“A luz entrou torta por nós adentro. Mas olha, eu gosto de você”.
Não lembro se era a primeira ou segunda semana do mês de maio. Devia ser a primeira, porque todos os passantes eram resolutos, desapressados — atmosfera que só o feriado do Dia do Trabalho é capaz de criar. Lembro de andar com a carta da Temperança no bolso, mas não sei se vem ao caso.

Andei por entre as ruas do centro até aquele café na avenida mais ingrata da Oscar Freire. Bato os pés na soleira três vezes — uma mania sua dos nossos encontros terrivelmente chuvosos. Eu só fazia chover naquela época. Muito tempo antes do moinho de vento dar a quarta volta, tomando a forma de um dragão. Ainda carrego a medalha de São Bento. Uma antiga promessa de fé que fiz aos peregrinos do deserto.

Te escrevi uma carta enquanto esperava o vapor diminuir. Ele desce leve, desenhando espirais por sobre a capa da edição do T. S. Eliot. Ainda gosto do cheiro da sua presença — a silhueta fantasma, que permanece conosco muito depois de já ter apodrecido o cadáver do indigente.

Penso se me mudo de novo. Eu e meu passado dormimos em tempos alternados, um pé na doideira de ir e outro na loucura de ficar. Desconsidero, por ora, essa fuga, pensando que não poderia levar todos os volumes de obras completas da monja jerônima — e sei que viveria muito pouco longe dela.

Sento no vagão da Linha Lilás, desses que eu só ando de olhos fechados. Detesto a profundidade soterrada por quatro andares, o vagão sem divisória, estilo minhocão. Rio um pouco, pensando que me sinto como Jonas na barriga da baleia. Tenho pensamentos de um homem digerido. Lembrei daquele dia tarde da noite no bar do tatu, que alguém disse que eu e o Zé sempre puxamos um poema de algum canto dos bolsos da frente, e pensei que somos seres taxonomicamente similares. Não acho que sou muito gente, e é assim que me imagino existindo no mundo, num corpo de besta com os olhos no peito, o antípoda dos trópicos.

Pergunto à Maria se ela ainda gosta de mim, mas ela andava desatenta por entre as ruas de paralelepípedo, eu segurando meu guarda-chuva amarelo e ela dizendo que todo mundo era no fim das contas bissexual. Penso se ela me ligaria no trabalho, só uma vez, mas mantenho a ficha no bolso.  Lembro que contei a ela que me identificava com a heroína trágica da Clarisse e ela disse “Que decadência”.

Fui à cartomante essa semana. Ela leu que a moça com jeito de menina que está sempre indo embora, gostava de mim, mas ficaria entediada. Nisso somos terrivelmente parecidas. Eu acreditei, pois ela disse, e desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Aproveitei pra perguntar do papa, mas a fumaça branca já tinha subido, achei melhor deixar quieto, vendo ela puxar do monte a carta da morte, e torcendo para que não fosse a minha.

Macabéa sorri zombeteira por entre o pátio vazio, por precaução procuro evitar as vias principais.

Quatro estações, e um cara rimou no metrô seu nome com a expressão “sai fora”. Achei poético. Três estações, e você me contou de novo aquela história do cara que roubou seu rímel e depois voltou para roubar a sombra também. Cochilo no seu ombro, no último fiapo de consciência penso “Eu sou”. Duas estações com um cara tocando, no violino, Calcinha Preta. Você desce na Praça da Árvore.

Sigo por mais alguns minutos antes de ver sua mensagem: você esqueceu o rímel (o que substituiu o roubado) na minha bolsa. Pulei a catraca da São Judas pra te devolver, e o guardinha viu. Não dá pra voltar. Você brinca dizendo “Vamos de Mercedes”. Andamos de mãos dadas, você cantarolando: “Só preciso de dinheiro pra comprar um mé.”

Perdi o ônibus.

 

 

 


Créditos na imagem de capa: Reprodução / A Hora da Estrela 1985