A morte tem marchado com a pressa de uma solução final. E do que poderia restar de defesa contra isso, quer-se, à força de lei, destruir até mesmo os fundamentos. Caso o PL 490 siga aprovado em todas as instâncias, teremos outra dura experiência de que a pequena política – restrita aos gabinetes, bancos e corredores de casas legislativas – não tem a vida, sua segurança e qualidade, como substância. Há tanta arbitrariedade e violência na expropriação histórica das vidas indígenas que a ojeriza a toda possibilidade de bem viver coletivo, regra para genocidas, alcança gente aliada também entre quem não deseja matar – mas que não enxerga dois palmos fora daquilo que importa para si, imediatamente. Nas relações de força que se instauram – do que se pode observar –, o tempo comprimido das exigências de alguns mercados exige de quem compactua com eles convir com a supressão de outras temporalidades, expressões de diferentes modos de vida.
A ascensão de Bolsonaro e a permissividade em relação ao aparelhamento do estado realçam uma continuidade absurda entre poder financeiro e poder de autolegitimação política (e entre esfomeadores e legisladores); a reivindicação dos povos indígenas ataca diretamente – uma luta que se destaca, mas que existe em comunhão com outras – essa falsa conaturalidade entre poder político e poder de decisão sobre a vida e a morte através da expoliação de terras e de direitos que não são doação, senão realidades constituídas em muito tempo de relações de forças desfavoráveis. Em boa parte dos seus caminhos, pois, as resistências indígenas cruzam e orientam outras que seguem tendo como base experiências e concepções ético-temporais que tomam a vida como algo mais que a permanência da capacidade de absorção de mercadorias e produção das mesmas.
Brasília, mais uma vez, tem constituído um espaço de ação direta indígena; entre os conflitos escancarados e confrontos aterradores, trava-se uma luta centenária de corpo presente, mais de 40 etnias estão acampadas na sede do poder estatal, dando ímpeto e cor àquele território comumente árido a iniciativas que primem pela vida. As exigências são formuladas de maneira clara: que as populações participem da elaboração desses projetos, que direitos estabelecidos tenham efetividade – não há outra via que o arquivamento desse texto, cujo conteúdo prepara a destruição, inclusive, de comunidades indígenas intocadas por nossa civilização. Exige-se o fim do deboche capitalista a respeito do que significa um usufruto não lucrativo dos territórios e seus recursos, últimos confins em que se cultiva uma atmosfera respirável e comum, em contraposição ao que tem atendido “a relevante interesse público da União”.
No cruzamento entre a pressa desse projeto de morte e a lentidão no combate direto ao vírus da covid-19, a desolação da pandemia arrisca atingir comunidades intocadas, protegidas em seu isolamento por direito constitucional. E quem conhece a amplitude de novos males que hão de surgir com a exploração e destruição dos territórios cobiçados? A vida é uma fagulha efêmera aos olhos dessa cobiça. As vidas que se perdem são flores pisadas. Ideias alternativas são falácias – há o que a “sociedade brasileira” quer, e a autolegitimação política e jurídica da separação pela morte consegue sem esforço ter ressonância moral o suficiente para que a questão seja, um dia, tida como superada.
Uma esperança, do ponto de vista da legalidade, vem da apreciação pelo STF sobre a Reintegração de Posse requerida pelo estado de Santa Catarina; a ação corre contra a população Xokleng que habita a TI Ibirama-Laklanõ, em que também se encontram Guaranis e Kaigangs. Espera-se, a partir disso, o fim definitivo da tese do marco temporal, que aposta na possibilidade de aniquilar todo o passado de luta e resistência indígenas – apagar 1983, em que “esta aldeia xokleng foi totalmente destruída e a comunidade foi forçada a dividir-se em pequenas aldeias” (Comissão Nacional da Verdade), em razão de uma inundação de barragem; apagar todas as execuções e capturas de orelhas realizadas por bugreiros no século passado; apagar que desde que a propriedade privada é regulamentada no Brasil, em 1854, indígenas (e caboclos) viram terras serem tomadas sem chances de apelação; apagar, enfim, “a memória ancestral concebida como experiência coletiva da dominação, da escravização, da resistência à opressão, e de busca de afirmação étnico-cultural e emancipação social e a experiência de aculturação e as contradições que ela encerra” (Sueli Carneiro, em sua tese de doutorado – no caso, sobre as populações negras).
Por isso, o fator da repercussão geral do processo é tão valioso, constitucionalmente: põe o sistema legal brasileiro diante do caráter rizomático da resistência indígena, da comunidade da luta, das implicações recíprocas dos efeitos de liberdade dessa mesma resistência, a qual, para além do que possa ser descrito por mim, é a barricada cuja destruição implicaria a preparação de todas e todos para a “morte dolorosa”. É uma esperança, com efeito, de que o estado brasileiro não legitime – ainda outra vez – a guerra travada há séculos contra o uso não lucrativo dos recursos comuns, parte do qual, significativamente, sustenta-se em concepções e costumes que foram assujeitados pela violência dos processos de colonização das terras a partir de 1500.
“A demarcação das terras indígenas não se limita à política indigenista. Trata-se de matéria que ultrapassa os limites da política indigenista e atinge interesses diversos” – afirma o PL 490: sabemos, decerto, que “trata-se de matéria” profunda, pois atinge o núcleo do que pode constituir ainda um senso de unidade e continuidade diante da hegemonia do “mercado” e da “economia”; a repercussão da solidariedade indígena é o que está por trás e sobreviverá às decisões jurídicas sejam quais forem, porque, mesmo em caso de vitória no STF, sabemos que o assédio a essas populações é cotidiano e dispensa, em boa parte, essas mesmas sutilezas defendidas em câmaras e tribunais.
Créditos na imagem: Divulgação. Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo
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