Temas como desigualdade e pobreza voltaram a ser assuntos recorrentes nos jornais do país, muito em consequência do agravamento da crise econômica pela pandemia do novo coronavírus. Os efeitos são sentidos, por sua vez, nos campos mais primordiais da vida, como o da alimentação. Em pesquisa realizada em parceria entre a Universidade Livre de Berlim, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Brasília (UNB), publicada recentemente, mostra que pelo menos 59,4% dos brasileiros sofrem com algum nível de insegurança alimentar, o que equivale a pelo menos 125 milhões de pessoas (GALINDO et al., 2021). Outro âmbito bastante atingido é o do trabalho, já que o país registra pelo menos 14,4 milhões de desempregados e 5,9 milhões de desalentados, isto é, pessoas que desistiram de procurar emprego, seja porque buscaram por muito tempo sem sucesso, seja por não verem vagas que podem ocupar sendo abertas. Além disso, o número de mão de obra subutilizada é aproximadamente de 32,6 milhões, número que leva em consideração os desempregados, os desalentados supracitados e também outros 6,9 milhões de subocupados e 5,4 milhões que representam força de trabalho potencial (MOTA, 2021).
Historicamente, porém, as pandemias podem também ter efeito nivelador. É o que mostra Walter Scheidel, no livro Violência e a história da desigualdade: da idade da pedra ao século XXI, publicado em português no ano passado pela Zahar. O historiador percorre diversas pandemias, a exemplo da Peste Bubônica, as pandemias no Novo Mundo, a Peste de Justiniano e a Peste Antonina, demonstrando que nesses casos é possível notar certa diminuição das desigualdades, efeito, porém, do alto número de mortes, correspondendo assim, a uma lógica malthusiana:
De que maneira as epidemias reduzem a desigualdade? Agindo como aquilo que o reverendo Thomas Malthus, em seu Ensaio sobre o princípio da população, de 1798, chamou de “controles positivos”. Em linhas gerais, o malthusianismo radica-se na premissa de que, a longo prazo, a população tende a crescer mais depressa do que os recursos, o que, por sua vez, desencadeia controles sobre novos crescimentos populacionais: “controles preventivos”, que reduzem a fertilidade mediante a “contenção moral – ou seja, adiar o casamento e a reprodução –, e “controles positivos”, que elevam a mortalidade (SCHEIDEL, 2020).
Compõem, por sua vez, esses “controles positivos” malthusianos, o trabalho braçal pesado, a pobreza extrema, as ocupações insalubres, a desnutrição das crianças, além de guerras, pestilências, pragas, fomes e, claro, doenças e epidemias.
Contudo, mesmo com o alto número de mortes no Brasil, o que pode ser notado é a manutenção e, inclusive, o aumento nas desigualdades. Um levantamento feito pela ONU em 2019 apontava que o Brasil era o segundo país com maior concentração de renda em uma lista de 180, com índice de 28,3% da renda pertencente a 1% da população (SASSE, 2021). Desigualdade que aparece com nome e sobrenome na última lista de bilionários da Forbes que, apesar da pandemia, incluiu mais 20 brasileiros elevando o número no ranking para 65 que possuem uma fortuna, se somada, de 219 bilhões de dólares (NARCIZO, 2021). Porém, não é surpreendente, tendo em vista que, historicamente, o 0,01% sempre esteve em situação confortável no Brasil, sendo pouco impactado na relação de distribuição, como mostrado por Pedro Herculano G. F. Souza (2018).
Um dos principais mecanismos para evitar esse agravamento das desigualdades durante a pandemia é o auxílio emergencial. Porém, com os novos valores estipulados, ele também perdeu a sua efetividade, como mostram as pesquisadoras Luiza Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Ana Luíza Matos de Oliveira (2021) do Centro de pesquisa em macroeconomia das desigualdades da Universidade de São Paulo (Made USP). Segundo as autoras, o auxílio emergencial “mitigou a queda da renda, foi capaz de trazer a taxa de pobreza[1] para níveis historicamente baixos no Brasil e que os hiatos de pobreza, considerando gênero e raça, diminuíram em 2020”. Antes da pandemia, segundo a pesquisa, o Brasil tinha aproximadamente 51,9 milhões de pessoas em situação de pobreza, em dados observados em julho de 2020, quando o auxílio emergencial pagou valores de 600 reais, chegando a 1.200 reais no caso de mães solteiras chefes de família, fez esse número ser reduzido para 43 milhões de pessoas nessa situação. Já a simulação com os valores do auxílio em 2021 mostra que o número de pessoas em situação de pobreza pode chegar a 61,1 milhões. A pesquisa também demonstra que a população negra é a mais vulnerável à pobreza, sendo as mulheres negras as mais atingidas.
Impossibilitados de ficar em casa e obrigados a se expor para garantir sua renda, algumas profissões registram altos índices de aumento no número de mortos pela covid-19. Levantamento feito pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data para o jornal El País mostra que em comparação de mortes entre o período pré-pandemia (janeiro e fevereiro de 2020) e o início de 2021, o número teve salto de 62% para motoristas de ônibus, 67% para operadores de caixa e 68% entre os frentistas de posto de gasolina (SOARES, 2021).
Ainda que seja óbvio que a pandemia escancara as desigualdades no Brasil, não deixa de ser preocupante e mesmo chocante todos os dados vêm sendo apresentados, ainda mais levando-se em consideração a postura adotada pelo Governo Federal de incentivo na continuidade das atividades para não “parar a economia” e a resistência em pagar um auxílio emergencial que seja de fato compatível com as necessidades dos brasileiros em situação mais vulnerável. O pagamento de um auxílio emergencial com valores adequados até o final da pandemia é uma das recomendações feitas pelas pesquisadoras Luiza Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Ana Luíza Matos de Oliveira (2021), que também recomendam a implementação de auxílios emergenciais estaduais e municipais, que atuariam de maneira complementar ao federal, além de maior atenção a situação das mães solo e também das crianças e adolescentes, pois essas mães estão obrigadas a cuidar dos filhos, de todo trabalho doméstico e ainda conseguir renda para a família. Somente com políticas assim poderemos mitigar os impactos brutais da pandemia na população mais pobre e também construir caminhos para uma recuperação econômica.
REFERÊNCIAS
GALINDO, Eryka et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil. Disponível em: https://www.lai.fu-berlin.de/en/forschung/food-for-justice/publications/Publikationsliste_Working-Paper-Series/Working-Paper-4/index.html. Acesso em: 18 maio 2021.
MOTA, Camila Veras. O exército de 5,9 milhões de ‘desempregados’ de fora do índice oficial. BBC Brasil. 03 de maio de 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56953732. Acesso em: 18 maio de 2021.
NARCIZO, Bruna. 20 brasileiros entram no ranking de bilionários da Forbes. Folha de São Paulo, 6 de abril de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/20-brasileiros-entram-no-ranking-de-bilionarios-da-forbes.shtml. Acesso em: 18 maio de 2021.
NASSIF-PIRES, Luiza; CARDOSO, Luísa; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do auxílio emergencial na pobreza e extrema pobreza. Nota de política econômica, nº 10. MADE/USP, 2021. Disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/. Acesso em: 18 maio 2021.
SASSE, Cintia. Recordista em desigualdade, país estuda alternativas para ajudar os mais pobres. Agência Senado, 12 de março de 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/03/recordista-em-desigualdade-pais-estuda-alternativas-para-ajudar-os-mais-pobres. Acesso em: 18 maio 2021.
SCHEIDEL, Walter. Violência e a história da desigualdade: da idade da pedra ao século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. E-book, Kindle.
SOARES, Marcelo. Mortes entre caixas, frentistas e motoristas de ônibus aumentaram 60% no Brasil no auge da pandemia. El País Brasil, 05 de abril de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-05/caixas-frentistas-e-motoristas-de-onibus-registram-60-a-mais-de-mortes-no-brasil-em-meio-ao-auge-da-pandemia.html. Acesso em: 18 maio 2021.
SOUZA, Pedro H. G. F. Uma história de desigualdade. A concentração de renda entre os ricos no Brasil 1926-2013. São Paulo: Hucitec, 2018.
NOTAS
[1] São consideradas pobres pelos critérios adotados pelo Banco Mundial pessoas que vivem com renda per capita de até US$ 5,50 por dia, ou R$ 469 mensais. Já os extremamente pobres são os que vivem com até US$ 1,90 por dia, ou R$ 162 por mês.
Créditos na imagem: Divulgação. Ilustração de Matt Kenyon. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/jan/20/trickle-down-economics-broken-promise-richest-85
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