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O que muda a terra – nossa América indígena

A questão Indígena nos séculos XX e XXI: instituições, políticas e protagonismos

Antes de mais nada é preciso estabelecer que os povos originários no Brasil têm demandas diversas e distintas, não sendo possível resumi-las em alguma unicidade, sendo muitas suas questões. No entanto, o Estado, principalmente a partir da Primeira República, tratou a presença indígena em território brasileiro como um “problema”, reconhecendo sua existência (muitas vezes, mas nem sempre), porém tratando-os como empecilho, principalmente em relação ao dito “progresso”, como aponta Benedito Prezia, em “História da Resistência Indígena: 500 anos de luta” (2017). Outro ponto a ser dito, é que a presença indígena e, por isso, a questão indígena se relaciona majoritariamente com a questão de terra, e a luta por seus territórios originários. Nesse sentido, estes são temas simultâneos e indissociáveis.

Com a proclamação da república, no final do século XIX, intensificou-se os debates sobre a presença indígena no país, incluindo uma denúncia de extermínio indígena, no ano de 1908, em Viena. Isso, somado a um intenso debate público, como aborda José Mauro Gagliardi, em “O Indígena e a República”, resultou na criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910.

Muitos foram os problemas com o seu funcionamento, principalmente considerando as políticas de integração e assimilação da população indígena no corpo da recém criada república brasileira. Cunhado de processo “civilizatório”, isso desde a invasão dos primeiros europeus, a política assimilacionista esteve sempre presente: primeiro denominada catequética e mascarada como “salvacionista, mas quase sempre tutela, como aborda Daniel Munduruku, em “O Caráter Educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990)”.

O SPILTN, precisamente, sob a bandeira de uma suposta proteção dos indígenas, defendia a civilização e integração dos mesmos, transformando-os em trabalhadores agrícolas (nacionais). Ainda, a criação de postos indígenas operava na lógica tutelar e excludente visto que aqueles povos deveriam recorrer aos postos, segregando-os numa rede nacional de vigilância e controle, como demonstra Antônio Carlos de Souza Lima, em “Uma Grande Cerco de Paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil” (1992).

Assim, o projeto de “civilização” dos indígenas fazia parte do projeto de Brasil-nação: um país unificado em uma mitologia de identidade única e, também, em uma mitologia de identidade indígena única (PAULO DE ALMEIDA, 2022). É preciso ressaltar que o SPILTN respondia ao então Ministério da Agricultura, com objetivos distintos à suposta “proteção” dos povos originários, e ambas as instituições eram orientadas pelo ufanismo nacionalista e pelo positivismo, como pontua Manuela Carneiro da Cunha, em “Introdução a uma história indígena”. Ou seja, objetivos mais relacionados com uma regeneração agrícola do país, como sublinha Souza Lima.

Em 1918, o SPILTN se torna apenas Serviço de Proteção ao índio, sob a égide do Código Civil de 1917, que vigorava desde janeiro daquele ano. O mesmo estabelecia a incapacidade civil dos povos originários e a necessidade de tutela para os mesmos. É preciso considerar tanto o Código Civil quanto parte da atuação do SPI como retrocesso no que diz respeito aos direitos originários, visto que desde 1902 o jurista João Mendes Júnior já havia apresentado o seu Instituto do Indigenato. No texto “Os Indígenas no Brazil, seus direitos individuais e políticos”, Mendes Júnior defende que desde o regime das sesmarias até o advento da Lei de Terras (1850), houve o reconhecimento do direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, como explica Adriana Biller Aparício em “O Instituto do Indigenato e a teoria crítica”. Essa, que ficou conhecida também como Tese do Indigenato, é fundamental para negar a atual “Tese do Marco Temporal”, que quer tentar restringir os direitos indígenas em relação à demarcação de terras, como atualmente está em debate no STF. Mas voltarei a este tópica adiante.

Ainda sobre o SPI, que funcionou sob esta sigla até 1967, é importante dizer que foi campo de atuação de figuras importantes no período e principalmente na defesa dos direitos indígenas. Foi o caso do Marechal Cândido Rondon (ainda sob a sigla SPILTN) e Darcy Ribeiro. Este último, propôs a substituição das perspectivas positivistas e “incorporação” dos povos indígenas, denunciando a então política assimilacionista em voga, em “Os Índios e a Civilização”, publicado pela primeira vez durante seu exílio, no período da Ditadura Civil-Militar brasileira. Antes disso, o SPI ainda foi alvo de inúmera denúncias de corrupção, tortura, assassinato estupros e raptos, que foram registradas no que ficou conhecido como “Relatório Figueiredo”. Este documento, produzido ao longo da década de 1960 até 1967, foi dado como “perdido”, e só foi encontrado em 2012, no antigo Museu do Índio, do Rio de Janeiro, durante as pesquisas da Comissão Nacional da Verdade.

Após escândalos, o SPI e o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), órgão então responsável pelas políticas indigenistas, foram substituídos pela antiga Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada em 1967, já em regime ditatorial. A FUNAI funcionava como herdeira do SPI, apesar de ainda carecermos de trabalho sobre o tema, como denuncia Antonio Carlos de Souza Lima, em “O Governos dos Índios sob a Gestão do SPI” (2006).

Questiona-se se a atuação inicial da FUNAI não foi ainda pior que a do SPI, ao longo do período ditatorial. Além do “esquecimento” das mais de 7 mil páginas de denúncias, o Relatório Figueiredo, relata a continuidade de políticas assimilacionistas, além das demais denúncias já mencionadas. Além disso, há registros de uma enorme mortalidade de indivíduos pertencentes aos povos indígenas (como os Asurini e Parakanã) durante a construção da Estrada Transamazônica, ao longo dos anos 1970, assim como torturas, assassinatos, estupros e raptos contra o povo Krenak, em Minas Gerais, como relata Rubens Valente, em “Os Fuzis e as Flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura” (2017). O autor ainda aponta que desde a redemocratização do país, o Estado brasileiro ainda não divulgou de forma pública e abrangente, um balanço crítico sobre as ações contra os povos originários, durante o período ditatorial.

A partir do fim da ditadura se destacaram (para os olhos não-indígenas) algumas lideranças no âmbito político. Uma delas foi Ailton Krenak, que recebeu grande destaque midiático ao subir na tribuna e discursar enquanto pintava o próprio rosto com jenipapo, marcando presença e protesto. Outro nome importante nesse processo de redemocratização foi o de Mário Juruna, primeiro deputado indígena eleito em 1982. Mário Juruna se destacou ants por percorrer a FUNAI demandando pela demarcação de Terras, portando um gravador para registrar “tudo o que o branco diz”. Esses registros estão no livro “O gravador de Juruna”. Outro nome fundamental na redemocratização (e antes dela) foi o de Raoni Metuktire, conhecido como Cacique Raoni. Ele foi (e continua sendo) um grande opositor da construção da barragem de Belo Monte, desde 1989, além de protagonizar o pedido de demandas de demarcação de terras indígenas desde os anos 1970.

Em anos mais recentes e para quebrar um certo monopólio masculino na vida política, destaca-se a atuação de Sônia Guajajara que, além de ter sido vice-candidata à presidência, junto à Guilherme Boulos, em 2018, é uma atuante opositora à tese do Marco Temporal. Além do que já foi dito, é importante destacar que esta proposta é defendida pela bancada ruralista no Congresso Nacional Brasileiro, que tenta negar as reivindicações de Tis anteriores à 1988, ano de promulgação da Constituição Federal vigente, como explica Luiz Eloy Terena, acessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no texto “O direito originário dos povos indígenas”. Por sua atuação, Sônia Guajajara foi nomeada como a primeira Ministra indígena e está à frente, atualmente, do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, no atual governo de Luís Inácio “Lula” da Silva.

Além da APIB, outro órgão que vem de longa data como aliado dos povos originários é o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), criado durante a ditadura civil-militar no Brasil. O CIMI foi responsável por promover a articulação entre os povos, em favor da organização da luta por direitos e diversidade, como ficou descrito na Constituição de 1988. Além disso, o CIMI é responsável pela publicação anual do “Relatório das Violências Contra os Povos Indígenas”, incluindo nos anos da Pandemia de Covid-19. O Relatório de 2023 acaba de ser publicado e se encontra disponível no seguinte link: https://cimi.org.br/2023/07/relatorioviolencia2022/. Essas instituições e personalidades continuam atuando à favor das demandas indígenas contra os etnocídio e genocídios promovidos ou aceitos pelo Estado.

Para finalizar, não se pode deixar de mencionar o infame parecer da Advocacia Geral da União (AGU) para a FUNAI, publicado em janeiro de 2021, sobre a heteroidentificação indígena. O mesmo defende que para fins pessoais é aceitável a “autoidentificação”, porém para utilizar de políticas públicas os indivíduos que se autoidentificarem como tais deveriam passar por uma banca de “heteroidentificação”, ou seja, uma pessoa não-indígena assumiria o controle de definição da identidade, o que fere os direitos originários fundamentais da autodeclaração. Não surpreende, então, a concessão da medalha de “Mérito Indigenista” ao ex-presidente Jair Bolsonaro (em março de 2022), alvo de denúncias nacionais e internacionais de genocídio contra os povos indígenas. O ex-presidente também havia vetado a mudança do nome “Dia do Índio” para “Dia dos Povos Indígenas”. Durante o primeiro semestre do governo Lula, felizmente, revogou-se tanto o infame parecer da AGU quanto o veto do ex-presidente.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

APARÍCIO, Adriana Biller.  Instituto do Indigenato e teoria crítica: a possibilidade de reinvenção do fundamento jurídico dos direitos territoriais indígenas a partir da análise da territorialidade e dos processos de luta Guarani. Tese defendida pela Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do título de doutora, em 2018.

JURUNA, Mário; HOHLFEDT, Antonio; HOFFMANN, Assis. O Gravador do Juruna. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1982.

MENDES JÚNIOR, João. Os Indígenas no Brazil, seus direitos individuais e políticos, 1988.

MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo: Editora Paulinas, 2012.

PAULO DE ALMEIDA, Helena Azevedo. A mitologia de uma “identidade indígena” única e a sua transmutação em “caboclo”: uma perspectiva em longa duração. Fênix – Revista De História E Estudos Culturais19(1), 575-597. https://doi.org/10.35355/revistafenix.v19i1.1034 .

SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. O Governos dos Índios sob a Gestão do SPI. In.: CUNHA, Manuela Carneiro da.  História dos Índios no Brasil. São Paulo – SP, Companhia das Letras, 2006.

——————————————. Um grande cerco de paz — poder tutelar e indianidade no Brasil. Tese (Doutorado em Antropologia Social) — Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.

TERENA, Luíz Eloy. O direito originário dos povos indígenas. Disponível em:

<https://apiboficial.org/2020/10/20/o-direito-originario-dos-povos-indigenas/>. Acesso em 01/08/2023.

VALENTE, Rubens. Os Fuzis e as Flechas: a história de Sangue e resistência indígenas na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

PREZIA, Benedito. História da Resistência Indígena: 500 anos de luta. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Bolsonaro libera exploração de florestas em terras indígenas a duas semanas do fim do mandato. Terra, 2022. Povos indígenas no Acampamento Terra Livre em Brasília (DF) Foto: Twitter/Fábio Nascimento/MNI/Reprodução/Guia do Estudante.

 

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