HH Magazine
Cadernos

Acervos, fontes e arquivos indígenas

Primeiramente, é preciso estabelecer que as fontes indígenas vão depender, como em qualquer pesquisa histórica, de um determinado recorte, seja temporal, espacial e/ou, que é uma diferença sobre as histórias dos povos indígenas, do povo pesquisado. Outro ponto a se diferenciar é que os acervos, fontes e arquivos indígenas são aqueles em que há a presença ativa desses sujeitos, destacando seus protagonismos, seja na organização dos mesmos ou suas presenças nas fontes abordadas. É diferente, portanto, de uma fonte escrita por um não indígena sobre os mesmos, onde, em uma maioria esmagadora das vezes, o que se destaca é o olhar colonizador, como apontou Tzvetan Todorov, em A Conquista da América (1982).

Considerando isso, pode-se afirmar, como destacou Carlos Fausto, em Os índios antes do Brasil (2000), que é possível realizar pesquisas descoloniais a partir do entrecruzamento dessas fontes, também arqueológicas, com a história oral. Essa é uma metodologia recorrente para entender a ocupação originária do território que viria a ser o Brasil. No entanto, é preciso dizer também que apesar do Instituto Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) registrar mais de 24 mil sítios arqueológicos ao redor do país, muitos deles, que são indígenas, ainda não foram estudados e outros nem registrados. É o que demonstra a historiadora Puri, Aline Rochedo Pachamama, no livro “Boacé Uchô: a história está na terra” (2020). Nele, a autora mostra como os relatos, a partir das memórias coletivas e individuais, constituem fontes potentes para o entendimento da história indígena no país, e no mundo. Sua análise converge com o que defende Linda Smith, pesquisadora Maori, no livro Descolonizando Metodologias: pesquisa e povos indígenas (2018).

Outra fonte indígena importante em nossa contemporaneidade, e que também se relaciona diretamente com a história oral, é a produção literária indígena. A literatura indígena vem ocupar o território dos saberes escritos, negligenciados pelos etnocídios direcionados a estes povos, como aponta Pierre Clastres, em Do Etnocídio (1980). A literatura indígena, reverte as violências simbólicas e físicas (no campo das ideias), em seus escritos. É o exemplo do livro Tybyra: uma tragédia indígena brasileira (2020), do autor Potiguara, Juão Nym, já mencionado em outros textos aqui na HH Magazine. Nele, o autor subverte o relato do frade francês Yves Devreaux, em Continuação da História das coisas memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614, sobre um indígena, que seria considerado hoje como homoafetivo, assassinado com o disparo de um canhão. No relato de Devreaux, como é de se esperar de uma história epistemicida, omite-se o nome e o povo daquele indígena. No livro de Juão Nym, o mesmo é renomeado como Tybyra, termo utilizado pelos Tupinambás para designar o homem homoafetivo, como escrevem Estevão Fernandes e Bárbara Arisi, em Gays Indians in Brazil(2017). Cabe aqui salientar que a própria existência de uma palavra específica para se referir à homoafetividade, evidencia a presença frequente dos mesmos nas histórias indígenas, realidade invisibilizada pela colonização.

Dessa forma, a linguística histórica deve ser encarada como outro amplo acervo de fontes, além de metodologia e campo de análise da história indígena no Brasil, apesar de alguns apontamentos precisarem ser feitos. É o que demonstra Eduardo Navarro, no Dicionário Tupi Antigo(2007), sobre os erros de tradução feitos do Tupi Antigo e do Nheengatu para o português, ao longo da história do país. Esses erros trouxeram consequências consideráveis, no que tange à escrita de uma história que se compromete com os protagonismos indígenas. É também Eduardo Navarro que conclui a tradução de uma série de cartas trocadas entre indígenas que lutavam nos diferentes lados da Insurreição Pernambucana. As cartas foram escritas em Tupi antigo e sobreviveram ao tempo por estarem em posse dos holandeses, durante a querela. De acordo com Navarro, em estudo publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, a tendência de fontes como essa era ser destruída se ficassem nas mãos dos portugueses, o que explica o número relativamente baixo de documentação como esta.

Um dos principais acervos, devido à sua longevidade e projeção nacional, é o que se encontra no antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e atual Museu Nacional dos Povos Indígenas. O Museu conta com extenso acervo etnográfico, além da proposta do “Museu da Aldeia”, com exposições itinerantes. No entanto, deve-se destacar que a concepção do museu, nos anos 1950, se relaciona também com a identidade social dos “sertões”, isentos da administração pública, como aponta Paulo Henrique Martinez, em A nação pela pluma: natureza e sociedade no Museu do Índio (1953-1957) (2012). O autor aponta a construção de uma história pública dos museus, incluindo dimensões que podem oscilar entre participação e democracia, assim como exacerbação de um nacionalismo ufanista. Nesse sentido, a partir da noção de “coerência ilusória”, destaca-se como a seleção do passado é realizada em um acervo por meio de escolhas reinventadas a cada geração.

Considerando isso, cabe destacar aqui a ênfase que a história indígena (em que se destacam os protagonismos dos povos originários, assim como, o reconhecimento dos mesmos como sujeitos de direito) exerce sobre a análise de documentação colonial, imperial e republicana, como aponta Ana Paula Silva, em Arquivos: territórios indígenas (2018). Dessa forma, a autora mostra como a História indígena serve não exclusivamente como campo, mas como perspectiva teórico-metodológica para análise de ampla documentação.

Essa perspectiva, de uma consciência histórica sobre os indígenas como sujeitos, só é nova para não-indígenas, herdeiros da colonialidade, enquanto produto de uma sociedade que, ainda, é estruturalmente racista. É o que defende Manuela Carneiro da Cunha, em História dos Índios no Brasil, e mais precisamente no texto de introdução do livro. Além disso, destaca-se aqui trabalhos pioneiros de identificação da presença indígena em arquivos brasileiros, como o caso do Guia de fontes para história indígena e do Indigenismo em arquivos brasileiros, coordenado por John Monteiro, e Os Índios em Arquivos do Rio de Janeiro, de José Ribamar Bessa Freire.

Apesar de precursores, deve-se apontar a necessidade de compartilhar acervos em que dimensões que extrapolem o eixo Rio-São Paulo, destacando fontes em espaços tão importantes como estes. É o caso do Museu do Índio da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde é possível encontrar disponível arte contemporânea indígena. No mesmo, pode-se apreciar diferentes plataformas, salientando a diversidade e alteridade desses povos, como aponta Kássia Valéria Borges, em Uni-versos em tempos de pandemia: a arte indígena contemporânea no Museu do Índio na UFU. Assim, apesar de haver ainda pouco material bibliográfico sobre a arte contemporânea indígena, cumpre-se destacar aqui trabalhos como de Olinda Yawar, na peça áudio-visual O Parto, que esteve disponível na página on-line do Museu, até 2022. Na peça, a artista nos transporta a todos os benefícios que as culturas indígenas ofereceram à sociedade não-indígena, e como, apesar das violências, como a evangelização forçada, os povos originários resistem através de gerações e mais gerações. O museu ainda se destacou, como defende Borges, ao se reinventar durante a pandemia de COVID-19, e desde 2020 vem disponibilizando parte do acervo e produções bibliográficas em sua página virtual.

Devido a isso, também cabe destacar os acervos virtuais indígenas, que proporcionam uma amplitude ainda maior de circulação de trabalhos, considerando a facilidade de acesso e certa democratização do mesmo. É o caso da plataforma Armazém Memória, que fundou o Centro de Referência Virtual Indígena. Dentre muitas fontes, centro foi um dos primeiros a disponibilizar ao público (juntamente com o Museu Nacional dos Povos Indígenas) o Relatório Figueiredo, dado como perdido desde a década de 1960, durante a ditadura civil-militar brasileira. Recuperado pela Comissão Nacional da Verdade, o Relatório é uma fonte importante que ressuscita vozes passadas, silenciadas pela negligência e pelo descaso, como demonstra Amanda Gabriela Oliveira, em O Relatório Figueiredo e suas contradições: a questão indígena em tempos de ditadura (2017).

Outra plataforma importante é a Biblioteca Digital Curt Nimuendaju, que disponibiliza obras em domínio público, nos campos da antropologia, etnologia, arqueologia, história e áreas afins. No entanto, é importante dizer que tais obras podem estar dentro de um espectro de produções sujeitas à revisão. Isso indica a falta da presença protagonista de indígenas nas áreas, demandando que suas vozes sejam ouvidas e não tuteladas, algo que ocorreu intensamente no campo intelectual, em que apenas não-indígenas falavam e escreviam sobre aqueles povos. Sendo assim, destaca-se o alto número de obras disponibilizadas na Biblioteca Curt Nimuendaju, que democratiza o acesso à obras raras e de difícil acesso.

Nesse sentido, também destaca-se aqui as livrarias indígenas com páginas on-line que, além de divulgarem as obras de autores indígenas, são empreendimentos indígenas. Destacam-se aqui a Livraria Maracá, idealizada por Daniel Munduruku e a Livraria Pachamama, criada por Aline Rochedo Pachamama, já mencionada aqui. Espaços como estes promovem e divulgam obras, comprometendo-se com os protagonismos indígenas e disponibilização de literatura que visa reverter séculos de apagamento e invisibilidades múltiplas.

Salienta-se também o acervo do Museu Nacional, que oferece além de exposições, como a plumária dos Karajás, objetos do povo Tikuna, o tambor de fenda do povo Tukano, dentre outras fontes materiais. Além disso, no Museu Nacional são desenvolvidas pesquisas antropológicas, historiográficas e etnológicas desde sua fundação, se tornando um centro de referência e destacando as transformações culturais dos povos originários, assim como suas participações e lideranças nas próprias pesquisas.

Em 2018, infelizmente, o Museu Nacional sofreu um incêndio e muito do seu acervo foi perdido no fogo, salvando-se parte dele pela itinerância das exposições e outras localidades. Ao tempo que muitos defenderam que ninguém tinha saído ferido, José Urutau Guajajara denunciou que a memória de muitos de seus parentes antepassados morreram novamente no fogo. “É como se fosse um novo genocídio”, foram suas palavras.

Cabe aqui salientar ainda que a arte tradicional indígena, conhecida popularmente como artesanato, é um acervo indígena próprio da linguagem oral. É por meio do aprendizado de geração para geração que os conhecimentos milenares são passados e transformados entre os sujeitos, como comenta Glicéria Tupinambá em artigo de Haroldo Heleno:

O manto vem desvendando segredos. A confecção do manto traz saberes guardados pelas mulheres Tupinambá: tecelagem, trançagem, uso de vários utensílios (principalmente a agulha de tucum), preparação do cordão feito de algodão (antigamente era no fuso) com cera de abelha. Embora o manto tenha sido feito por mim, a confecção envolveu todas as pessoas da comunidade, das crianças aos anciões: na busca das penas, na coleta da cera de abelha tiúba e no ensino das técnicas de tecelagem por anciões da comunidade. (HELENO, 2023, s/p)

Além disso, Haroldo Heleno complementa que a repatriação dos objetos indígenas roubados pelos europeus, através dos tempos, desde o período colonial, é de extrema importância. Um dos pontos salientados por Heleno é de que a repatriação de tais objetos, com sua datação, demostra a presença dos povos indígenas em determinados territórios, contestando o próprio infame “Marco Temporal”. Para os povos indígenas, mais que um objeto, os mantos têm poderes de cura e conversam trazendo conhecimentos ancestrais. Vivem mais uma vez, reconectando passado e presente, esperançando as encruzilhadas de um mundo que precisa se reinventar.

 

 

 


Referências

HELENO, Haroldo. Repatriar nossos artefatos e demarcar nosso território. Le Monde diplomatique, 21 set. 2023. Disponível em: https://diplomatique.org.br/repatriar-nossos-artefatos-e-demarcar-nosso-territorio/. Acesso em: 15 maio 2024.

 

 

 

 


Créditos na imagem: Povo Yawalapiti https://www.encontroteca.com.br/grupo/yawalapiti

 

 

 

 



[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “96”][/authorbox]

Related posts

Por que tanto a direita como a esquerda adoram o filme Matrix?

Thiago de Araujo Pinho
3 anos ago

Y que viva Changó!

Livia Vargas González
6 anos ago

Belchior in Dante’s Divina Comedia

Thamara Rodrigues
6 anos ago
Sair da versão mobile