HH Magazine
Entrevistas e Diálogos contemporâneos

A (re)invenção da história

A oficina historiográfica de Durval Muniz de Albuquerque para quem o ofício de historiar é a arte de inventar o passado[1]

 

 […] profissão que insistem em afirmar que os documentos falam, que os documentos dizem, que os documentos afirmam, que os documentos demonstram, que os documentos mostram, que os documentos comprovam, construí o texto dando aos documentos estatuto de sujeitos, colocando-os para efetivamente falar, pensar, discutir, refletir sobre a sua própria condição de documentos e de arquivo, sobre as operações técnicas e políticas que assim os constituem e instituem e sobre as relações tensas, complexas e estratégicas que estabelecem com os humanos, notadamente aqueles nomeados de historiadores. Eis uma fábula que, ao contrário da fábula realista, se assume como tal. – Durval Muniz de Albuquerque

 

Durval Muniz de Albuquerque Júnior, pesquisador de reconhecida produção historiográfica nacional no campo da teoria e filosofia da história. Suas reflexões lançam luz em diferentes campos historiográficos, com especial atenção aos estudos sobre gênero, espacialidade, identidade e produção de subjetividade em perspectiva foucaultiana, com ressonância internacional. É pós-doutor em História pela Universidade de Barcelona, Espanha (2002) e pela Universidade de Coimbra, Portugal (2013), doutor e mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp 1994, 1988). Professor titular de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1A. Consultor ad hoc do CNPq e da CAPES. Foi presidente da Associação Nacional de História (ANPUH) no biênio 2009-2011. Ao longo de sua carreira acadêmica publicou mais 50 artigos em periódicos nacionais e internacionais, organizou e/ou publicou 15 livros e aproximadamente 70 capítulos de livros. Esteve presente em aproximadamente 180 bancas de defesas de dissertações e teses. Orientou 48 monografias de graduação, 55 dissertações e teses. Participa do Conselho Editorial de importantes periódicos nacionais e internacionais na área de história e afins. Em sua profícua produção intelectual, destacamos dentre outros livros que receberam várias reedições e/ou reimpressões e até prêmios, tais como: História – a arte de inventar o passado – Ensaios de teoria da história, A Invenção do Nordeste e outras artes, A Feira dos Mitos – a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste, 1920-1950) e O Morto Vestido para um Ato Inaugural – procedimentos e práticas dos estudos de folclore e de cultura popular.

Durante a entrevista, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior falou de sua trajetória profissional, e fez valiosas reflexões acerca do ofício do/a historiador/a e de seus (di)lemas no século XXI, desde a  função social do historiador até o processo de regulamentação da profissão, passando pela influência das obras de Michel Foucault para os estudos históricos e de sua atuação frente a Associação Nacional de História no mandato 2009-2011.

 Fagno da Silva Soares (FSS) e Cid Morais Silveira (CMS): Boa tarde, caro professor. Inicialmente, agradecemos a acolhida e disponibilidade em conceder-nos esta entrevista, e, por conseguinte, registramos o grande prazer em entrevistá-lo. Destarte, tomemos como mote inicial de nossa entrevista as motivações que o levaram à escolha da carreira de professor e historiador. Somando-se a isto, a célebre pergunta, para que serve a História?

Durval Muniz de Albuquerque Júnior (DMAJ): O desejo de ser professor surgiu ainda muito cedo desde os nove anos de idade, quando fui responsabilizado pela educação de minha irmã. Coube a minha mãe, minha formação inicial em casa, pois não havia escola na região onde eu morava, na zona rural. Durante o quarto ano do antigo primário, a minha mãe com uma gravidez de risco, passou para mim a tarefa de ensinar minha irmã que fazia o terceiro ano. Gostei tanto da experiência que tive certeza que seria professor, só não sabia de quê. Gostava muito de Português, muito de Geografia e de História. Eu sabia que seria professor de uma dessas disciplinas. Durante todo o meu segundo grau, hoje ensino médio, tive uma professora de História, Martha Lúcia Araújo, que me encantou completamente com sua forma de ensinar, apresentou-me uma história apaixonante. Daí a decisão foi inevitável, eu decidi fazer História. Inicialmente, não existia em Campina Grande-PB curso de História, existia o curso de licenciatura em Estudos Sociais. Me candidatei no vestibular para fazer Estudos Sociais. Ainda no primeiro ano de curso, foi extinto Estudos Sociais e as universidades abriram os cursos de História ou de Geografia, e permitiram que fizéssemos a opção por uma das duas graduações. Na ocasião foi criado para nossa turma de Estudos Sociais uma licenciatura em Educação Moral e Cívica que logo também foi extinta. E eu optei por História, a partir daí fiz toda uma graduação em História. A vontade de ser professor veio muito cedo, e a história tem a ver com meu encontro com a Marta Lúcia Araújo que também se tornou minha professora durante a graduação, ministrando duas disciplinas que continuam sendo centrais na minha carreira. Foi minha professora de Teoria da História, que é minha área de especialização no ensino, e História do Nordeste que é meu tema de pesquisa ao longo de toda minha vida. Então eu brinco sempre que ela é minha guru, ela é uma das pessoas mais importantes na minha vida acadêmica, além de ser uma mulher muito especial. Uma mulher de esquerda e a frente de seu tempo, que rompeu padrões. Trata-se de uma figura encantadora também por isso, sempre muito libertária e de postura firme. E quanto a pergunta, para que serve a História? A História serve fundamentalmente para que tenhamos uma compreensão menos limitada do nosso próprio presente. A História serve para o presente, para que não sejamos emparedados no/pelo presente, também para que não tenhamos uma visão, nessa época de prevalência tão grande do presentismo, como vai dizer o François Hartog (2003), a História ainda é muito mais importante porque nos permite ter uma perspectiva distanciada do presente. Eu brinco que a História nos permite sair do presente e brincar de olhá-lo de fora. Com a História é possível um distanciamento em relação ao presente. A aula de História, a escrita da História, é um convite para sair deste aprisionamento no presente e olhar para ele com distanciamento. E, portanto, olhar para ele com uma dada perspectiva, um olhar arguto e elucidativo. Além disso, a História estuda o passado, e o passado não é passado, ou seja, o passado continua presente no presente. Então, a História serve para que se compreenda o presente não de uma forma simplificada, mas numa perspectiva um pouco mais complexa, vendo justamente as camadas de continuidade que ele tem, ou seja, os anacronismos, as permanências, as resistências que possui. E, ao mesmo tempo, avaliando a sua própria atualidade, ou seja, o que no presente é só dele, a gente precisa do passado. Como é que a gente vai entender o que é específico do presente? O que se singulariza no presente se não o compará-lo ao passado? Claro, passado, presente e futuro são categorias temporais que orientam a nossa vida e ajudam a organizar tanto a identidade coletiva quanto a identidade individual. Então, nós seres humanos, pensamos historicamente. Um autor como Nietzsche, por exemplo, vai atribuir ao próprio fato de lembrar e ter memória a nossa própria humanidade, para Nietzsche o que diferencia o homem do animal é o ato de lembrar. Nietzsche discute no seu famoso texto Da utilidade e desvantagem da História para a Vida (1983) que o que nos diferencia do animal é o ato de lembrar, então nós somos animais que não esquecemos imediatamente do instante. Então, sem história, somos como um animal que fica aprisionado num instante, num momento sem prolongamento, sem continuidade, sem maior perspectiva. É claro que a História serve para outras coisas. A História também serve para relativizar os próprios valores do nosso tempo, à medida que, mostra que esses valores são históricos. Nossos valores e nossos conceitos não são apenas nossos, pertencem a nossa época. A história nos prepara para uma coisa ainda muito difícil que é aceitar a mudança. Nós temos dificuldade de nos relacionar com a mudança, e a história tem essa função, nos preparar para aceitar as transformações, que é uma de suas relações com o tempo. A história tem uma relação complicada com o nosso ser, porque ela tem uma ligação com a finitude, a exemplo da morte, então de certa forma ela nos ajuda a fazer o luto, a nos preparar a pensar na vida como perda, a história humana é perda, toda história é perda. Já os outros animais perdem e não sabem, como temos memória, nós registramos a perda. Como Nietzsche vai apontar, a história pode também nos levar ao crescimento da angústia, a angústia de ter a consciência desta fragilidade de todas as coisas. Portanto, a história tem essa ambiguidade chegando a nos aproximar do niilismo, à medida que, somos conscientes da finitude de todas as coisas, pensamos: Ora, se tudo acaba, para que eu vou investir em alguma coisa? Eis, o perigo de que falou Nietzsche para quem “não queremos servir à história, senão na medida em que ela sirva à vida” (Nietzsche, 2005). Noutros termos, ele nos aponta para a exceção da história, no qual o esquecimento era fundamental, e que nos momentos de felicidade era preciso que fossemos não históricos, num momento de grande felicidade perdermos a noção de finitude.

FSS e CMS: Fale-nos um pouco das influências historiográficas que teve durante sua graduação, mestrado e doutorado em história. Quais historiadores exerceram papel importante na sua formação inicial de pesquisador?

Durval Muniz: Bem, a minha graduação foi toda influenciada pelo Marxismo, então posso dizer que Marx foi minha primeira grande referência, o primeiro autor, a primeira grande camada da minha formação como historiador. É claro que eu tenho uma formação anterior, a família, extremamente religiosa, católica. E, portanto, idealista, neste sentido, o marxismo veio romper com isso. A primeira grande ruptura que tenho na minha vida, uma ruptura que levou inclusive a conflitos domésticos, com a família, foi por conta do marxismo. Eu tive uma graduação toda influenciada por ele, embora não lendo Marx, porque eu fiz uma graduação no momento em que Marx não estava sendo republicado no Brasil. Durante o final da Ditadura Militar brasileira os livros de Marx ainda estavam proibidos aqui, então eu fiz uma graduação basicamente lendo autores claramente influenciados pelo Marxismo, como Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, que foram os dois livros básicos da minha disciplina inicial de História do Brasil. Um caso curiosíssimo, pois quem ministrava a disciplina era uma professora extremamente conservadora do ponto de vista pessoal e do ponto de vista político, mas como eu acho que ela não entendia nada de Teoria da História, ela não sabia que estava nos dando dois livros marxistas para ler. Toda a disciplina de História do Brasil foi lendo Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior e na época não líamos Gilberto Freyre, pois era proibido no curso. Havia todo um preconceito com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, jamais lemos estes dois autores na graduação. Depois caminhamos nas outras histórias do Brasil com a Escola Sociológica Paulista, que é o marxismo temperado com weberianismo. Foi neste contexto, que lemos toda aquela turma, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Silva Carvalho Franco, dentre outros. E no final da graduação tive contato com o que seria uma nova historiografia, uma historiografia mais influenciada pelo Annales, aquela historiografia uspiana, mas que não deixa de ter um contato com marxismo, como Carlos Guilherme Mota, Fernando Novais, Boris Fausto, dentre outros. Um livro que foi muito importante para mim, lido na disciplina de Teoria da História com a Marta Lúcia Araújo foi 1930 – O Silêncio dos Vencidos, de Edgar De Decca (2004). Foi meu primeiro contato com o pensamento de Michel Foucault, mesmo sem saber, porque como vocês sabem este livro foi influenciado pelo curso que Foucault ministrou na Universidade de São Paulo – USP em 1976, pelo mesmo programa francês que trouxe décadas anteriores, Lévi-Strauss e Roger Bastide ao Brasil. O Edgar assistiu o curso, ficou tão impactado que escreve sua tese que originou o livro publicado em 1978. Eu o li em 1981, causando grande impacto, mas na verdade Foucault em nenhum momento é citado no livro. Marilena Chauí no prefácio atribui ao livro as influências de Walter Benjamin, mas na verdade são todas as categorias de Foucault que estão presentes, mas ele não fala em Foucault, talvez porque achasse que não passaria, a banca não aprovaria se ele falasse em Foucault. Foi um livro de grande importância na minha formação, pois foi ele que me levou a escolher a Universidade Estadual de Campinas – Unicamp para realizar meu mestrado, porque desejava ser aluno do Edgar De Decca. Achei o livro tão delicioso, tão diferente, me atraiu tanto, que fiz um projeto para o mestrado da Unicamp, embora ainda totalmente influenciado pelo marxismo. Um projeto sobre dois movimentos sociais no campo, ocorridos na Paraíba. Era em grande medida um projeto muito sociológico porque minha formação foi muito influenciada pela sociologia e economia, o que marcava a minha forma de escrever, a minha forma de escrever era extremamente sociológica e de economista porque eu tinha lido Celso Furtado e Francisco Oliveira e toda a escola uspiana de sociologia. Tratava-se de um projeto muito mais sociológico do que de cunho histórico sobre dois movimentos sociais contemporâneos para a linha de pesquisa que se chamava Capitalismo e Agricultura. Durante o mestrado cursei a disciplina muito importante com Hector Hernan Bruit Cabrera, onde aí eu fui ler Marx pela primeira vez. Nós lemos O Capital (1989) inteirinho, os seis volumes mais o Grundrisse, onde tivemos realmente um contato com o marxismo, só que o Hernan Bruit já fazia uma leitura muito interessante e diferente do marxismo, e paralelamente eu fazia uma disciplina chamada Historiografia Brasileira que era dada pelo Ítalo Tronca, que na verdade o que se lia em Historiografia Brasileira era Michel Foucault e Edward Thompson, os dois autores que estavam revolucionando a historiografia brasileira, naquele momento. O primeiro livro que eu li de Foucault foi A História da Loucura (1997), que foi um impacto enorme não apenas pela temática, onde nunca imaginei que a loucura poderia ter uma história, mas o impacto maior foi a forma de escrever, a beleza do texto, a força das imagens, o tipo de material que usava, quadros, narrativas, memórias, processos, uma diversidade de coisas, e eu fiquei fascinado pela forma que Foucault escrevia, como colocava as coisas, era surpreendente a forma como ele perguntava. Aí começa outra influência decisiva para mim. É claro que Thompson também vai ter uma importância muito grande, porque ele vai ajudar a relativizar e problematizar a formação marxista que eu havia tido. Thompson em grande medida questiona aquele marxismo mais estruturalista que eu tinha conhecido na graduação, e claro que fazia parte da minha formação também como militante político. Paralelamente a universidade eu me tornei militante político do movimento estudantil. Fui membro fundador do Partido dos Trabalhadores – PT. Líamos tendências de um marxismo mais vulgar, porque naquela circulação da imprensa dita nanica, com a abertura política, o que líamos era uma vulgata do marxismo. Comprei toda coleção dos livros da Marta Harnecker, que são de um esquematismo brutal, onde traz um esquema com os bonequinhos, o capital, o burguês, o proletário e etc. Tive uma formação muito esquemática. Thompson também foi muito importante para questionar isso. Foi no mestrado que tomei conhecimento de outros autores como Carlo Ginzburg, Roger Chartier, entre outros, e desde então não parei mais ler. Li várias outras coisas, porque o próprio Foucault convoca a leitura de mil outros autores. Fui ler Nietzsche, porque ele convoca a leitura de Nietzsche, fui ler Deleuze, etc. Quando eu volto para a Unicamp para fazer meu doutorado estava teoricamente muito mais definido, então faço uma disciplina com Alcir Lenharo onde lemos Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Michel de Certeau, dentre outros. Neste sentido, minha formação se aprofundou bastante. A partir daí, como sou professor de Teoria da História, tenho que ler todas as outras coisas que aparecem nesta área.

FSS e CMS: Na sua produção intelectual é possível perceber a máxima de que “história é vida” reverberando em sua escrita envolvente e provocativa, capaz de provocar emoções nos seus leitores. Compreendemos, pois que os sentidos/sentimentos humanos são produções culturais e históricas. Fale-nos um pouco da concepção da história das sensibilidades, situando-a no contexto da historiografia brasileira.

DMAJ: Todos os campos de trabalho, quando surgem, eles se enunciam como novos. Claro que o campo denominado de história das sensibilidades é um campo mais recente, mas não é de hoje que os historiadores sabem que os sentimentos fazem parte da história. A gente tem uma visão extremamente caricatural da historiografia do século XIX e mesmo de parte do século XX. A gente tende a reduzir a historiografia do século XX à Escola dos Annales e na verdade você tem vários autores que já pensavam a impossibilidade dos homens de separar os sentimentos da produção científica. Os românticos é uma primeira escola que coloca isso muito claramente. Se você for ler Jules Michelet, ele nos diz que as histórias não se separam dos afetos, mas isso também está presente em Leopold Von Ranke que nos é apresentado de uma forma totalmente caricatural pelo século XX. Mas Ranke, para a surpresa de muita gente, é uma das pessoas que defende que a História é ciência e arte. Ranke, que é apresentado como o autor do realismo por excelência, da cientificidade da História, na prática não é bem assim. Ele defende que a história é arte. Quer dizer, tem uma dimensão artística do qual ela não pode abrir mão. Então, na verdade, a Escola dos Annales e os marxistas fazem uma caricatura muito violenta da historiografia do século XIX para se legitimar. Mas o que seria a história das sensibilidades? É aquela história que leva em conta que somos seres sensíveis, antes de mais nada, primeiro, somos seres que possuem um corpo composto de órgãos do sentido, e que são afetados pela realidade do mundo. Tanto a cognição, a memória, a imaginação, quase sempre são faculdades que são disparadas, que são utilizadas a partir do momento que nosso corpo é afetado por um signo. Quer dizer que uma coisa nos toca pelos sentidos e convoca à compreensão, à cognição, à memória, à imaginação. Então, a história das sensibilidades, antes de mais nada, parte do pressuposto que nosso corpo se constitui de órgãos dos sentidos. Eles têm história, eles são educados historicamente. Nosso corpo não é só biológico, as dimensões biológicas são educadas e submetidas a códigos culturais, aquilo que Nobert Elias chamou de processo civilizador (1994), ou de educação dos sentidos. Nossos ouvidos, nosso olhar e demais sentidos, são educados cultural e historicamente, e educados para perceber algumas coisas e incapacitados para perceber outras. Quer dizer, em cada época histórica nós temos limites no ver, no escutar, no sentir, que é dado pelos códigos, pelos conceitos da cultura de uma época e lugar. Nós humanos lidamos com o mundo através dos conceitos, onde eu sinto uma sensação e imediatamente preciso do conceito para que ela ganhe sentido, para que eu saiba o que ela é. Eu sinto uma comichão aqui, eu preciso saber se é coceira, uma queimadura, ou seja, eu preciso de um conceito para que aquela sensação tátil seja decodificada, eu preciso da linguagem. E os conceitos variam, mudam ao longo do tempo, adquirem sentidos diferentes. Além disso, nós seres humanos, somos seres dos sentimentos, nós somos movidos subjetivamente pelo contato com o mundo, pelas coisas, pelos outros, e os sentidos também, como o antropólogo e etnólogo Marcel Mauss vai discutir lá no começo do século XX. Os sentidos obedecem a códigos de expressão, obedecem a conceitos. Por exemplo, amor é um conceito que varia com o tempo, onde o que é considerado amor varia de cultura e de época e as formas de expressão do amor, ou seja, como nós exprimimos, como nós praticamos o amor varia com o tempo, os códigos que regem a demonstração, as percepções do amor mudam. Eu posso perceber que uma pessoa está apaixonada por mim pela simples forma que me olha, porque eu fiz um aprendizado social dessa linguagem. Existe uma gramática, os sentimentos têm uma gramática que cada sociedade disponibiliza e que os homens aprendem. Então, a história das sensibilidades é uma história também dessa gramática dos sentidos que os sentimentos adquirem ao longo do tempo. Eu trabalho agora com o sentimento da saudade, que primeiro é um conceito particular da língua portuguesa, só ela possui esse conceito chamado saudade, que não significa necessariamente que o sentimento que ele nomeia seja exclusivo dos portugueses e dos brasileiros. Quer dizer, sentir falta de algo ou alguém é genérico do ser humano, só que outras línguas utilizam outros conceitos para isso. Então, a língua portuguesa tem um conceito especifico que é saudade, e ao mesmo tempo, o sentir saudade se expressa de diferentes formas ao longo do tempo, a própria concepção do que é saudade varia com o tempo. Em Leal Conselheiro, tratado escrito por D. Duarte em 1483, a saudade é uma doença, é uma paixão da alma, seu sentido e sua leitura obedece à teoria das paixões. O rei está preocupado que a saudade leve ao adoecimento coletivo de Portugal, leve as pessoas a morrer de melancolia. Há toda uma relação da teoria dos humores, da melancolia, até porque saudade tem o mesmo radical linguístico de saúde. Saúde e saudade vem do mesmo radical, e, portanto, ela é, nesse momento, pensada como sendo uma doença. Ora, no século XIX a saudade não é mais uma doença, passa a ser uma expressão da identidade nacional portuguesa, ou seja, muda completamente de sentido. Não é mais pensada no plano da patologia, mas muito pelo contrário, agora ela é um elemento que caracteriza o espírito, a alma do povo português. A história das sensibilidades lida com essas mutações nas formas de compreender, de perceber, nas formas de codificar, de praticar os sentimentos, e também com a historicidade dos sentidos, como os sentidos são historicamente produzidos. Nós temos a audição, que é biológica, e também temos a escuta, que é algo socialmente produzido. Então a audição é a capacidade que temos do ponto físico de perceber sonoridades, agora a escuta é uma educação disso. Temos um indivíduo educado que gosta de determinadas coisas, que não gosta de determinados sons, que acha uns sons agradáveis e outros insuportáveis, e isso tem a ver com a educação, isso não é biológico. Da mesma forma que a maioria das pessoas nasce com a capacidade de ver, com a visão, mas o olhar é produto da educação. Eu tenho a capacidade de enxergar e decodificar imagens, agora se eu acho as imagens belas, feias, ou agressivas, é um aprendizado.

FSS e CMS: Sua tese de doutoramento desenvolvida no início dos anos 90, “O Engenho Antimoderno: a invenção do Nordeste e outras artes” sob a orientação da Robert Slenes já trazia ao centro do debate o Nordeste, enquanto construção imagético-discursiva e espacial na historiografia. Diga-nos sucintamente o que mudou na historiografia brasileira nos últimos 20 anos?

DMAJ: Nos últimos 40 anos, a historiografia brasileira profissional efetivamente passou a existir por causa da implantação dos cursos de pós-graduação em História. Os anos 70 foram um momento de corte na historiografia brasileira porque você tem a definitiva entrada da pesquisa na universidade. Até os anos 70, a maioria dos professores de história não eram historiadores, eram somente professores e não se dedicavam à pesquisa, porque na verdade a universidade não incentivava isso. Por exemplo, você teve um José Honório Rodrigues, que fazia pesquisa ao lado do seu trabalho da universidade, no Arquivo Nacional. Ele não tinha nenhum incentivo institucional, nenhuma exigência para pesquisar. Se você ler o livro A História como ofício: A constituição de um campo disciplinar (2013) da Marieta de Moraes Ferreira, sobre os cursos de história da Universidade Federal Fluminense – UFF e da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, você verá inúmeros obstáculos que foram colocados por determinados professores catedráticos para que os novos, a exemplo da professora Maria Yeda Linhares, não realizassem pesquisa. Foi quase uma proibição. Somente como o surgimento dos cursos de pós-graduação em História nos anos 70 que vai ser introduzida realmente a pesquisa histórica na universidade brasileira de modo efetivo. Teses como as de Carlos Guilherme Mota, Fernando Novais e outros, foram pioneiras dos cursos de pós-graduação no Brasil. Antes se fazia pós-graduação em história na França, e não no Brasil. A historiografia brasileira nos últimos 40 anos, teve uma reviva marxista muito intensa num determinado momento. O marxismo volta a ter uma presença muito grande inicialmente numa história mais econômica, até numa história quantitativa, mas depois há o crescente avanço da história social que é majoritária na historiografia brasileira. Atualmente, a História Social divide com a História Cultural a prevalência em todos os departamentos das universidades brasileiras. Há um declínio progressivo da História Econômica. Outro declínio bastante acentuado é o da História Política, embora seja possível afirmar que esta tem tido uma certa retomada nos últimos anos, enquanto estudos de cultura política. Mas, ao contrário da História Econômica e política tradicional, existe por um lado uma poderosa historiografia social, uma História Social, e uma História Cultural muito diversa, muito ampla. O Brasil inclusive se abriu para múltiplas influências do ponto de vista teórico, onde aquela exclusiva relação com a França, um certo desconhecimento dos alemães, dos ingleses, mas principalmente um desconhecimento dos norte-americanos, vem desaparecendo. Assim, a historiografia brasileira se abre para um diálogo com várias outras historiografias. Há um crescimento exponencial da pós-graduação, passamos de 4 a 6 cursos nos anos 70 para 64 cursos de pós-graduação em história em 2016. Trata-se de um crescimento exponencial, uma abertura vertiginosa, a diversidade temática dos trabalhos é enorme. Considero importante destacar que é a partir dos anos 80 que começa a surgir no Brasil uma área de reflexões sobre a teoria da história e a história da historiografia. Uma área que também possui alguns autores isolados nos meados do século XX, no caso do Brasil, o José Honório Rodrigues é o introdutor da preocupação com esta área. Temos alguns nomes a exemplo de Francisco Iglésias, Roberto do Amaral Lapa, mas eram pessoas isoladas. É a partir dos anos 80 e 90 que começa a ter realmente um crescimento na área de história da historiografia que hoje tem uma vitalidade enorme no Brasil. Nós temos hoje duas revistas de historiografia, de teoria, que publicam pelo menos 2 números por ano, então você tem uma produção muito grande. O Brasil virou meta para todos os grandes historiadores do mundo, todo mundo vem para o Brasil, todo mundo participa de eventos no Brasil, todo mundo tem intercâmbio com universidades brasileiras, então nós somos hoje uma das historiografias mais pujantes do mundo, sem dúvida. O grande pecado é que nossa historiografia é escrita em português. Se a nossa historiografia fosse escrita numa língua internacional, como o inglês, ela teria um impacto muito maior. Se você vai fazer uma avaliação abrangente da historiografia brasileira, os traços mais gerais nos últimos tempos, nós temos um declínio de uma historiografia estrutural. Temos um retorno muito importante dos sujeitos, uma preocupação dos e com os sujeitos, inclusive a micro-história exerce influência bastante grande nos historiadores importantes do Brasil. Nós temos uma história social que leva em conta as próprias dimensões culturais da vida humana. A obra de E. P. Thompson e o impacto que teve sobre a historiografia brasileira representam essa aproximação do marxismo das dimensões culturais da história humana. Você tem uma diversificação temática enorme, áreas muito especializadas, como a história antiga e a história medieval, têm tido um crescimento bastante grande no Brasil, e isso gerou um intercâmbio interessante entre historiadores do Brasil e do mundo. Os historiadores brasileiros são internacionalizados até por uma exigência que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES coloca aos Programas Pós-Graduação, especialmente os de conceito 7, o fortalecimento do processo de internacionalização.

FSS e CMS: Em artigo publicado na Clio – Série História do Nordeste, nº 15 de 1995, cujo título “Violar memórias e gestar a história: abordagem a uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um parto difícil” o senhor trata das relações entre história e memória, em certa medida problematiza o que poderíamos chamar de uma operação historiográfica com memória. Noutro texto, intitulado de “História: redemoinhos que atravessam os monturos da memória”, na conclusão, o senhor fala da necessidade da história de criar novas palavras e novos conceitos para contemplar as emergências dos fenômenos históricos. Fale-nos um pouco dos desafios institucionais, teóricos e metodológicos do historiador do século XXI ao escolher perscrutar no mètier da história do tempo presente e ao mergulhar no universo da memória e da história oral.

DMAJ: Nos últimos tempos, como enuncia François Hartog e também Fernando Catroga, a memória tem passado a ser um objeto da história, a memória deixou de ser uma matriz da história, por muito tempo a memória era confundida com a própria história. Achava-se que a história era memória, e a história não é memória, ela é contramemória. A historiografia é um discurso crítico da memória, a historiografia não é a recepção da memória, não é deixar as memórias falarem como se pensou em certos momentos, inclusive no campo da história oral, uma certa visão romântica, o povo vai falar, os vencidos vão falar através das suas memórias. O historiador não respeita a memória de ninguém porque senão ele não faz história. A operação historiográfica é uma operação de violência em relação as memórias, o historiador violenta as memórias, porque nós submetemos as memórias a uma outra estrutura de compreensão, de interpretação. A memória é recepcionada na historiografia a partir de pressupostos teóricos, metodológicos colocados pelo próprio historiador. Nós não somos memorialistas, nós somos historiadores, que se afastam em grande medida da memória. Notadamente a historiografia nos últimos tempos adotou a postura, e talvez por isso Walter Benjamin, em determinado momento, tivesse tanta audiência, de ser contra a memória dos vencedores, de tentar construir a historiografia daqueles que não ficaram nas memórias, ou que tiveram as memórias obliteradas. Daí a importância da história oral, a possibilidade de você ouvir a memória daqueles que não estavam nas crônicas, e/ou manuais da história oficial. Mas o historiador não apenas repete as memórias, ele submete a memória a uma operação de inteligibilidade e de compreensão, a uma operação conceitual. E, portanto, ele viola os conceitos com que a memória é fabricada e a reelabora, reorganizando a memória a partir de um outro universo conceitual. Existe uma necessidade contemporânea de memórias que o Hartog vai abordar e que o Pierre Nora, por exemplo, também, vai tratar no texto sobre os lugares de memória. Ele vai chamar atenção para o fato de que a nossa sociedade é uma sociedade onde as memórias são cada vez mais precárias, e por isso é excessivamente preocupada com a memória, as sociedades atuais não cansam de criar instituições, lugares e recursos para lembrar, porque nossas memórias estão muito fragilizadas. Ora, eu tenho a tese que a historiografia foi uma das responsáveis pelo fim das sociedades da memória. As sociedades da historiografia não são as sociedades das memórias, porque a história fragiliza as memórias, justamente porque a história é contra a memória. A historiografia torna o ato de lembrar precário, porque as memórias estão sujeitas a crítica o tempo todo. A sociedade da memória acreditava na memória, elas eram fiáveis, toda memória é atravessada por mitos, tem uma dimensão mitológica, imaginária, que a historiografia vem e destrói. Quando a historiografia destrói os mitos da memória, as fantasias da memória, a dimensão lendária da memória é fragilizada. Quer dizer, a memória é testemunho, temos que perceber que a sociedade moderna é uma sociedade onde os testemunhos valem cada vez menos porque dão conta cada vez de parcela menores dessa sociedade. É uma sociedade tão complexa em que os testemunhos são cada vez menos capazes de abarcar, de dar sentido a um todo, são cada vez mais parciais porque você tem essa complexidade do mundo. Então nós temos inclusive um excesso de memória e um excesso de história. Um volume de informações que se produzem nesse campo no mundo todos os dias. Lembro-me de François Hartog ao dizer que agora os meios de comunicação historicizam os acontecimentos imediatamente, então todos os dias existem histórias sendo feitas, então quem vai conseguir sintetizar um volume tão grande de informações? Por exemplo, o pânico que o François Dosse provocou na categoria quando descobriu que a história estava em migalhas, é um pânico que vamos continuar tendo cada vez mais, porque toda totalização é parcial, fragmentária, tudo que chamamos de totalidade, na verdade, é um fragmento. O mundo é muito mais complexo do que qualquer totalização possa fazer. Por que se caiu em desuso os grandes manuais de totalização da história? Porque se descobriu que eles são rasos. Para eles existirem precisam ser muito superficiais. Para você escrever uma história do Brasil da colônia até hoje você precisa fazê-lo num nível superficial. O Boris Fausto acaba de lançar um, o Fernando Novais outro, e não é coincidência que eles não irão ser lidos pelos especialistas. Os livros serão vendidos na Saraiva para as pessoas lerem no avião. Isso mostra como esses manuais ficam na superfície, porque não é possível não ficar. Fazer um trabalho de interpretação densa da história do Brasil da colônia até hoje, a não ser que você volte a ser um historiador do século XIX, e dedicar uma vida a fazer uma obra de 27 volumes. Mas não há ninguém, com a quantidade de tarefas que são colocadas hoje para qualquer pessoa, capaz de produzir 27 volumes sobre a história do Brasil. Não dá nessa vida contemporânea para fazer como Leopold von Ranke ou como Max Scheler, verdadeiramente não dá. Ao lermos Ranke e Scheler é visível uma história completamente parcial, porque não dava para não ser, toda é. Então, esses grandes manuais que estão sendo lançados e eu acho que eles têm uma função, até meritória, que é de concorrer com a historiografia produzida pelos jornalistas. Eu acredito que é interessante que Novais e outras pessoas façam esses livros de síntese da história do Brasil e possam concorrer com os livros do Laurentino Gomes, Eduardo Bueno e etc. Mas esses livros não serão citados em nenhuma tese e em nenhuma dissertação de ninguém, e eles sabem disso, porque são manuais, no máximo serão usados no concurso do Instituto Rio Branco na prova de história para diplomatas na era José Serra.

FSS e CMS: Em seu artigo publicado, em 2004, na Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, com um título bastante sugestivo “A História em Jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da historiografia”, o senhor destaca a contribuição epistemológica dos trabalhos de Michel Foucault para a história. Todos sabemos do contributo de Michel Foucault para a historiografia e da influência deste, em suas pesquisas e reflexões. Gostaríamos que tratasse um pouco mais deste tema, refletindo sobre a importância deste pensador para os trabalhos historiográficos.

DMAJ: Foucault é alguém que vem de fora da historiografia, que consegue ver as debilidades e fazer críticas de uma área a que ele não pertence e que muitas vezes os próprios profissionais da área não o conseguem, porque estão tão mergulhados na rotina, nas regras rotineiras do fazer, que não percebem as debilidades e aporias. A relação dos historiadores com os filósofos foi sempre de tensão desde o momento que a história se profissionaliza no século XIX. Os historiadores para se profissionalizarem tiveram que recusar as filosofias da história, então você tem uma tensão entre filósofos que se colocam para pensar a história e os historiadores, ou algum profissional fora da área. A relação é sempre a mesma, muito espinhenta por parte dos historiadores. Foi assim quando o antropólogo Claude Lévi-Strauss falou da história ou quando o crítico literário Roland Barthes falou da história. O mesmo ocorreu com o filósofo francês Paul Ricoeur quando falou da história e foi assim quando um historiador, que não é propriamente historiador, Michel de Certeau, padre jesuíta falou da história. Foi assim também quando o crítico literário Hayden White falou da história e fez críticas epistemológicas à historiografia.  E na verdade quase sempre foram esses autores que apresentaram críticas mais relevantes para a mudança da forma como a história se vê. Não necessariamente partiu dos próprios historiadores. Embora tenham historiadores que fizeram críticas muito interessantes interiores ao campo e que ficaram marginalizados por isso. Por exemplo, você toma dois historiadores americanos Carl Becker e Charles Beard, ambos, no começo do século XX, já defendiam que a história é absolutamente subjetiva, que não existe uma verdade única na história. Critica a pretensão científica na história, critica o realismo. Ora, eles quase apanham dentro dos EUA. Quem são os americanos que no Brasil vão ter influência? Vão ser os brasilianistas, que normalmente são historiadores influenciados pelo marxismo, que não conseguem fazer história nos EUA por causa da perseguição americana ao marxismo nas universidades e que trabalham com o Brasil, trabalham com outras sociedades da América Latina. Neste sentido, Foucault teve uma importância enorme, porque ele vai mostrar uma série de equívocos dos próprios historiadores. Na mesa redonda de 20 de maio de 1978 com os historiadores,[2] Foucault vai mostrar como os historiadores tinham abandonado a valorização do acontecimento. Os historiadores tinham entrado numa deriva estruturalista, que atinge o auge com a era braudeliana, o longuíssimo tempo, a longa duração e o desprezo pelo acontecimento, o acontecimento como espuma, como mera onda superficial. Havia uma desvalorização do acontecimento, elemento que é fundamental na história, afinal, a história é acontecimento. Vale destacar que Foucault nunca desprezou o fato de que um acontecimento se torna perceptível na sua relação com o estrutural, na sua relação entre singular e contínuo, geral, entre a ruptura e a continuidade, quer dizer, Foucault chama atenção para ênfase na ruptura que era uma coisa que tinha desaparecido na história. A própria historicidade, em grande medida depende e tem forte peso da herança heideggeriana em Foucault, a importância da historicidade das coisas. Os historiadores pensavam historicidades, mas a historicidade nos historiadores parava em algumas coisas. Os objetos não eram históricos, já eram dados, então a historicidade parava quando chegava no objeto, quando chegava no sujeito. O sujeito era um a priori da história, o sujeito fazia a história, ele antecedia a história, então ele não era percebido como sendo histórico. Ora, a própria historicidade dos conceitos com que os historiadores trabalham, a própria historicidade da linguagem não era uma questão para os historiadores. Foucault vai chamar atenção para a centralidade da linguagem que era uma questão destacada por Roland Barthes e mais tarde por Paul Ricouer. Os historiadores descobrem, surpresos, num determinado momento, que eles escrevem, que eles narram, e que a linguagem, portanto, é um elemento fundamental na configuração do passado. Quer dizer, a centralidade que Foucault vai dar à noção de discurso, por exemplo, é que para ele o discurso primeiro é uma prática, não tem nada a ver com a ideia de representação, não é algo que apenas copia algo do real, imita algo do real. O discurso é uma pratica social, portanto, o discurso é um acontecimento, uma intervenção na realidade, o discurso é uma ação. Daí o weberianismo de Foucault, a ideia da ação significante de Weber que é fundamental, assim quando o homem age, ele age mediante conceitos, sentidos e significado. Sua ação é linguística, é conceitual, ele não age conceitualmente apartado da realidade. O ranço materialista vulgar que há no próprio marxismo, que confunde empiria com realidade e que inclusive não consegue perceber que o empírico na historiografia não existe, porque nós lidamos com algo que passou, então o que é empírico na história já nos chega significado, já nos chega através de sentidos, através da linguagem, nós apenas lidamos com os restos, mas mesmo os restos precisam possuir sentido, através da linguagem. Então, como Paul Veyne vai nos dizer em seu conhecido texto Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história (1982), ele revoluciona a História como vai revolucionar a filosofia, justamente porque ele também não é um filósofo como os outros filósofos eram. Foucault não fez nenhum livro sobre outros filósofos, ele não considerava filosofia aquela pratica onanista de ficar relendo outros filósofos. Foucault fazia filosofia com o arquivo, isso o diferencia completamente, havia elementos de um historiador em sua prática de filósofo. Quer dizer, Foucault tem muito mais semelhança com uma tradição anglo-saxã e principalmente alemã da hermenêutica. Foucault tem muito mais a ver com Hans-Georg Gadamer e Reinhart Koselleck do que com as tradições da historiografia francesa, por isso que ele causa um impacto tão grande, muito maior na historiografia francesa e, por conseguinte na historiografia brasileira, que durante muito tempo manteve forte ligação com a França. Atualmente a historiografia brasileira tem tido uma certa aproximação com a tradição germânica, o que tem nos permitido perceber que Foucault dialoga com o outro lado da fronteira, com toda uma tradição hermenêutica germânica, que vem de Schleiermacher e que tem em Gadamer o grande nome no século XX. É importante chamar a atenção para o fato de que a tese de Foucault ao lado da História da Loucura foi à tradução de um trabalho introdutório a antropologia de Kant, então, na verdade, Foucault é um leitor dos germânicos, alguém que, vocês sabem, até por motivos políticos, França e Alemanha rivalizaram ao longo do século XX. É sabido que a historiografia francesa exerceu historicamente uma influência enorme no Brasil, porque a criação dos dois primeiros cursos de História foi através das missões francesas no Departamento de História da Universidade de São Paulo – USP e, posteriormente, no Departamento de História da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. As missões francesas deixaram um legado e uma enorme influência até hoje sentida. Fernand Braudel em São Paulo e Henri Hauser no Rio de Janeiro, que já era um historiador consagrado, aposentado, com mais de 70 anos, que veio para o Brasil para fundar o curso de História no Rio de Janeiro. Ele teve uma influência mais expressiva naquele momento do que o próprio Braudel que ainda era um iniciante, estava começando. Henri Hauser era um historiador já completamente estabelecido na França, já consagrado, um dos êmulos de Lucien Febvre. Ele é fundamental para a criação do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Nossos dois departamentos de história surgem com influência francesa, e isso faz com que desconheçamos muito dos historiadores germânicos.

FSS e CMS: Em seu livro “História: a arte de inventar o passado – ensaios de teoria da história”, o senhor associa o fazer história a fazer arte. Como se dá essa relação entre história e literatura?

DMAJ: Quando a gente pensa a história como arte, não se reduz necessariamente à literatura. A história é arte, como próprio Leopold Von Ranke já havia falado, porque produz imagens, a história tem que construir imagens. A literatura constrói imagens, mas as artes de uma forma geral, constroem imagens. Portanto, a historiografia tem uma relação com as artes em geral e não apenas com a literatura. Como Hayden White em Meta-história: A imaginação histórica do século XIX (1995) vai mostrar, a narrativa histórica é tropológica, ela utiliza as mesmas figuras de linguagem que a literatura. Nós não temos como fugir do uso das figuras de linguagem, existirá uma escrita da História que é irônica, que abusa do uso de oximoros, uma História que utiliza a metáfora, que se apoia na metonímia. Utilizamos diferentes tropos linguísticos, trabalhamos com a figurabilidade da linguagem, a História lança mão do fato de que a linguagem é capaz de figurar, produz figuras e cenas. Um bom historiador e professor é aquele que transforma o passado em cenas, através de sua narrativa o leitor lê e vê o passado, é capaz de visualizar o passado por meio delas. Daí, por exemplo, Hans Ulrich Gumbrecht, um crítico literário alemão que anda muito em evidência no Brasil, vai nos dizer que um dos papéis da História é fazer presença, produzir presença utilizando a linguagem. Ele vai mostrar como nós humanos sentimos necessidade da presença do passado, por isso nós gostamos de ruínas, centros históricos, museus, gostamos de tudo que torna o passado algo presente. A historiografia é uma maneira de presentificar o passado, e, portanto, tem uma dimensão estética. A nossa relação com o passado é também no plano da estética, da emoção, do afeto. A pessoa se emociona porque entra numa ruína, porque entra num castelo. Então a historiografia é inseparável disso, agora é claro que a história não é literatura e não será nunca porque tem regras que foram definidas para escrita de história, desde Heródoto de Halicarnaso que a diferem da literatura. Quer dizer, a história trata de eventos reais e de pessoas reais, de pessoas que existiram e de eventos que aconteceram, isso é uma coisa primária da narrativa histórica. Segundo, a história é um discurso mediante documentos, ela precisa apresentar documentos para legitimar das coisas que diz. Ora um livro de literatura que apresenta documento é tedioso, só mesmo Jorge Amado é capaz de fazer um livro de literatura apresentando documentos. Mas leia Cacau (1934) e vocês irão ver se não é um dos livros mais enfadonhos de Jorge Amado, não tem nem comparação com Teresa Batista Cansada de Guerra (1972), ou Gabriela Cravo e Canela (1958) onde os documentos felizmente desaparecem. Então, o discurso literário tem regras que também mudam historicamente, nem sempre se fez literatura do mesmo jeito. Quando você passa do Romantismo para o Naturalismo, as regras mudaram. O mesmo se aplica à historiografia. Existem regras básicas que separam a história da literatura. Então não existe nenhum pânico da história virar literatura, isso não tem sentido, isso na verdade é criar um pânico para virar um veto. Quando as pessoas querem vetar determinadas coisas elas infundem o medo, e quase sempre quem faz isso é quem não consegue fazer o que os outros fazem, quem escreve mal, quem aprendeu a fazer história sem nenhum sabor literário e quer vetar os outros de fazerem, utilizando esse espantalho, esse medo de que a história vai virar literatura. A História tem pretensão à verdade, a literatura não tem, quando a gente diz que a história tem pretensão a verdade, não quer dizer que a história alcança a verdade, e será que ainda tem alguém que acredite que alguma ciência alcance a verdade definitivamente? A Física tem pretensão à verdade, mas os físicos hoje sabem que a Física não chega à verdade definitiva sobre a natureza do universo, senão não haveria teorias físicas diversas que destroem umas às outras ao longo do tempo. Se Galileu tivesse chegado à verdade do universo não existiria Newton, Einstein. Se Darwin estivesse chegado definitivamente à verdade sobre as espécies, sobre a vida biológica, não se continuava fazendo pesquisa no campo da Biologia. Que a verdade é relativa, que a verdade é parcial, que a verdade é datada, que a verdade é uma convenção humana, isso vale para qualquer área, não só para o campo da História, quer dizer, a procura da verdade é uma aporia de qualquer ciência, porque ela procura e não acha definitivamente, fabrica verdades parciais, momentâneas. Um físico para fabricar uma verdade ele precisa isolar uma série de variáveis da realidade do mundo para fabricar uma determinada verdade, porque aquilo que ele fabrica no laboratório, se for colocar em outra situação de ambiente, já não vale, é relativo, então ele cria uma situação artificial, tanto quanto o historiador. A escrita historiográfica tem uma situação artificial, porque ele toma o passado e evidentemente tira ele do passado. O objeto do historiador é mais artificial ainda porque ele não pode voltar no tempo, então ele constrói o passado num outro tempo. Então qual é o drama? De se saber que a verdade é parcial, ou seja, que você apenas busca ela e a literatura não busca, embora tenha capacidade de encontrar as verdades por vezes, mais universais, existenciais para o homem do que a própria história? Existem grandes monumentos da literatura ocidental que fizeram os homens ter consciência de determinadas fragilidades e carências humanas mais do que qualquer obra de História, embora o escritor de literatura não esteja preocupado com a verdade e a coerência ente uma narrativa e aquilo sob o qual se fala.

FSS e CMS: Ainda no livro “História: a arte de inventar o passado – ensaios de teoria da história”, em seu artigo “Por uma leitura ‘safada’ de E. P. Thompson”, o senhor faz críticas à sacralização deste autor entre os praticantes do marxismo na historiografia brasileira. Haveria hoje uma corrente historiográfica dominante nos cursos de pós-graduação no Brasil?

DMAJ: É difícil dizer se existe. Existem, em alguns cursos de pós-graduação, é notório, se você toma os cursos de história da Universidade Federal do Ceará – UFC, e da Universidade Federal Fluminense – UFF, Thompson é o grande guru, aquele que influencia a maioria dos trabalhos, no que eu não vejo nenhum problema. A diversidade da historiografia brasileira é garantida por isso, você vai ter departamentos com outros autores, outras preocupações. A pós-graduação da Universidade de Brasília investindo em Jörn Rüsen, você terá na pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG uma grande influência da Escola dos Annales, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS vai se ler muito Hartog e Chartier, etc. São as especificidades de cada programa com suas áreas de concentração e linhas de pesquisa. Cada programa tem as suas especificidades e o marxismo no Brasil é muito variado, sempre foi. A História Social influenciada pelo marxismo produz obras de muito valor seja do ponto de vista historiográfico, seja do ponto de vista social. Não há nenhum pensador no século XX que não tenha sido influenciado por Marx ou teve que com ele dialogar. Foucault existe porque Marx existiu, porque Freud existiu, porque Nietzsche existiu. Sem esses autores é incompreensível qualquer pensador do século XX, pois todos tiveram que dialogar de alguma forma com eles. Todo mundo teve que pensar contra ou a favor do marxismo, mas o marxismo foi uma coisa incontornável no século XX. Eu não vou partilhar de forma nenhuma dessa bobeira direitista de jogar o marxismo no lixo, essa leitura à la Pondé e Olavo de Carvalho, que faz de Marx um lixo, que toma o marxismo como sendo um atraso, coisa ultrapassada. Isso não existe. Platão não está ultrapassado, Sócrates não está ultrapassado, que dirá Marx. Nenhum pensador e pensamento está ultrapassado. Aristóteles é capaz de ainda provocar alguma reflexão, Marx mais ainda. Nesse mar de conservadorismo que virou a sociedade brasileira, de forma nenhuma vou achar que uma historiografia, por exemplo, como a historiografia que se faz sobre a escravidão do Brasil não tem importância. Tem importância porque a nossa sociedade é uma sociedade marcada pela escravidão, é uma sociedade ainda com uma elite com mentalidade de senhor de escravo. E, portanto, toda historiografia social sobre a escravidão tem um valor, uma importância enorme no Brasil. É uma pena que muitos historiadores culturais não trabalhem com a escravidão, porque ela não é apenas uma marca na estrutura social e econômica, mas na forma de pensar, nos valores, costumes, nos hábitos da sociedade brasileira. As pessoas têm o hábito de senhorzinho e de sinhazinha e isso é uma coisa que merecia um estudo. O desejo de escravo que é uma coisa até psicanalítica. Poderia se fazer um estudo psico-histórico do desejo de escravo no Brasil, um desejo de mucama, aquela que serve inclusive na cama durante as noites.

FSS e CMS: Em linhas gerais, quais são hoje os desafios de ser professor e pesquisador de história do Brasil? Num rápido retrospecto, como o senhor analisa o avanço da pós-graduação no campo da história?

DMAJ: Eu acho que o nosso desafio maior hoje, primeiro, é enfrentar a onda conservadora e um verdadeiro cerco que a escola no Brasil está sofrendo, com coisas absurdas como a proposta da escola sem partido, combate a ideologia de gênero, que nos afeta diretamente. A tal da escola sem partido é um ataque direto aos professores de História, porque nós somos, normalmente, nas escolas, os professores mais incômodos. Não é o professor de matemática que está sendo visado pela escola sem partido, embora nessa semana tenha saído um texto genial de um professor de matemática, fazendo um manual para a escola sem partido, determinadas palavras que ele não ia poder usar nem no manual de matemática. Ele não poderia falar, por exemplo, de divisão. Não, divisão teria que desaparecer porque divisão é coisa de socialista, socialista é que divide, é o lulopetismo, é esse pessoal de vermelho que fala de divisão. Mas é claro que isso tem muito mais a ver com o professor de História. O fato de que não tenhamos nossa profissão regulamentada ainda hoje, mostra como somos pouco queridos pelas elites dirigentes. Então, acredito que primeiro de tudo a gente tem esse desafio de enfrentar esse recuo conservador da sociedade brasileira, porque o professor de História trabalha com a produção de subjetividades, trabalha com aquilo que o Gilles Deleuze, Félix Guattari chamam de dimensões micropolíticas da existência, trabalha com a produção de valores, de formas de pensar, de formas de conceber o mundo. E aí que a batalha se dá com os conservadores, por isso eles vão atacar violentamente a escola, por isso eles vão tentar cercar a escola e a universidade. Os bolsonetes estão aí atacando e invadindo as universidades, e isso pode caminhar inclusive para um enfrentamento físico. Ontem circulou um texto do Luís Filipe Pondé dizendo, ‘porque todo professor de universidade é marxista? De esquerda?’ Então é essa ideia, de que nós todos, das universidades, somos todos vendidos ao PT, somos todos de esquerda (quem dera), e os professores de história serão profundamente vigiados. Então nós temos o papel de se contrapor a essa onda conservadora, de enfatizar a formação das subjetividades críticas, democráticas e republicanas. A historiografia tem esse papel, o questionamento dos preconceitos, dos conceitos mais medíocres que regem essa cultura e essa sociedade, e o papel de mostrar as raízes históricas das nossas mazelas sociais, das nossas mazelas políticas. E claro, no campo propriamente da historiografia, eu acho que temos de consolidar internacionalmente a historiografia brasileira. Possuímos uma historiografia extremamente produtiva, pungente, de qualidade, e acho que está na hora dos historiadores assumirem a fala pública.

FSS e CMS: O senhor foi o primeiro nordestino a presidir a Associação Nacional de História (ANPUH) em meio século de existência desta instituição. Fale-nos de sua experiência e contributo a ANPUH no biênio 2009-2011. E qual sua visão sobre o atual processo de regulamentação da profissão de historiador no Brasil?

DMAJ: O processo de regulamentação da profissão está paralisado no Senado, só falta a última votação que é a votação no plenário, mas, não acontece, porque eles estão ocupados em destituir a presidenta, porque eles estão preocupados com o governo interino, porque eles estão ocupados em se salvar da Lava-Jato, estão preocupados com outras coisas, não vão se preocupar a essa altura com a profissão dos historiadores. Falta essa última votação, mas não há interesse e no momento em que o país cai na mão de um governo extremamente conservador, não sei se nós teremos essa regulamentação efetivada. Teremos que aguardar uma outra conjuntura. Para mim foi muito interessante, foi uma experiência muito boa ser presidente da ANPUH e não tem nada a ver com o fato de eu ser o primeiro nordestino ou o primeiro fora do eixo Rio e São Paulo a presidir a ANPUH. Na época eu fiz questão de dizer isso, eu não fui para lá porque sou nordestino ou deixo de ser, fui para lá porque parece que eu tenho prestígio entre meus pares, que sou reconhecido pelos pares independentemente dos lugares de onde eles são, e talvez justamente porque eu sempre tenha me negado a me colocar nesse lugar menor de historiador regional, de historiador do Nordeste, no interior desse regionalismo que normalmente diminui. Eu nunca achei que era preciso eu sair do Nordeste para eu me tornar uma figura nacional, mas também nunca achei que ser do Nordeste é um mérito ou um demérito. Não me coloco no lugar de sujeito romântico de herói da resistência, do migrante que conseguiu vencer no Sul, que chegou a presidente. Fiquei muito feliz porque foi um reconhecimento de meus pares, e procurei fazer um trabalho que eu achava que a instituição precisava. Na época coincidiu que a minha gestão era gestão da preparação do simpósio nacional de comemoração dos 50 anos da entidade, então eu preparei na verdade um plano de atuação para dois anos, visando preparar a associação para a comemoração dos 50 anos. Todas as coisas que eu fiz em grande medida foi para isso. Melhorei a comunicação da entidade com os sócios que era lamentável, você tinha um boletim que era uma pilha de links. Uma entidade que não tinha memória, então investi na recuperação da memória justamente de uma entidade de historiadores que não tinha memória, que não tinha documentação. Trabalhei para que a Revista de História continuasse a recuperar seu prestígio junto à comunidade de historiadores. Houve um período em que ela passou por um desprestígio bastante grande no interior da própria categoria, na medida em que passou a ser um lugar onde se publicava apenas trabalhos de mestrandos e doutorandos orientandos daqueles que estavam no conselho editorial da revista. E aí a Regina Horta Duarte, editora da revista na gestão anterior do Manoel Luiz Salgado Guimarães, tinha recuperado a revista e a ideia foi justamente fortalecer isso, ampliar, cumprindo aquilo que foi decidido na assembleia da Associação Nacional de História – ANPUH, de tornar ela uma revista internacional, com a versão em inglês. Foi um trabalho bastante grande tornar a revista bilíngue. Fazer a Revista História Hoje efetivamente existir, pois ela havia sido criada, mas praticamente não tinha ainda sido publicada com regularidade. Procuramos, primeiro, dar a ela um perfil diferente da Revista Brasileira de História, pois não tinha sentido a ANPUH ter duas revistas que competiam na mesma área. Organizei administrativamente a instituição, que estava desorganizada. Eu encontrei a ANPUH no Serviço de Proteção ao Crédito – SPC por causa de uma dívida na livraria de R$ 40 reais. Fiz uma gestão com uma diretoria que me ajudou muito, foi efetivamente uma gestão partilhada com toda a diretoria, onde a gente definiu uma área de atuação para cada um. Eu fiquei na coordenação, mas cada um tinha uma área de atuação, por exemplo, a segunda secretaria pôs para funcionar o fórum de graduação que não funcionava; a secretaria geral deu conta de fazer o fórum de pós-graduação e o prêmio Tese ANPUH, enquanto a vice-diretora ficou com a organização do evento, o XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH 50 ANOS: Comemorações em São Paulo, em 2011. Fizemos com que efetivamente a ANPUH fosse uma gestão democrática partilhada com as regionais. A maior parte dos diretores regionais não podiam ir às reuniões porque não tinham condições financeiras. Começamos a bancar as viagens para termos todas as regionais presentes, achamos que mesmo gerindo de longe, devemos reconhecer que tivemos muita sorte da mudança que fiz na secretaria. A entrada do Pablo Serrano, que até hoje é secretário da ANPUH, permitiu que eu fizesse a gestão a partir do Rio Grande do Norte sendo a sede da ANPUH em São Paulo e isso foi possível porque tive um secretário extremamente competente e interessado.  Quando chegamos ainda era apenas um bolsista, foi nomeado secretário e hoje continua justificando sua nomeação. Conseguimos ampliar as filiações da ANPUH, conseguimos entregar a Associação numa situação financeira muito melhor do que a que encontramos, até porque o XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética no Ceará, em 2009, que arrecadou muito, gastou muito também e, portanto, o lucro final foi muito pouco. Acho que as pessoas reconhecem que foi uma boa gestão.

FSS e CMS: Por fim, baseado em sua experiência, que conselhos traz para os novos historiadores que se iniciam pelos caminhos do ensino e da pesquisa?

DMAJ: Dar conselho é uma coisa meio complicada. Trabalhar no campo de História exige antes de mais nada estudo permanente, o conhecimento na área de História fica obsoleto muito rápido, então você pode rapidamente ficar um professor defasado, rapidamente um pesquisador obsoleto. Você não pode parar de ler, tem que estar o tempo todo se atualizando com o que é publicado, com os debates, a atualização permanente é fundamental. E não se conformar com o que já se alcançou, acho que para qualquer profissional. Quando você consegue algo tem que colocar uma meta mais à frente, você deve querer outra coisa. Não ser conservador em nenhum ponto de vista, inclusive acadêmico, não se fechar para as novidades, não se contentar com uma determinada posição que você conseguiu, porque senão você se fecha e ficará se defendendo contra qualquer novidade. Ter uma relação com os colegas e com os alunos, de respeito e colaboração, e claro, o historiador tem que ter responsabilidade social, alguém que tem que ser cidadão, responsável pelo o que ocorre à sua volta, não pode ser alienado, fechar os olhos para o que acontece no mundo. Não aconselho a um historiador não ver televisão, não escutar rádio, não ler revista, a ser alguém que não frequenta as redes sociais. Hoje precisamos estar antenados, o historiador precisa saber o que está se passando à sua volta, e o professor de história também, isso é material para sua própria reflexão e ensino.

 


 

[1]Entrevista realizada em 22 de julho de 2016, com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor dos Programas de Pós-Graduação em História das Universidades Federais do Rio Grande do Norte e Pernambuco (UFRN/UFPE) e ex-presidente da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil). Uma versão desta entrevista foi publicada no periódico História Unisinos, com o título La (re)invención de la historia: El trabajo de Durval Muniz, cuyo oficio es el arte de inventar el pasado. 20(3): 398-410, Setembro/Dezembro 2016 Unisinos – doi: 10.4013/htu.2016.203.14.

[2] Arlette Farge, Alexandre Fontana, Catherine Duprat, Carlo Ginzburg, François Ewald, Jacques Revel, Jacques Léonard, Maurice Agulhon, Michelle Perrot, Nicole Castan Remi Gossez e Pascal Pasquino.

 


Referências

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