoliberal e suas formas de racionalidade produziram o que chama de “sociedade do cansaço” – conceito construído em constante contraposição com a “sociedade disciplinar” analisada por Foucault (HAN, 2017). Em suas palavras:
A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negativa da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito. Também ao dever inere uma negatividade, a negatividade da coerção. A sociedade do desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-a. O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade do desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade do desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (HAN, 2017, p. 24-25)
Não seria esse, de certa forma, o quadro pintado entre os filmes de 2000 e 2023? A fuga das galinhas: a ameaça dos nuggets estaria, tal como no primeiro filme (GUEDES, 2023), promovendo novamente uma crítica sutil e divertida ao mundo em que vivemos?
Nesse caso, é interessante observar como a granja é retratada. Conforme descrito acima, os espaços são postos de maneira muito distintas. Na Fun-Land Farms, tudo é positivo e divertido. Não há proibições. Não há vigilância explícita. As galinhas engordam e são controladas não pela força ou coerção, mas sim por suas próprias ações, aparentemente sem o controle e a ordem direta de ninguém, a não ser delas mesmas. A negatividade não se aplica a esse novo espaço, agora a norma é a positividade. Tanto uma quanto a outra são formas de controle, mas diferentes em seus mecanismos.
Será que é válido proceder uma comparação entre a granja Fun-Land Farms e o novo cenário neoliberal do mundo do trabalho, onde o imperativo agora é a positividade (SLEE, 2017)? Onde, em ambos os espaços, os patrões não tem rosto (CANT, 2021)? São sugestões.
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Por fim, ainda que as ideias aqui expostas careçam de maiores aprofundamentos, o importante é registrar como o filme pode fazer alusão a questões importantes e muito debatidas hoje em dia. Afinal, para a análise científica do social, nenhum elemento a priori é descartável. Nesse sentido, talvez A fuga das galinhas seja uma boa metáfora para pensarmos as “granjas” do passado e do presente, bem como a forma com que as “galinhas” são controladas e postas a trabalhar. Por isso, mas também por ser um filme em si bom de se ver, fica aqui a sugestão do longa.
Referências:
CANT, Callum. Delivery fight! A luta contra os patrões sem rosto. São Paulo: Veneta, 2021.
GUEDES, Diandra. Por que A Fuga das Galinhas é chamado de filme comunista? – Canaltech. CanalTech, 18 dez. 2023.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2º ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
SLEE, Tom. Uberização – a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017.
Créditos da imagem: A fuga das galinhas: A ameaça dos Nuggets / Divulgação: Netflix