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Afropessimismo: Frank B. Wilderson III

Frank Benjamin Wilderson III tem formação em filosofia pela Dartmouth College e em Belas Artes pela Columbia University, onde estudou com Edward Said e no Projeto de Estudos Culturais de Jean Franco. Além disso, possui mestrado e doutorado pelo Departamento de Retórica, Programa de Estudos cinematográficos da UC Berkeley. Trabalhou como professor nas Universidades Witwatersrand e Vista University, ambas na África do Sul, onde também trabalhou como funcionário eleito do Congresso Nacional Africano no período de transição do país do apartheid. Atualmente, é professor de estudos afro-americanos na Universidade da California, bem como é poeta.

Afropessimismo é sua última obra. Antes, publicou os livros: Incognegro: a Memoir of Exile and Apartheid (Duke University Press, [2008] 2015), Red, White, & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonismos (Duke University Press, 2010).

A propósito, no livro em questão, por meio de narrativas baseadas em suas memórias pessoais e apoiado em constructos teóricos da filosofia, Frank B. Wilderson apresenta aquilo que ele e outros autores (Saidiya Hartaman[1], David Marriot, Jared Sexton) têm teorizado sobre Afropessimismo: teoria que tem como centro de seu debate a definição da identidade negra e da experiência negra no sistema mundo.

Para o autor, o afropessimismo é uma metateoria que se coloca como ferramenta analítica, pois possibilita não apenas observar os fenômenos relacionados com o sujeito negro, como também a própria teoria permite ser pessimista em relação a outras teorias (WILDERSON III, 2020, p. 24). Nas palavras do autor: “afropessimismo oferece uma lente analítica que trabalha como corretiva para lógica presumida humanista” (WILDERSON III, 2020, p.259).

Deste modo, ao se deparar com o afropessimismo como ferramenta ético-analítica, o sujeito negro é enquadrado em um novo posicionamento, uma vez que o afropessimismo desnuda que o negro está em um regime específico de violência, ou seja, segundo o autor, o negro sofre um tipo tão específico de violência que não teria como haver relações entre as violências de gênero, classe e o poder colonial.

Em uma tentativa de evidenciar a especificidade do racismo, o autor ressalta que, ao contrário da violência contra classe operária, que assegura a ordem econômica, ou da violência contra mulheres não negras, que assegura a ordem patriarcal, ou da violência contra nativos, que assegura a ordem colonial, jouissance (que constitui a violência contra negros) assegura a ordem da vida em si: o sadismo a serviço do prolongamento da vida.

Nessa direção, as explicações das outras teorias não abarcam este nível de profundidade que é o afropessimismo. As outras teorias não se desdobram para responder de forma mais eficaz a seguinte questão: o que contingência a violência antinegro? Logo, para o teórico, não há possibilidade de analogias entre a violência contra o negro com qualquer outra modalidade de violência.

Importa destacar que, para o autor, o essencial do afropessimismo não é um julgamento moral das escolhas que as pessoas fizeram, mas uma análise ética do dilema em comum que elas tinham – as questões que assombravam o escravizado desde o momento em que ele acordava: o que as pessoas brancas farão com minha carne hoje? Quão profundo elas vão cortar? ( WILDERSON III, 2020, p.339).

Para responder  perguntas como essa, Frank Wilderson III trama uma narrativa com imagens baseadas na sua trajetória pessoal e na produção fílmica[2], entrelaçando eventos históricos que seguem dos anos 60 até atualidade. O autor utiliza da sua própria teoria afropessimista e faz uma transposição de seu presente- presente para diversos presentes do passado. Assim, a ideia de confissão[3] dá sentido ao seu testemunho e à toda narrativa do livro, o que faz lembrar escritos de Paul Ricoeur (1978,p.402), mais especificamente, que uma linha de discurso na ordem dos relatos da “salvação e da liberdade são confessados durante a saga”.

Wilderson  imprime no ato da confissão do jovem Frank um atalho para o futuro, porém são permitidas ao adolescente negro estadunidense apenas imagens de um presente mais próximo carregado de penitência. Assim, o tempo de redenção do trauma do racismo fica preso no futuro, no qual o velho Frank se prontificou a mediar por meio do afropessimismo. De todo modo, as aporias do tempo de vida do autor se manifestam nas próprias aporias do fenômeno da escravidão negra. O  ato de testemunho configurado na disposição de confissão são balizas do tempo[4], no qual o tempo da narrativa histórica da escravidão se orienta não a partir de um tempo do acontecimento, mas da dinâmica relacional da violência antinegritude. É desta forma que o autor estrutura seu texto: na dimensão relacionada com os regimes de violência antinegritude e a impossibilidade de se pensar em reconhecimento, reconciliação e liberdade.

É sobre este signo temporal da violência que o afropessimismo se materializa em uma forma autônoma, uma história sem possibilidades de vitória, e a partir deste lugar que o autor responde suas questões pessoais, o afropessimismo (como metateoria) nos auxilia a interpretar os processos históricos nos quais a identidade negra (a negritude) é fundada, porém, esta mesma teoria não se furta em apresentar que esta identidade não possui capacidades de ser positivada, pois a violência sem contingência que caracteriza a violência da escravidão maculou a negritude, dito em outras palavras: a negritude também é um suporte de violência contra os negros, ela está intimamente ligada ao sadismo, que alivia o não pertencimento do Outros.

Nesta perspectiva, não há saídas para o sujeito negro, seja ele homem, mulher, trans, criança, idoso, não importa, este sujeito não é sujeito, é apenas um ser senciente, furtado de seu poder de consentimento. Sem ser um sujeito da história, ele não possui parâmetros de relação, porque ele (os negros e negras) não possui filiação ou afiliação (SAID,1983,apud WILDERSON, 2020, p.179). Ele é o não humano, o não sujeito da história, o não cidadão: é a morte social ambulante, sendo que sua figura é antagônica com a própria aparência humana.

Se, em termos de metateoria, o afropessimismo se apresenta como chave de interpretação de processos históricos, em termos meta-aporias, o afropessimismo se assemelha a uma simbologia, um signo que tem por objetivo expor a raiva que a maior parte dos negros tem liberdade apenas de murmurar (Wilderson, 20020, p.197). Trata-se de  uma intervenção na tradição do racismo, de um possível lugar para que seja possível filiação da raiva com o corpo negro. Desta maneira, e inspirado em escritos de Paul Ricoeur ( 1978, p.394), é possível considerar que o afropessimismo não é apenas uma ferramenta de análise, mas também se propõe a ser uma estrutura de reflexão, um esboço de um itinerário para consciência.

A obra aponta também para a morte social[5] do sujeito escravizado.  Essa compreensão surge de forma paradigmática para a formulação do afropessimismo, pois é a partir daí que o autor formula uma noção de tempo extraído, de tempo específico que recaí sobre os negros em diáspora, um tempo no qual o passado não passa (DELACROIX,2018 ; ROUSSO,20013), é como se o “tempo da escravidão era o tempo de nossas vidas” (WILDERSON,2020,p.234).

Assim, para o autor, existe um compartilhamento de tempo e espaço da violência da plantation e do escritório, no qual não foi cindido o regime de violência, a gramática da violência leciona em ambos os tempos e espaços simultaneamente, é a partir de um tempo catastrófico que uma crise se instaura no corpo negro. É desta temporalidade regida por kairós[6] que o autor se tornou marido, pai, militante, intelectual, escritor, e inúmeras outras atividades profissionais e familiares. Dessa maneira, o uso do recurso do testemunho se apresenta não apenas como um amontoado de memórias, mas um catalizador teórico que tematiza e esquematiza o trauma do racismo.

Nesta estrutura de narratividade, a violência da escravidão se desenvolve como um fenômeno fora do tempo histórico[7]. Nessa direção, somando a posição de confissão do autor, o livro acaba por colocar autor e leitor em uma sintonia, em um processo de  identificação com a violência racial antinegritude, ou seja, no decorrer do livro, a raiva e outras dores que atravessam o autor vão encontrando sentido no afropessimismo. As experiências traumáticas são do autor, mas ele as vê não somente em sua vida, mas em outros negros e negras jovens e velhos que morreram, que estão vivos e os que estão para nascer. Logo, trata-se de uma repetição diacrônica e simultânea de um trauma, em tempos e espaços diversos, como em uma minissérie com episódios e capítulos inéditos, porém, em seus conteúdos há reprises antigas: esta é mesma dinâmica nascida na escravidão, um arco narrativo sem lógica, que aprisiona física e simbolicamente a população negra mundial. O autor comenta:

“…o afropessimismo não é uma igreja aonde você vai para rezar ou um partido em que você vota para em que você vota para estar no poder ou para ficar fora dele. O afropessimismo é o povo nefro no seu auge. ‘Bravos como o mundo’ é o povo negro no seu auge. O afropessimismo nos dá a liberdade de dizer em voz alta o que, de outro modo, iriamos sussurrar ou negar: que não há negros no mundo, mas que, pelo mesmo padrão, não há mundo sem negros. A violência perpetrada contra nós é uma forma de discriminação; é uma violência necessária; um tônico para todos que não são negros; um conjunto de rituais sádicos e de cativeiro que só poderia acontecer com pessoas não negras caso elas violassem esta ou aquela ‘lei’ (WILDERSON III, 2020, p.52).

 

Para entendermos esse sujeito histórico “fora” da história, teríamos que compreendê-lo dentro de um enredo no qual a temporalidade se dá no período da abjeção do indivíduo,  o espaço seria o da plantation. É a partir deste recorte espacial e temporal que afropessimismo se localiza para criticar as outras teorias, inquerindo a linguagem produzida conscientemente e inconscientemente, abrindo as brechas para escancarar as defasagens teóricas, as insuficiências metodológicas, as superficialidades narrativas e os erros epistemológicos que permeiam as sentenças gramaticais sobre o negro, ou seja, por mais potente que seja a filosofia, sempre haverá uma linguagem rígida contra o escravo (o negro) e a favor do humano (o senhor) − é assim que o afropessimismo deslava o humanismo das teorias progressistas..

Para aprofundar esta narrativa, o autor dialoga diretamente com os  pensamentos do intelectual martinicano Frantz Fanon (1925-1961), que  em sua trajetória de vida se vinculou a processos de libertação colonial e combate à violência racial[8]. O afropessimismo não é diferente, assumindo uma postura radical, o livro não celebra o corpo negro, mas o assumi e desvela como a imagem de um mostro no nível genital (WILDERSON,187 apud FANON) se apresenta no tempo e no espaço tanto na dimensão histórica de Fanon como de Frank; assim sendo, abre-se o presente e simboliza-se o imaginário sobre o corpo negro, apresentando o segredo da violência, a saber: a antinegritude, que se formula através da tese central que, no ocidente,  o negro não é humano, apenas  faz parte da narrativa humana.

Isso posto, o afropessimismo determina que existe generalização da brutalidade contra negros, que se tornou algo constitutivo de uma comunidade na qual o objeto do sadismo se tornou o sujeito do sadismo (WIlDERSON III,p.117). Isto porque o argumento central que define o afropessimismo é pensar que a abolição da escravidão apenas levou a uma reorganização da dominação e o ex-escravo tornou-se o ‘sujeito’ racializado negro. Neste sentido, o pessimismo se sustenta, pois os africanos, ao serem escravizados, foram objetificados de tal forma que feitos  objetos (uma mercadoria) para serem usados e trocados  como moeda (MBEMBE,2018, p.21). Portanto, o afropessimismo não é sobre violência da escravidão e sobre o agora, ou acerca da morte sem propósito, a violência não como punição por uma transgressão, mas a violência ligada ao puro e simples prazer, ou seja, a violência por capricho, um refúgio para os humanos se sentirem vivos.

O livro invade o leitor com paisagens imagéticas provenientes de filmes, da literatura e da própria experiência de uma vida no tempo: são imagem nas quais vemos todos os dias a degradação ontológica de um corpo (MBEMBE,2018; WILDERSON,2020), que se questiona, essas vidas importam? A resposta de Wilderson não deixa dúvidas, sim elas importam, mas não pelos motivos da valorização da vida negra, mas para a manutenção da vida branca.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BOIS,W.E.B.Du. O cometa; O fim da supremacia branca/ W.E.B.Du Bois, Saidiya Hartman; tradução André Capilé, Cecilia Floresta. -São Paulo: Fósforo,2021.

DELACROIX, Christian. A História do tempo presente, uma história (realmente) como as       outras? Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39-79, jan./mar. 2018.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005

______. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014.

PATTERSON, Orlando. Slavery and Social Death: Comparativi study. Cambridge, Mass; Harvad  Univerty Press, 1982

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações – ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978

WILDERSON, Frank B. (1956) Afropessimismo: Frank B. Wilderson III: Editora    Todavia, 2021

Site    26/11/2021Incognegro | Frank B. Wilderson III (frankbwildersoniii.com)

 

 

 


NOTAS

[1] Bois,W.E.B.Du, O cometa; O fim da supremacia branca/ W.E.B.Du Bois, Saidiya Hartman; tradução Andre Capilé, Cecilia Floresta. -São Paulo: Fósforo,2021.

[2] Entre os filmes analisados em sua obra se destacam os Filmes 12 anos de escravidão direção Steven Rodney “Steve” McQueen (2014). e Parques das Punições, dirigido por Peter Watkins (1971).

[3] O mundo temporal/narrativo exibido no segundo capítulo do livro Wilderson III com o título sugando ossos o de vertebras inicia – se sobre um contexto de imagem e linguagens circunscritas a um itinerário relógio mais especificamente católico. A partir deste lugar mítico-cristão o autor se apresenta ao seu leitor intuindo ao uma posição de leitura sobre a ótica da exegese.

[4] Ler em DELACROIX, Christian. A História do tempo presente, uma história (realmente) como as outras? Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39-79, jan./mar. 2018.

[5] Ler em Orlando Patterson, Slavery and Social Death: Comparativi study. Cambridge,Mass ;Harvad Univerty Press, 1982. Pp. Xiii,511.(us)

[6] Ler em Walderez Simões Costa Ramalho Outros tempos, outras histórias (manuscritos): Kairós, manifesto, crise. Tese de (Doutorado). Universidade Federal de Ouro Preto.

[7] A violência da escravidão não é precipitada por qualquer transgressão que possa ser transformada em um evento (que é motivo pelo argumenta que essa violência é gratuita, não é contingente); a ofensa incorporada pelo escravizado não é o resultado de um evento; sua desonra é geral, sendo mais bem entendida como abjeção como degradação ( esta última implica uma transmissão); e como um escravizado é naturalmente alienado, ela nunca é uma entidade na genealogia metanarrativa.

[8]Teorizando sobre este temas, Fanon produziu uma sociologia da revolução.  Acadêmicos, ativistas, revolucionários estabeleceram programas de combate à opressão com base em seu aportes teóricos.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. CAPA Estúdio Daó

 

 

 

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