Um jovem de 14 anos, um jovem com um futuro brilhante pela frente, que já sabia o que queria do seu futuro. Mas, infelizmente a polícia chegou lá de uma maneira cruel, atirando, jogando granada, sem perguntar quem era.

Pai de João Pedro.

Eles deram muitos tiros na janela e saímos correndo pro quarto. Nisso, ficou Duda e João na copa, deitados. Os policiais entraram e mandaram todo mundo calar a boca, e vi João ainda deitado. Não tinha entendido o que aconteceu.

Primo de João Pedro.

 

A morte de mais um negro nos comove e nos deixa aflitos porque a cada dia, mês ou ano, ocorrem massacres como esse. Desta vez, outra criança. Morador do Complexo do Salgueiro, bairro Itaoca, João Pedro Mattos Pinto foi baleado em mais uma operação policial no Rio de Janeiro. Não foi a primeira e nem será a última vez que um negro favelado será baleado por uma política de segurança pública orquestrada por um Estado que não leva em consideração as vidas postas em risco na operação, provocando, assim, mortes por balas perdidas. O que, de fato, evidencia um tipo particular de visão do Estado em relação às polícias militares. Outros casos mais recentes como o de Agatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, Jenifer Gomes e Kauã Rosário, ambos com 11 anos e o da família assassinada com mais de 80 tiros de fuzil disparados pelo Exército, em 2019, são os que nos vem à tona, mas, diariamente, favelados são mortos no Rio de Janeiro pela polícia, naturalizando-se uma política de extermínio de populações negras.

Lembro-me de que em uma viagem ao Rio, em 2015, visitei o Complexo do Alemão. Lá, conheci Mariluce Mariá: artista plástica, arte-ativista e arte muralista. Ela faz um excelente trabalho de intervenção social naquela comunidade com as crianças, intitulado Favela Arte. Quando a conheci, estávamos próximos de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Mariluce, revelou que diariamente o helicóptero, vulgo “besouro azul”, sobrevoava as comunidades do Complexo de forma ameaçadora e, não raro, ocorriam mortes. Logo, a bala da polícia do Rio de Janeiro tem alvo e é certeira. Assim como os indígenas são perseguidos e lutam contra uma contínua guerra histórica de extermínio, nós, favelados e negros, somos alvos de uma política genocida de segurança pública em muitos estados e, sobretudo no Rio de Janeiro. Cabe destacar ainda que a geografia destes assassinatos não se situa em lugares aleatórios, em bairros apatacados, mas, sobretudo, em locais de periferia.

Quais os motivos? Um deles, talvez o mais expressivo, seja porque a sombra do passado eugenista deixa suas marcas em nosso presente. O eugenismo do início do século 20, não ficou no passado, ele está distante de nós, vivo. As políticas de higienização continuam no ideário de muitos políticos como Wilson Witzel, por exemplo, às vezes de forma velada e, como no caso dele, explícita. Uma mentalidade excludente, determinista, assassina e de pendores lombrosianos. Basta lembrar a fala do atual governador durante a campanha sobre lançar um míssil na Cidade de Deus ou de sua alegria com a morte de um rapaz, que sofria de transtorno mental, abatido em sequestro na ponte Rio-Niterói, em 2019. É uma política de terror que humilha e mata quem mora na favela. É por isso que o passado eugenista nos assombra. Ele ganhou novos significados, dentre eles o de que ser favelado é ser incivilizado, marginal, perigoso. Assim, a violência praticada, nestes e tantos outros casos, está institucionalizada: suspeição, ameaça e agressão física acompanhada de violência psicológica cotidiana sobre quem mora na periferia. Um estado de exceção.

Os negros conseguiram se libertar das algemas da escravidão no final do século 19, mas, em pleno século 21 ainda não tiveram o direito pleno ao trabalho ou ao livre trânsito no Brasil. Eles ganharam uma falsa liberdade. Continuam aprisionados nas periferias, sem mobilidade e estigmatizados. Ocupam subempregos, ganham os menores salários; basta conferir os indicadores sociais. E são os que mais morrem nas periferias. Podemos falar até mesmo que existe um apartheid, porque a elite branca e racista no Brasil se opõe a permitir o pleno acesso dos negros e da periferia no espaços públicos. Veja-se, por exemplo, o questionamento frequente das políticas de cotas nas universidades federais. Todos os dias, nós, os negros, tomamos uma bala, seja ela material ou simbólica. Quantas balas os negros tomam ao passar por uma porta giratória de um banco? Por entrarem em lojas ou supermercados da classe média? Os negros são discriminados e o Brasil é racista, porque o discurso eugenista continua vencendo, seja ele velado ou não, porque para muitos é completamente aceitável ter negros vivendo sem casas, trabalhando na informalidade ou passando fome na rua; pedindo esmola ou tomando tiro.

A morte de mais uma criança periférica e negra, revela ou deve revelar a existência de uma política de extermínio eugenista, que torna as políticas de segurança pública um artefato para a eliminação do futuro de quem mora na favela.

Operação, na matemática, é regra e lógica. De forma similar, a operação policial tem transformado a morte nas periferias do Rio de Janeiro em uma regra e em uma lógica. É uma missão sendo cumprida dia a dia. O olhar racista e as censuras preconceituosas deixam claro que as ações policiais na periferia têm um alvo certo e continuam nos matando. E essas políticas não estão restritas somente ao Rio de Janeiro, em outros estados brasileiros, elas também são uma realidade vivida nas periferias, como pode ser visto nos gráficos abaixo. Quem tem direito à vida?

Os valores são uma média de 2000 a 2017 - Unidade: Taxa por 100 mil habitantes
Os valores são uma média de 2000 a 2017 – Unidade: Taxa por 100 mil habitantes

 

Taxa de homicídio de negros e não negros no Brasil

Os valores são uma média de 2000 a 2017 - Unidade: Taxa por 100 mil habitantes
Os valores são uma média de 2000 a 2017 – Unidade: Taxa por 100 mil habitantes

 

Quanto a juventude brasileira, seja ela negra ou não, como fica?

 

Os valores são uma média de 2000 a 2017 - Unidade: Taxa por 100 mil habitantes
Os valores são uma média de 2000 a 2017 – Unidade: Taxa por 100 mil habitantes

 

Se nos anos 1990 o funk de protesto com Mc Cidinho por meio da música Eu Só Quero É Ser Feliz “desejava ser feliz e andar tranquilamente na favela em que nasceu para ter a consciência que o pobre tem o seu lugar”, parece-me que este sonho não se realizou. Podemos constatar isso no funk dos anos 2000 de Mc Orelha, Sistema. Ele nos diz que o Batalhão de Operações Especiais – BOPE – faz operação na favela “tendo que contar com a sorte, oprimindo morador e levando cheiro de morte para as comunidades”; e revela que quando acerta um morador, afirmam que era bandido, mas eles sabem que não, porque a “polícia chega com medo, largando tiro a esmo, acertando inocente e fica por isso mesmo e que por isso nunca vão pacificar, oprimindo e agredindo”.

A política eugenista é autoritária e foi o sonho de muitos intelectuais brasileiros, como por exemplo Monteiro Lobato, que ao dedicar um romance literário com fortes conotações eugenistas à Renato Kehl, comentou:

Renato, Tu és o pai da eugenia no Brasil e a devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. […] Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha.[1]

Podar uma árvore é retirar dela o que é prejudicial para o seu desenvolvimento e florescimento. No caso do comentário de Monteiro Lobato, inúteis são os negros, retratados como alcoólatras, loucos, “idiotas” e portadores de doenças hereditárias. Hoje, os inúteis são resumidamente os favelados. O comentário tornou-se uma distopia para os negros e os favelados, mas um sonho para a elite eugenista. Quantas vidas e sonhos serão podadas nas periferias? É uma triste constatação, mas o sonho de uma nação branca continua e pensamentos eugenistas, como o de Monteiro Lobato, permanecem vivos.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2018.

Pai de João Pedro: ‘Polícia matou uma família inteira, incluindo meu filho’. Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/pai-de-joao-pedro-policia-matou-uma-familia-inteira-incluindo-meu-filho-c12a. Acesso em 20 de Maio de 2020.

Primo de João Pedro conta como ele foi assassinado por policiais dentro de casa no RJ (vídeo). Disponível em: https://www.brasil247.com/regionais/sudeste/primo-de-joao-pedro-conta-como-ele-foi-assassinado-por-policiais-dentro-de-casa-no-rj-video. Acesso em 20 de Maio de 2020.

https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series

https://www.vagalume.com.br/mc-orelha/sistema.html

https://www.letras.mus.br/rap-brasil/564946/

 

 


NOTAS

[1] LOBATO, Monteiro Apud DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2018.

 

 

 


Créditos na imagem: A imagem foi gentilmente cedida pela artista plástica Mariluce Mariá Souza, idealizadora do Projeto Favela Arte, que tem como missão “proporcionar esperança e oportunidades através da arte”. Neste momento de isolamento social, Mariluce com outros colaboradores arrecadam doações para famílias do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro.

Se puder, ajude através da Vaquinha: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/favela-arte
Siga a artista no Instagram, Twitter e Facebook: @favelaart

 

 

 

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