Ela espera a analista na antessala de apart hotel de luxo e avista o café da manhã naquela sala de vidro, mamão e melões cortados, granola, yogurte e sachês de manteiga com e sem sal. Os hóspedes e os moradores do lugar passeiam olhando a comida matinal, com pratos brancos e ocasionalmente xícaras da mesma cor. Os mais apressados se ocupam completamente disso em uma só viajem. Mas há aqueles que vão e vem, muitas vezes, pessoas onde o tempo não toca.
O lugar é em um bairro da cidade, um bairro que lhe é longe, sempre pertenceu as franjas urbanas. É nesse intervalo que se sente mais segura, nas bordas, perto de gentes como ela, com o mesmo passado de sal.
Dá certa preguiça de falar o nome ao recepcionista, novamente falar, porque é sempre ter que ouvir um: “oi?” Nome assim, diferente dos outros, nome desigual. Nenhum crime haverá de cometer e nem pode. Pelo nome já se saberia que é. Nome que não se pode “jogar no google”. Descobre o endereço o CPF e o lattes. Não pode ser outra, nem outras. Está presa nesse nome, seguido de outros quatro, nome original e todos os outros de homenagens a avó, ao pai, ao avô e ao pai novamente. Avôhai.
O recepcionista avisa, pode ir. Recebe um cartão para transpor as portas de vidro e acessar o elevador. Andar décimo quarto. A cada passo que dá um homem ao lado, fala algo que ela não entende. “Oi?…Não lhe ouvi, desculpe”. Entram. Já dentro, aperta o botão. Sem estar pensando que no tempo que tem ele poderia, finalmente, repetir a frase sabendo que teria que ser rápido, o tempo de subir alguns andares, tantos que ela não poderia supor, não sabe, então, é apenas um comentário sem continuidade.
Mas o estranho fala e dessa vez fala de um jeito fazendo-a perceber que ele não é “normal”. Presa quatorze andares em um elevador com alguém que não se sabe o diagnóstico, e que nenhum botão. De repente a porta para no andar cinco. Ele não desce.
O corredor escuro que se coloca em frente, na visão, com portas de um lado e outro, um labirinto. Ela pensa: “se ele quebrar o vidro do elevador, morremos. Se for atrás de mim, tenho que correr até às escadas. Aqui tem câmera?”
Uma angústia grotesca toma conta, ela nem sabe direito mais onde está. Só quer salvar a própria vida, na verdade está ali pra isso, falar de si, salvar a própria vida.As propagandas na pequena tevê do elevador, continuam. Procura uma câmera. Dá vontade de fazer xixi. Pensa em fingir que é de louca e urinar alí mesmo, como se dissesse: “você é louco, eu sou mais!”
Décimo andar e ele ainda fala coisa sem coisa. Fala como se não tivesse sossego, ela só ouve um murmúrio, ele não precisa de respostas, não precisa de nada. Ela pensa na irmã, que fala assim, sem precisar de interlocutor. Na irmã cuja deficiência causa espanto, na irmã que fala e fala mais, que fala de assustar. Mas nunca teve medo da irmã.
Quem diabos projetou esse elevador com vidro transparente? Quem diabos teve essa ideia idiota que colocar pessoas numa cápsula subindo 40, 50 metros em suspensão, olhando o chão sair do alcance dos pés? Quem gosta dessa escrota transparência?
Décimo quarto, qual é mesmo o número do quarto. Está no cartão. Será que é sair e falar tchau, fingir normalidade? Terá a voz trêmula ou o medo revelará tudo? Deveria estar sentindo medo? Sente vergonha desse medo ser desproporcional, vergonha de ter medo revestido de preconceito. Vergonha e medo.
Para qual dos lados é a saída de emergência? O que preferir? Estupro ou cair do décimo quarto andar? O elevador para.
Ela saí, fingindo confiança. Ele diz: tchau moça. É a primeira vez que se falam, ela olha nos olhos e diz: tchau. Ele não faz contato visual. Ela, novamente, se lembra da irmã e sente amor.
Adentro o corredor escuro ela caminha, as luzes automáticas acendem e apagam. Quarto 1406. Toca a campainha e a analista abre a porta.
Créditos na imagem: Umberto Boccioni – Visioni simultanee (1912).
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