Se o mundo, Alzira, o mundo, que não cuida
Senão em maquinar sua ruína,
De longo tempo não tivesse urdido
Iníquas tramas, hórridas ciladas,
Que o homem (digno prêmio de sua obra)
Barreiras põem na estrada da ventura[1].
O volume com alguns poemas que José Paulo Netto, talvez o mais importante marxilógo brasileiro vivo, reuniu de Manuel Maria de Barbosa du Bocage é simplesmente espetacular. Além dos poemas, Zé Paulo escreveu uma Apresentação volumosa que retoma a história literária e sócio-econômica de Portugal desde os tempos de Gil Vicente até o surgimento de Bocage, acompanhada de umas cem páginas de notas que oferecem ao leitor interessado material mais do que suficiente para se introduzir informadamente na história portuguesa. Trata-se de um material extremamente rico que os professores de Literatura Portuguesa deverão aproveitar nas próximas décadas em seus cursos introdutórios à matéria, já que, além do panorama, trata-se de um material que serve mesmo, pela riqueza da bibliografia reunida, como convite à pesquisa sobre o tema. A partir da leitura dos poemas e da Apresentação do professor, gostaria de fazer alguns comentários sobre a apreensão da experiência sexual, especialmente nas Epístolas de Alzira e Olinda.
Filho do Iluminismo, o discurso de Bocage sobre o tema recorre sempre à tópica da hipocrisia social, corporificada no discurso religioso castiço, que em Portugal, mais do que em outros lugares, era uma realidade viva da vida social. Assim, no belíssimo poema que é a Epístola a Marília, já na sua primeira parte, o poeta constrói a oposição entre a “Pavorosa Ilusão de Eternidade” (BOCAGE, 2022, p. 71) e o “Escândalo de amor, que dá, não vende” (ibidem, p. 72). A Eternidade, encarnada na forma do Inferno, serve como mecanismo para construir uma mentalidade conservadora e castiça que pretende cercear o livre exercício dos dons que a Natureza nos oferece. O que o poeta oporá a todo tempo é exatamente essa noção religiosa do Céu recompensador e do Inferno castigador à Natureza, que deve ser vista como a verdadeira morada de Deus. Não se trata, portanto, de uma negação da religiosidade tout court (embora o poeta flerte com essa ideia em muitos momentos dos poemas), mas da substituição da ideia de um Deus punidor pela da Natureza abundante e bondosa: “Oh Deus, não opressor, não vingativo” (ibidem, p. 73), exclama o poeta. A moral religiosa vigente em seu tempo impede que os homens e as mulheres, de forma livre e desimpedida, realizem aquilo que a Natureza os criou para realizar. O prazer sexual é nada mais do que um atributo da Natureza que não devemos negar em nome da religiosidade. Estamos diante do discurso do amor livre, do desimpedimento da fruição do prazer sexual e da denúncia das estruturas sociais que impedem o correto e positivo aproveitamento das faculdades que a Natureza, deificada pelo poeta, nos impõe como dever. Ao final da Epístola a Marília, ele diz em versos memoráveis:
Entrega-te depois aos teus transportes[2],
Os opressos desejos desafoga,
Mata o pejo importuno; incita, incita
O que só de prazer merece o nome.
Verás como, envolvendo-se as vontades,
Gostos iguais se dão e se recebem.
Do júbilo há de a força amortecer-te,
Do júbilo há de a força aviventar-te.
Sentirás suspirar, morrer o amante,
Com os seus confundir os teus suspiros,
Hás de morrer e reviver com ele.
De tão alta aventura, ah, não te prives,
Ah, não prives, insana, a quem te adora!”
Eis o que hás de escutar, ó doce amada,
Se à voz do coração não fores surda.
De tuas perfeições enfeitiçado,
Às preces que te envia, eu uno as minhas.
Ah! Faze-me ditoso, e sê ditosa.
Amar é um dever, além de um gosto,
Uma necessidade, não um crime,
Qual a impostura horríssona apregoa.
Céus não existem, não existe Inferno:
O prêmio da virtude é a virtude,
É castigo do vício o próprio vício (ibidem, p. 77-78)
Juntando seu discurso ao que o próprio coração diz à sua amada, o poeta, que tenta convencê-la pela Epístola de que a entrega aos prazeres sexuais não implica em castigo e que os hipócritas constroem esse tipo de discurso como um dispositivo de controle social para manter sua tirania, termina o poeta com os versos memoráveis segundo os quais se a virtude é o que é por uma recompensa depois de sua execução e se o vício é o que é pelo castigo que se segue à sua entrega, então não são vícios ou virtudes, que são o que são, vícios e virtudes, pelas consequências concretas que trazem aos sujeitos. O raciocínio, extremamente rico, desmonta todo discurso religioso: o que é bom é bom porque nos faz bem, o que é mau é mau porque nos faz mal. A entrega ao vício é o castigo suficiente para o próprio vício e a entrega à virtude é a própria recompensa da virtude. Daí o prazer sexual, a entrega aos transportes que acometem os homens, não poder ser um vício, porque seu resultado não é concretamente um mal, que se constrói socialmente depois pelo castigo.
Essa primeira Epístola, de uma beleza sem fim, é seguida pelo que se pode considerar o centro do volume organizado por Zé Paulo: as Epístolas de Alzira e Olinda, que, além do discurso já construído no primeiro poema, dramatizam a cena sexual que o leitor espera por toda a leitura. Se primeiro o poeta nos oferece o arcabouço filosófico em torno do qual está operando, nesses poemas ele nos convencerá pelo que só a literatura é capaz: a força abrangente e libertadora de duas cenas de sexo, descritas a partir do ponto de vista de duas mulheres que se correspondem. Aqui o sexo é visto não como experiência individual de duas subjetividades separadas do mundo, como duas mônadas que se excitam e se consomem (o amor dá, não vende, como lembra o poeta), mas como acontecimento humano e social total, e como tal, como um evento cósmico. O entrecho inicial é relativamente simples: uma jovem adolescente escreve a uma amiga alguns anos mais velha sobre as transformações por que está passando seu corpo na puberdade. Surge nela o desejo sexual sem que ela compreenda o que está acontecendo e seu corpo se altera. A amiga, que lhe responde dando conselhos, avisa-lhe que se trata de amor e a inicia numa espécie de educação amorosa que passa, logo de início, pela desconstrução do discurso religioso e familiar sobre a sexualidade:
Vão-se aumentando os peitos e tomando
Uma redonda forma, como aqueles
Que servem de nutrir-nos lá na infância,
Doutros sinais o corpo se matiza
Antes desconhecidos: alvos membros,
Lisos ‘té aqui, macula um brando pelo,
Como o buço ao mancebo, à ave a penugem.
Sobressalta-me de homens a presença,
Eles, a quem ‘té agora, indiferente
Tenho com afoiteza sempre olhado!
Ao vê-los, o rubor me sobe ao rosto,
A voz me treme, e articular não posso
Sons, que emperrada a língua não exprime.
Sinto desejos que expressar me custa.
Amor… E como a ideia tal me arrojo?
Será talvez amor isto que eu sinto?
Já tenho lido efeitos de seus danos;
Mas esses que o seu jugo suportam,
Tinham com quem seu peso repartissem,
Tinham a quem chamavam doce objeto,
Quem a seu mal remédio sugerisse (ibidem, p. 82).
O poder desses versos é realmente surpreendente. A descrição da transformação do corpo feminino sem nenhum tipo de pejo, numa linguagem marcada pela beleza e pela sinceridade, vem acompanhada de um drama adolescente que todos vivenciam: o surgimento do amor se dá no campo do desejo sexual, do desenvolvimento da habilidade sexual do homem, determinado por sua força biológica (a Natureza do poeta), mas ele vem acompanhado dos discursos sociais sobre o mesmo amor, que produzem a confusão de que Olinda se vê vítima. Ela sente o desejo, seu corpo clama pela realização sexual que desponta, mas a visão que ela tem do amor parece não se coadunar com isso. Os efeitos que a jovem lê sobre os danos do amor envolvem uma idealização que o entende como afeição conjunta, ou seja, como algo direcionado a alguém, e sua experiência coloca para o leitor exatamente o substrato biológico inegável do amor: ele surge sempre como desejo sexual puro e só depois se cristaliza na figura de um amante que sugere o remédio do mal amoroso. Os versos são profundamente pedagógicos e o fato de que um professor que propusesse sua leitura para uma turma de adolescentes que vive exatamente esses dramas encontraria resistência generalizada por parte das famílias, das coordenações e dos próprios alunos nos diz apenas da necessidade urgente dessa erótica cósmica que Bocage nos oferece.
Esses discursos sobre o amor é que a correspondente da jovem Olinda, Alzira, tentará desfazer na amiga, e é neles que podemos ver, de forma direta e desabusada, as determinações sociais que restringem essa experiência total que é a sexualidade. “A triste educação” (ibidem, p. 84) é a causa das muitas incompreensões dos fenômenos, ela é ministrada por homens que, alguns versos depois, Alzira caracterizará de forma plena:
Ah! Deixa, Olinda, deixa que alardeiem
Virtude austera hipócritas infames:
Sabe que, enquanto amor horrível pintam,
Enquanto aos olhos teus assim o afeiam,
De uma amante venal nos torpes braços
Vão esconder transportes que os devoram
E, por castigo seu, somente gozam
Emprestadas carícias, vis afagos.
Mas quando assim os homens dissimulam,
Para dissimilares te dão direito:
Finge como eles; ama e lho disfarça,
Que é mais um gosto amar às escondidas,.
Afeta, embora, afeta sisudeza
Já que a afetar te obrigam, e em segredo
De instantes enfadonhos te indeniza (…) (ibidem, p. 86)
O trecho é riquíssimo porque, de um lado, além de opor o discurso dos hipócritas sobre o amor àquilo que a Natureza impõe, Alzira ensina a sua jovem aprendiz duas coisas fundamentais: primeiro, os ditames da Natureza são tão incontornáveis que esses próprios hipócritas são obrigados a se entregar aos amores, mas, pela sua hipocrisia, são obrigados a recorrer ao amor comprado das prostitutas, o que aparece como redução, pelo próprio vocabulário que o poeta usa, das potencialidades do amor (é sempre bom lembrar que os escândalos do amor, segundo Bocage, sempre dão, nunca vendem); segundo, diante do contexto social em que está inserida a jovem Olinda, ela precisa aprender a contornar as imposições sociais sem produzir para si prejuízo maior do que a própria “triste educação” já lhe impõe: ela deve aprender a fingir sisudeza e a viver seus amores livremente, e isso, diz sua amiga, pode até lhe ser um acréscimo de prazer na hora do sexo, já que “é mais um gosto amar às escondidas”. Mas esse gosto do amar às escondidas só se realiza, precisamos inferir, se a concepção do amor está adequadamente ajustada à visão libertina da correspondente, já que também os hipócritas amam escondidos, mas, no seu caso, essa proibição não apimenta suas relações, mas as reduz ao nível da simples compra e venda do sexo.
Na missiva seguinte, Olinda diz, em linguagem um pouco cifrada, que finalmente realizou seu desejo sexual, ao que Alzira responde cobrando mais detalhes:
Filha da reflexão, nova linguagem,
Por artifício mascarada em letras,
Vejo que anunciar-me antes procura,
Após do que se há feito, o que se pensa
Do que por gradações d’ação o interesse
Pouco a pouco esmiuçar, dar-me a ver todo.
Rasga o pudico véu com que debalde
Aos olhos de uma amiga esconder buscas
Voluptuosas traças que transluzir
Nas tuas expressões; quando inocente
Menos recato nelas inculcavas,
Eu lia com prazer dentro em sua alma
Os sentimentos que a afetam todos.
Tenho direito agora a exigir-te
A ingênua confissão desses momentos,
Prelúdios do prazer em que te engolfas.
Quero saber porque impensados lances
Dum amante nos braços te arrojaste;
Como o pudor fugiu, e o que sentiste
Quando, abrasada em férvidos desejos
Misturados com dor indefinível,
De amor colheste atônita as primícias
E provaste entre gostos e agonias
O que uma vez, não mais, pode provar-se (ibidem, p. 91-92).
O pedido de Alzira é também do leitor: queremos não apenas as reflexões posteriores ao ato, mas a descrição do próprio ato. A libertação da sexualidade humana passa também pela nossa capacidade de enunciá-la como tal, como experiência sexual que nos acomete e nos eleva. Na resposta de Olinda desenvolve uma contraposição interessante: ela opõe a “pura alocução que Amor ensina” à “frase brutal, sem arte, e sem melindre” (ibidem, p., 103) que se encontra nos livros populares que seu amante, o jovem Belino, lhe oferece para ler. Ela, na verdade, submete o rapaz a um processo de educação sexual e amorosa: quer obter do jovem “a custo” o sacrifício das “obscenas produções”. A justifica que usa é que:
(…) o prazer esmorecia
De amável ilusão sem os prelúdios,
E que, apesar dos seus vivos protestos,
Se os sentidos assaz lisonjeava,
Mil emoções gostosas embotando,
Impelido a gozar continuamente,
Escravo do prazer na sua amada
Não fartaria hidrópicos[3] desejos:
Ardentes Messalinas[4] buscaria,
Entre os braços das quais mais fácil era
À vida termo pôr que saciar-se (ibidem, p. 104)
Há pelo menos duas coisas interessantes na contraposição que a moça elabora. Primeiro, a captação por parte do poeta dos efeitos negativos e patológicos da pronografia. Na Apresentação, diferenciando o erótico do pronográfico, Zé Paulo Netto nos oferece uma historicização interessante para o fenômenos: a portnografia estaria vinculada ao surgimento da mercantilização do texto, que encarado como mercadoria, passa a ter como objetivo a simples escitação do cliente para o prolongamento do consumo. Olinda, e com ela aparentemente Bocage, deixa clara sua marcação: o que essa literatura de caráter popular (e aqui entenda-se popular como direcionado às classes plebeias, sem acesso à educação cortesã de que Olinda é resultado) produz é o atrofiamento da sexualidade humana, que passa a ser vista como objeto de produtividade. Essa literatura pronográfica impele a gozar continuamente e impede a realização do desejo na figura da amada, fazendo com que o doente tenha que recorrer às prostitutas. É difícil separar o que há aqui de bom senso e o que é resultado de um moralismo em outras formas (de que Alzira a condena, lembre-se) e de vontade de manter o amante nas garras da monogamia. Talvez todos esses elementos estejam misturados, mas é importante notar que a diferenciação, para além da moralidade algo vazia que acaba reproduzindo, também é resultado de um diagnóstico bem preciso das contradições do mundo burguês que está surgindo à vista do autor nesse final de século XVIII em que vive. O que a mercantilização do sexo produz não é a liberdade em torno da sexualidade humana, mas um desvio de seu caráter social e humano total (cósmico) no sentido da atrofiação de seu fim: o gozo. A busca pelo gozo, que é necessária à indústria da literatura pornográfica, atrofia a experiência total que é a sexualidade, “embotando mil emoções gostosas”. O gozo pelo gozo, a necessidade insaciável de gozar leva ao fim do prazer sexual, já que, junto às Messalinas, é mais fácil pôr termo à vida do que de fato encontrar satisfação. A sexualidade que Olinda está nos desvendando é uma experiência corporal que vai além do mero gozo sexual. Ela é uma experiência corporal total, que envolve prazeres que, se culminam no gozo, passam por etapas estranhas a ele. É contra a atrofia da ejaculação que Olinda quer proteger seu Belino. Conclui então Olinda, deixando patente para nós que o Amor de que trata é uma experiência completa que atribui sentido à vida:
Assim, quando os sentidos fatigados
De amor se negam a esgotar delícias,
Mana do coração inexaurível
Prolífica virtude que os alenta.
Assim como de gostos perenais correntes
Franqueia Amor a quem o não profana (…) (ibidem, p. 104)
Muito distante das oposições estéreis, o amor como experiência corporal e extra-corporal confluem num sentido único e próprio. É do solo do prazer físico que surge a afeição amorosa que transcende o corpo e abrange toda a vida espiritual do homem.
O segundo aspecto interessante dessa oposição é que ela coloca Olinda e Belino em posições sociais distintas. Ao final de sua missiva, já ao fim de toda a série, ela lembra a Alzira que, diferentemente dela, que descreveu uma cena de sexo nupcial, depois do casamento, com um homem que pertencia à sua classe social, Olinda se entregou a um amante cujos antepassados não eram, como os dela, nobres:
A Fortuna, que foi comigo larga,
Negou seus dons a meu querido amante.
Ele não conta nobres ascendentes,
De quem meus pais se dizem oriundos:
É quanto basta para erguer muralhas
De alcance, entre ele e mim, inacessíveis.
O ditoso himeneu, aparato de teus votos,
Para entre os braços tecer afoita
Indissolúveis níos c’o meu Belino:
Sou dele, é meu; os homens que se ralem (ibidem, p. 114-115).
Já claras desde o início da missiva, as origens populares de seu amante agora aparecem tematizadas como tal. Talvez o verso mais interessante, fora o último da citação, que revela em toda sua sinceridade o ideário Iluminista do poeta, seja aquele em que Olinda diz que seus pais “se dizem oriundos” de uma ascendência nobre. O distanciamento não é pouco: o ideário de liberdade e igualdade dos homens diante da Natureza é tão profundamente emaranhado à jovem autora que ela entrega aos pais o discurso de ascendência nobre, não assumindo ela própria essa perspectiva. Os homens, em sua separação social, que ralem: ela e Belino estão unidos não por um simples amor carnal ou uma simples afeição de juventude, mas por uma conexão cósmica que o prazer sexual e o afeto dele resultante produzem. Esse é o ponto de fuga de todo o discurso contra-hegemônico que o poeta coloca em operação: o desmonte das hipocrisias religiosas sobre o sexo, que servem de fundamento para uma ordem social tirânica, resulta num reordenamento do mundo, numa nova forma de ver e enxergar o mundo.
É esse aspecto, que tenho chamado aqui de cósmico, que perfaz o caráter revolucionário do sexo em Bocage, e que tanto nos falta, depois que transformamos a obscenidade em mercadoria consumida sem nunca conseguir nos saciar. As duas cenas de sexo que as missivistas descrevem ensejam na verdade algo muito maior do que simplesmente a excitação do leitor, mas um ideal de realização humana que, se parece tão próximo de nós quando nos entregamos ao prazer corporal (às concupiscências da carne, na tradução brasileira da Bíblia), é também uma espécie de má consciência social. A experiência sexual completa que elas descrevem implica uma reorganização do mundo de todos os seus pontos de vista, e vai muito além da simples crítica anticlerical da literatura de seu tempo e da posterior. Vou dar apenas um exemplo para não tirar do leitor a deliciosa experiência de ler às duas cenas:
Da máquina que a praça explanou firme,
A estrutura e altivez eu divisando,
Custava-me a atinar como pudera
Plantar-se o obelisco no reduto estreito.
Benilo, minhas vistas compreendendo,
Fez-me sentir, forçando-me a tocá-lo,
Marmórea rigidez, cor escarlate,
Forma e calor de obus[5], que disparava.
Quando submisso, da peleja lasso,
O vi depois sem o estendido conto,
Brancas roupas trajava, mais humilde;
Mas agora, afrontando, arremessado,
Monarca ufano, a púrpura do colo,
Com furor ao combate se aprestava.
Reverberou seu fogo em minhas faces,
E a veia e veia, delas espalhado,
De todo o corpo me filtrou os membros (ibidem, p. 111).
Depois de masturbar sua companheira e de penetrá-la, o rapaz, vendo a curiosidade dela sobre como ocorrera a penetração, coloca a mão da amiga em seu órgão sexual, descrito com imensa criatividade pelo poeta. Ela primeiro vê o pênis ereto e, depois, brochado. Quando toca nele brochado e ele se excita de novo, eles mais uma vez se penetram. O que gostaria de destacar aqui é, antes de tudo, como o sexo é também uma experiência de conhecimento. A jovem e inexperiente Olinda não está ali simplesmente à procura do gozo, mas de uma experiência corporal total que a possibilite não apenas gozar no sentido estritamente biológico da palavra, mas antes de tudo ascender ao êxtase. Essa experiência, que surge do corpo, o transcende para a vida social, para o conhecimento de mundo que tem a missivista e pelo seu desejo, manifestado ao final da carta, de continuar a aprender com Alzira sobre a Natureza.
O leitor obviamente está colocando uma objeção ao que tenho dito: o sexo não é tudo isso que eu estou dizendo. A força do que descreve Bocage parece depender de uma circunstância fundamental: trata-se da primeira vez de Olinda, da sua descoberta da sexualidade e do próprio corpo. O resto que estou dizendo parece estar fixado à noção de sexo de maneira algo artificial; seria antes uma conexão entre a libertinagem do autor e a filosofia social e natural do Iluminismo de onde provém. Gostaria de terminar este texto dizendo que não. A experiência sexual realmente não é, a todo tempo, o que os poemas revelam, mas tudo que ele nos diz está lá como potencialidade. O ato sexual, por mais corriqueiro que seja, por mais intempestivo e impensado, por mais envolto na mais completa estupidez ideológica, guarda, ainda que em potência, uma conexão profundamente humana entre dois sujeitos. Essa conexão pode não se expandir da forma como Bocage nos anuncia em seu poema, ela pode não produzir as mudanças ideológicas por que passa Olinda ao longo de sua educação sexual. O sexo pode não implicar na destruição das estruturas sociais e a ralação dos homens a que Olinda os renega ao final da penúltima citação pode ser mais eficiente do que sua expressão desdenhosa quer nos fazer crer. Tudo isso é verdade e pode ser observado em nosso mundo e em nossa experiência pessoal. O sexo pode adquirir formas mecânicas, tornar-se desinteressante, pode ser reduzido à necessidade insaciável de ejacular. Tudo isso tem nos aparecido nas últimas décadas como único destino possível da sexualidade no mundo Ocidental. Mas ainda assim ele guarda como potência, que todos podem sentir, em todas suas relações sexuais, algo que transcende a mesquinhez de nosso mundo. E é exatamente porque é capaz de nos revelar isso, ou seja, de fazer patente às nossas vistas algo que está potencialmente guardado em cada relação sexual que temos que o poema de Bocage é grandioso. Mais do que nos revelar as contradições em torno das quais gira o problema do erotismo, e ele o faz com precisão, como tentamos mostrar, seu poema revela o que a experiência humana pode ser.
Essa revelação é algo também muito característico de seu momento histórico. Trata-se de um exercício de imaginação política que perdemos nas últimas décadas no mundo inteiro. Contemporâneo da Revolução Francesa, homens como Bocage não se limitaram a criticar o que estava profundamente equivocado em seu mundo, mas apresentaram aos seus contemporâneos e aos pósteros possibilidades novas de pensar cada pedaço da experiência humana. O sexo em Bocage é um exercício de imaginação social que precisamos urgentemente retomar se quisermos nos viabilizar como espécie e civilização ao longo dos próximos séculos.
REFERÊNCIAS
BOCAGE, Manuel Maria de Barbosa du. Da Erótica. Organização, apresentação e notas: José Paulo Netto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022. 271 p.
NOTAS
[1] Bocage, 2022, p. 114.
[2] Nos poemas, a palavra transportes significa o desejo sexual.
[3] O termo parece estar sendo usado de forma figurada. Hidropisia é o acúmulo de água em tecidos celulares. O termo parece indicar aqui, de um lado, o acúmulo do esperma no órgão sexual masculino e, ao mesmo tempo, o caráter patológico do desejo sexual insuflado pela pornografia popular.
[4] O termo Messalinas refere-se tradicionalmente a prostitutas. Sua origem é a imperatriz romana de mesmo nome, terceira esposa do Imperador Cláudio, que tinha fama de ser promíscua.
[5] Explosivo arremessado por uma boca de fogo própria.
Créditos na imagem: Jean-Honoré Fragonard. O beijo roubado. Óleo sobre tela, 1780. Museu Hermitage. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jean-Honor_Fragonard_007.jpg. Acesso em 17 de fevereiro de 2023.
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “291”][/authorbox]