As raposas têm tocas
e as aves do céu, ninhos,
mas o filho do homem
não tem onde reclinar a cabeça.
Mateus 8:20
Fê
Ainda é impossível pensar no que aconteceu sem me revoltar, sem sentir que a vida é uma grande tocaia, é inconformidade, é paralisia. A vida tenta camuflar o tempo e a morte, mas é constitutivo do absurdo e do vazio expor nossa finitude. Quando Clarice Lispector escreveu “As dores da sobrevivência”, foi justamente para dar conta desse desespero que é ver um grande amigo partir. Minha estratégia de sobrevivência é essa: penso nas nossas tatuagens, na cor dos nossos cabelos, na nossa coragem de continuar. Penso nos nossos brindes, nos e-mails-cartas que trocamos, nos planos que fizemos. Deixo todos os livros que você me deu sempre por perto. Nossos retratos estão na sala, no escritório, marcam as páginas dos livros que estou lendo. Às vezes… escuto seus áudios e deixo as lembranças transbordarem na memória e nas lágrimas.
Agora mesmo lembro-me de nós dois no carro, de mãos dadas, Renata na frente. Eu disse que faria um grupo no WhatsApp, “Meu dente tem serrinha”, já que a terrível tendência da vez era – ainda é – encapar os dentes. Você deu gargalhadas, segurou minha mão com mais força – eu adorava te fazer sorrir – e disse que Terrível Tendência era um ótimo nome para um quadro de TV. “Vamos fazer!” “Vamos!”. Era sempre assim. Lembro-me de outro dia, nós dois esperando o carro na esquina do hotel em que você estava. Quando entramos, pegamos no rádio o final de Woman e nem eu e nem você acreditamos! Na sequência, rolou Wonderwall. Chegamos “ao nosso destino”, mas só descemos do carro depois que a canção terminou.
Não me sai da cabeça o quanto fomos e somospropositalmente incompreendidos, acuados nesse lugar desconfortável de anti-heróis, de outsiders. Que saída tínhamos? Jogar no time dos medíocres? Aderir à cafonice? Respondo com os versos de Eliot que você gostava tanto de recitar:
Em um minuto apenas há tempo
para decisões e revisões que um minuto revoga.
Com o tempo dança o infinito, dançam os cabelos, os amantes ainda dançam um tango violento… Mas eu sigo em descompasso na dança da solidão. Sei que fui protegido pelos livros, pela literatura, pela poesia. Mas boa parte de mim segue exposta e atingida por um mundo todo feito para diminuir e odiar As pessoas dos livros. Essa parte, esse coração, sempre contou com você e teve seu carinho e proteção. Que saudade, Fernanda.
Quem sobrevive a um amigo, precisa se perdoar. É o que Lispector nos ensina:
Perdoe eu não ter procurado você para uma conversa entre amigos. Mas uma conversa mesmo: dessas em que as almas são expostas. Porque você tinha lágrimas também. Atrás do riso. Perdoe eu ter sobrevivido.
Felizmente, eu não esperei você “ir embora pra perceber” que eu te adorava. E nossas conversas sempre foram conversas-de-alma, rindo e chorando, sem constrangimentos. Eu conheci seus risos e conheci suas lágrimas.
Para sobreviver mais um dia e para me perdoar relembro agora algumas coisas que você me disse tão generosamente como só uma amiga poderia dizer…
…Eu mudo de assunto muito rápido, amigo… então… eu não sei… Mas quando eu escrevo é quase como se fosse um teste para saber se o leitor está me acompanhando. Eu paro, volto, aí quando o leitor já se acostumou comigo… eu volto para algo que foi dito lá no começo do livro. É um raciocínio labiríntico. A minha literatura não é escorreita. Não é linear. E eu nem tenho folego para que seja. Eu estou sempre indo e voltando, indo e voltando, indo e voltando. Dentro da minha linguagem, eu gosto de fazer surgir esses caminhos, esses tuneis, mundos dentro de outros mundos, realidades paralelas. O que eu gosto de oferecer para o leitor que me acompanha, por meio do meu narrador, é uma visão tão quântica quanto poética. E, como você notou muito bem, eu faço isso desde Vergonha dos pés…
•
Eu queria, Pablo, um livro que desestruturasse o pensamento acadêmico – que eu adoro! –, mas… Não me julgue, não é por implicância, não é por ressentimento, e você que me conhece sabe que, de fato, não é! Eu estou cada vez mais envolvida com questões acadêmicas. Eu estava fazendo faculdade, na verdade, era para eu me formar daqui um ano… Então voltei a escrever textos no formato acadêmico e a gostar de escrever nesse formato – eu que sempre debochei dos textos acadêmicos porque eu achava que eram enfadonhos e que a técnica acadêmica fazia com que um Doutor como você não realizasse a liberdade verbal. Não penso mais assim. E, hoje em dia, eu entendo a estrutura da pesquisa acadêmica. Mas para esse livro* eu senti que seria ainda mais subversivo, comum assunto tão sério como o feminismo, usar formas ficcionais que me são caras como o fragmento, a crônica, a poesia e mesmo o desenho. Propor que o feminismo seja, por que realmente é, uma força de criação. E não algo resumido a um só discurso. Por isso desde o começo eu digo que não sou uma especialista, uma doutora no assunto. Como escritora, eu falo e penso a minha experiência e o que eu consigo observar na vida das pessoas e no mundo.
•
Pablo, meu querido acadêmico, tudo o que eu queria era me formar esse ano, concluir minha graduação, mas tive que interromper minha última tentativa. Peço-te, com amor, que você olhe a estupidez – e maravilha – dessa falsa ideia de comunicação em que todos são “Roberto Marinho”. Sempre impliquei com gente que “sabe escrever bem”, como você. Demorei a aprender escrever, você sabe, tenho dislexia. Mas pense sobre a importância do nosso ofício de escrever. Ensinar. Aprender. Eu e você… não somos donos de jornais, revistas, mídias. Não somos medíocres cheios de meios de comunicação. Somos escritores.
•
Bom, Pablo, quero agradecer a sua devoção ao conhecimento. Longa vida para a sua carreira de pensador. E que esse término** seja mais um recomeço com outras etapas que estão por vir, necessárias etapas porque louvar o conhecimento é louvar a deusa mais incrível, a deusa dos melhores auspícios, a mais generosa de todas… então, muito obrigada, parabéns, e obrigada por você sempre se lembrar de mim. E se minha obra te inspirou algo eu fico muito orgulhosa. Mas, principalmente, parabéns! boa sorte! e que legal… muito legal… eu fico emocionada, de verdade, porque eu acho admirável a vida acadêmica e a vida do pensador que, como você, se determina a exercitar esse ofício. Um beijo, meu amigo. Ensine muito as pessoas a serem livres.
Imagem retirada da rede social do autor. Referência à série de TV Shippados (2019), assinada por Fernanda Young e Alexandre Machado.
*Fernanda se refere ao livro Pós-F: para além do masculino e feminino que ela lançou em 2018, pela editora LeYa, vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro de crônicas.
** Trata-se da conclusão do meu doutorado em Literatura, em junho de 2019.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA, NT. “Mateus, 8:20”. In: BÍBLIA SAGRADA. Trad. Missionários Capuchinhos de Lisboa. North Carolina, U.S.A: C.D. Stampley, Inc. Charlotte, 1974
LISPECTOR, Clarice. “As dores da sobrevivência”. In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
SHIPPADOS [Seriado]. Direção: Ricardo Spencer, Renata Porto d’Ave. Roteiro: Alexandre Machado; Fernanda Young. Produção: Patrícia Pedrosa. Brasil: Globoplay, 2019. 1 DVD (3h66min.), son., color.Disponível em:https://globoplay.globo.com/shippados/t/wkBg7DwPkn/
YOUNG, Fernanda. As pessoas dos livros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
YOUNG, Fernanda. Pós-F: para além do masculino e feminino. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.
Créditos na imagem: Fernanda Young fotografada por Bob Wolfenson, 2018
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title= “SOBRE A AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “381”][/authorbox]