1.
O anônimo com quem conversei hoje, e de quem fiz questão de não saber o nome justamente para poder me referir a ele como anônimo, assim como há o anônimo a Herênio (ad Herennium), chegou em São Paulo em 1977. Chegou casado, com dezessete anos. A embuchada, com dezesseis, veio depois. Assim ele me disse.
Tinha parentes, aqui, tão cearenses como ele. E ajudaram? Ele sorrio e me respondeu que ajudar mesmo não ajudaram.
Trabalhara na roça em Juazeiro do Norte. Lá, acostumou a adoçar o café com rapadura. E, levava uma sacola com farinha e rapadura e uma cuia com água. Deixava esses suprimentos numa sombra e trabalhava até a hora do almoço.
Depois de comer a farinha e a rapadura, de beber a água, voltava a trabalhar o resto do dia.
Em São Paulo, sempre trabalhou em fábrica. Metalurgia. É hoje um senhor de poucos cabelos brancos. É bisavô. A embuchada lhe deu família. Não perguntei o nome dela também para não ser mais invasivo do que já me sentia.
Entre um sacolejo do ônibus e outro, uma curva e outra, uma freada brusca e outra, o anônimo cearense me disse que o Brasil só piorou depois que tiraram a Dilma da presidência. Segundo ele, Dilma não roubou, mas os que agora estão no poder roubam.
Teme Geraldo Alckmin, mas o Dória acha fraco. Não é capaz de ser eleito não. Ouvi atento seus prognósticos eleitorais para o ano, mas confesso que o Ceará me interessava mais. Então, voltei a conversa para lá, subindo como quem sobe no mapa.
Sabe o que acho incrivelmente delicioso em Fortaleza? Ele me disse nem imaginar. Contei a ele que estive lá uma vez. E fiquei maravilhado com o fato de todos os dias, pela manhã bem cedo, ter chovido. Que era uma chuva miúda e fina, e passageira, para em seguida abrir o maior sol.
Disse ao anônimo com quem conversei hoje que a luz de Fortaleza foi uma das mais belas que já vi na vida.
Ele ficou satisfeito. Chegou seu ponto de descida. Então, me estendeu a mão, cumprimentando-me. Por um momento, me distraí do trânsito, do abafamento do dia e estive em Fortaleza. Por um momento, eu fiquei em suspenso naquela prosa e no café adoçado com rapadura. E eu nem sou de adoçar cafés que bebo. Mas, se aquela troca de palavras não era afeto, não sei o que era. Aquela prosa do anônimo era consideração. E tudo não passa de consideração.
2.
Adoro anônimos. O duro é quando viram pseudos, como o Ad Herênio; anônimo: pseudo-Cícero; o pseudo-Longino, que era anônimo.
Adoro anônimos, porque são coletivos. São sabedorias coletivas, dos costumes, e não positividades históricas avassaladoras da romântica tradição…
Ih, acho que comecei um poema! Adoro Oswald, Oswaldo e suas peripécias… Sua herança vendida Jardim América. Suas incontáveis mulheres, sua prole, seus biscoitos, sua garçonnière, sua alma cozinheira…
Adoro a prova dos nove, porque alegria é mais palpável e palatável que a felicidade, conceito antigo.
A felicidade é coisa ética; tem a ver com concórdia, bem-comum, harmonia entre as partes.
A alegria é coisa estética; coisa que contamina, contagia…
Ih, acho que continuei o poema… Tome-o como uma intervenção; apenas…
Tome anônimos, pseudos, e Oswalds; não tome balas, nem coma doces, nem tiros do Rio de Janeiro; tome da alegria um porre.
3.
Quintino Cunha era advogado famoso. Sujeito bondoso, generoso, mas ocupadíssimo. Certa vez, foi procurado pela mãe de um outro não tão ocupado e nada famoso homem do povo. O sujeito anônimo era sapateiro, estava preso por ter matado um homem que o chamou de corno durante anos.
A mãe do ofendido sapateiro conseguiu que Quintino Cunha advogasse em causa do filho.
Marcado o dia do julgamento, juiz, jurados, promotoria presentes, discurso judiciário invocado, só faltava o advogado de defesa.
Ele chega atrasado, mas a tempo de interferir na deliberação.
O juiz permite que Quintino Cunha profira suas palavras:
– Sr. Juiz, Sr. Promotor, Srs. Jurados, Srs. e Sras. das galerias…
Foi falando a essas personagens cheio de epítetos elogiadores e meritíssimo para cá, meritíssimo para lá, digníssimo isso, digníssimo aquilo.
O juiz interrompe muito sem paciência, quase destemperado:
– Quintino Cunha, o Sr. advogado não quer logo fazer a defesa? Caso contrário serei obrigado a deliberar o réu-confesso culpado.
Ao ver a impaciência de todos, Quintino Cunha não teve dúvidas, lascou essa:
– Os Srs. vejam que estou, há pouco tempo, os tratando com muita educação e respeito, imaginem se os chamasse, durante anos, de cornos?
Para encurtar a história: o sapateiro foi absolvido.
Créditos na imagem: Reprodução: DeposithPhotos. Disponível em: https://br.depositphotos.com/33882939/stock-illustration-anonymous-mugshots-with-scribble-effect.html
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Eduardo Sinkevisque
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