O filme Coringa (The Joker, Todd Phillips, 2019) é certamente uma peça artística ousada e desafiadora. Pesado, violento e sombrio, o filme cumpre com uma das vocações das artes: criar um artefato cultural que abra espaço e estimule o debate de questões fundamentais para as sociedades contemporâneas e seus ares distópicos. Assim, temas como capitalismo, neoliberalismo e austeridade econômica, privilégios prevalecendo sobre direitos, consumismo desenfreado, descaso generalizado, delinquência, bullying, sensacionalismo, desespero existencial, egoísmos, violências de toda sorte, bilionários-celebridades se lançando na política como última salvação das pessoas simples (que desprezam absolutamente), o papel da mídia em produzir “heróis”, “vilões” e salvadores de qualquer tipo, o culto às celebridades de ocasião e à mediocridade como normas de uma vida pacata e ordeira para os cidadãos e cidadãs “de bem” se fazem presentes.

Entretanto, a história apresentada ali não é simples, nem direta, tampouco unidimensional. Enganam-se aqueles(as) que julgam que se trata de uma humanização (ou justificação) para aquilo que o Coringa (ou o Batman) faz. Definitivamente, não é um filme para crianças. Não é um filme “do Batman”. Também não sei agradará às pessoas ainda dependentes da figura dos heróis (acima da lei, acima de tudo e todos), ou que esperam encontrar na tela aquilo que já sabem (ou pensam que sabem), acreditam ou desejam. Talvez, para essas pessoas o filme possa parecer algo que certo “filósofo” do conservadorismo contemporâneo chamaria de “marxismo cultural gramsciano”. Evidentemente, tentar cravar uma chave de leitura ideológica sobre um filme como Coringa seria, no mínimo, ingênuo.

Phillips tornou-se internacionalmente conhecido por suas comédias (como a trilogia Se beber não case, por exemplo). Mas a imagem do palhaço com sua máscara sorridente (classicamente associada às comédias) aqui não é sinônimo de alegria. O fato de ser uma história de um homem simples e desconhecido (igualmente associado às comédias) num filme que é uma evidente tragédia (que se dedica aos heróis e “grandes homens”), com as ilusões e enganos oferecidas aos espectadores (propositais), nos dão exemplos das ambiguidades que atravessam o filme.[1] Se nas comédias esse tipo de engano é parte importante do que leva o público ao riso, aqui funciona como elementos de confusão, angústia e até ansiedade sobre o espectador. Até o final “Scooby-doo” (ou quase) do filme tem doses grandes do tipo de provocações que os criadores plantaram nesse filme. Por ser uma obra repleta de ambiguidades, e por conseguir mantê-las irresolutas até o final, Coringa também é um filme que deve incomodar muitas pessoas por sua própria natureza aporética. Isso significa que o filme não nos oferece nenhum caminho definitivo. Tampouco qualquer alento ou moral (lições) a partir do que vemos na tela. Não nos apresenta um psicopata sedutor e humanizado, um “vilão” ou um “herói” – menos ainda um “revolucionário”. Não louva a violência, ou apenas cria o cenário para que um vigilante fantasiado de morcego emerja do alto de sua moralidade kantiana. Não justifica as ações de A. Fleck (Affleck?!), mas não as condena também. Eu antecipo, meio pessimista, que o público em algumas salas de cinema brasileiras possa exibir uma reação análoga (não direi idêntica) ao primeiro Tropa de Elite (José Padilha, 2007). Mas isso não vem ao caso agora.

De qualquer modo, Todd Phillips e Joaquin Phoenix apresentam um filme perturbador sobre um homem branco. Mais um? Sim. Mais um homem branco, apagado, medíocre, desconhecido, moralmente confuso ou em vias de tornar-se amoral, amargo, consumido pelo ódio, rancor, ressentimentos e autopiedade, guiado por pensamentos negativos em relação a tudo e a todos, insensível, incapaz de amar e absolutamente alheio à empatia. Sem saber ao certo quem é em meio a uma sociedade violenta, fútil, consumista, materialista, imbecilizada pela televisão e que vangloria celebridades midiáticas. O complexo perfil de Fleck aos poucos vai dando sinais de se enquadrar no perfil daqueles que povoam as páginas policiais do jornalismo “mundo-cão” nos Estados Unidos da América (mas não apenas). Fleck se perde ainda mais quando o pouco que ele pensava conhecer a seu respeito começa ruir como um monte de “mentiras”. Se esse filme fosse situado contemporaneamente o quase inseparável caderno de anotações, pensamentos, piadas e referências “subterrâneas” de Fleck, talvez, pudesse ser representado como um perfil nas redes sociais, de um troll ou um incel (“celibato involuntário”) nos fóruns e chats da deep web. Qualquer semelhança entre esse perfil e o de atiradores em escolas dos EUA não parece mera coincidência. Fleck se sente empoderado ao empunhar um revólver – dança com ele, brinca como se estivesse descobrindo uma nova dimensão de seu próprio corpo. Com claros sinais de esquizofrenia, ele chega ao ponto de não saber se existe ou não, até o momento em que é reconhecido publicamente por algo que fez e repercutiu no mundo através da mídia sensacionalista: um triplo assassinato.

No entanto, é preciso frisar que o filme é apresentado não como uma narrativa em primeira pessoa (apesar de editado linear e sequencialmente), mas segue o fluxo de consciência de Fleck, que é repleto de ambiguidades, devaneios e contradições. Nesse sentido, a interpretação de Phoenix é realmente magistral. Ele consegue imprimir cada uma das nuances e mudanças (sutis ou drásticas) no rosto de Fleck/Coringa com enorme talento. Linguagem corporal é um recurso largamente empregado para evidenciar a dor e a tensão de Fleck durante sua transição. Uma personagem que vai de um olhar ou um sorriso infantil, de uma aparência pateticamente frágil, passando a um homem sedutor e confiante, até um psicótico absolutamente frio e furioso assassino. É realmente impressionante o que Phoenix realizou, pois ele conduz o filme praticamente todo da primeira à última cena.

Na superfície, pode parecer que o Coringa de Todd Phillips e Joaquin Phoenix é mais uma história de origem. Mas como não há pretensão de ser o início de uma longa saga nas telas, essa coisa de “história de origem” não basta, ou mesmo não se aplica aqui. E isso é reforçado pela própria dinâmica do “fluxo de consciência” que nos conduz pela história dos subterrâneos desta personagem. A origem do “herói” ou do “vilão” das histórias em quadrinhos em geral serve como explicação ou justificativa (moral) para aquilo que eles se tornam conhecidos por fazer: em geral é bastante binário (causa e consequência): as qualidades de um existem para contrapor as do outro. O caso do Coringa é interessante, pois apesar de se enquadrar nisso ele não tem uma origem fixa (ou estabelecida) nos quadrinhos, como as demais personagens do universo do Cavaleiro das Trevas. Existem algumas histórias que tentam fazê-lo, mas ele segue sempre mutante nas páginas das histórias e com diversas encarnações diferentes. Esse filme mantém essa mística do Coringa absolutamente de pé.

Acredito que o filme não precisaria ser “do Coringa” para ser um filme complexo e muito bem sucedido dentro daquilo que se propôs. Ele se sustentaria perfeitamente com personagens em nada relacionados com o universo dos “gibis”. Mas é interessante que seja um filme do Coringa, exatamente no momento em que filmes dos “heróis de quadrinhos” mobilizam bilhões de dólares pelo mundo inteiro, simplificando o entendimento de bem e mal, certo e errado, reciclando mitos, inventando outros, entretendo a juventude que os consome em nível veloz e quase insaciável, enquanto mobilizam rios de dinheiro por onde passam em bilheterias e merchandising. A história do Coringa de Phillips não me parece trilhar esta seara. Pelo menos, não como objetivo principal, pois toca em feridas abertas na sociedade estadunidense, chamando para o debate. Nesse sentido, o tipo de repercussão negativa da película na mídia (antes mesmo da estréia) já indicava que parcela significativa da sociedade se incomoda com o debate franco, preferindo condenar o filme como apologia à violencia (a velha estratégia moralista e hipócrita).

Ademais, o nível de sofisticação e complexidade apresentado em Coringa torna as coisas realmente mais difíceis para quem espera simples entretenimento ou um filme sobre uma personagem “de quadrinhos”. Isso significa que seus criadores se prepararam muito bem para aquilo que se propuseram a fazer: um filme do Coringa sem o Batman. Para isso recuperam elementos culturais de diversas fontes para compor um estudo de personagem. Coringa “segue o fio” de elementos de personagens criados por Dostoiévski (em Notas do subterrâneo), Tolstoi (Anna Karenina), Camus (O estrangeiro), Kafka (A metamorfose), Saul Bellow (Herzog), entre outros. O filme honra também a tradição do cinema das décadas de 1970 e 1980, principalmente. O contexto elaborado para a Gotham City de Phillips representa um pouco esse período de “decadência”, com o extermínio do Bem-Estar Social e o início do reino neoliberal de Reagan e Thatcher, também com o surgimento do crack e da corrupção policial e política que tomaram conta de capitais como Los Angeles e Nova Iorque, por exemplo. Não custa lembrar que o personagem do Batman (1938) foi desenvolvido durante o período de crise econômica pós-Crack da Bolsa de Valores de 1929, já durante a Segunda Guerra Mundial, mas consumido realmente em meio à miséria e o medo nas cidades dos Estados Unidos da América, crescendo junto com o Bem-Estar Social. De modo que o filme de Phillips faz um arco interessante ao privilegiar o impacto do desmonte dessas políticas públicas.

Aliás, Gotham City é uma personagem fundamental da história de Phillips. Não é apenas o pano de fundo a partir do qual tudo ali é encenado. Mas como personagem atravessa silenciosamente a tudo e a todos no filme. É parte de Fleck/Coringa da mesma forma como o Coringa/Fleck é parte dela. Assim, não identifico no filme uma lógica que faria de Fleck uma espécie de “vítima da sociedade”, como se fosse algo descolado do que é aquela sociedade, mas como parte dela que se apresenta como um organismo vivo. Assim como a sociedade de Gotham City é uma parte do Coringa ela também é parte da Família Wayne (e seus meuitos segredos) e será parte do “herói” que todos conhecemos.

A referência cinematográfica mais imediatamente perceptível em Coringa é a da adaptação para as telas da novela de Victor Hugo O homem que ri (The man who laughs, Paul Leni, 1928). Dizem que esse filme foi a base para o surgimento do personagemThe Joker nas histórias em quadrinhos do Batman, apresentado originalmente em 1940. A questão do riso incontrolável de Fleck (quando em situações de nervosismo e estresse) é uma escolha inteligente. Uma condição patológica que remete ao sorriso do protagonista de O homem que ri, que nada teria de alegria, pois lhe foi imposto através de um procedimento operatório que o desfigurou e condenou a ter aquela aparência bizarra e assustadora. Os elementos que permitem ao espectador intuir sobre a natureza traumática da condição que acomete Fleck de gargalhadas imensas em momentos nada oportunos são vários: abuso infantil, bullying etc..

É possível identificar também a inspiração de Phillips em filmes como Taxi Driver (1976) e O rei da comédia (The King of Comedy, 1983), do diretor Martin Scorsese. Mas não apenas porque estrelados por Robert de Niro, que também atua em Coringa. Arthur Fleck não parece inspirado apenas em Travis Bickle (Robert De Niro), o jovem solitário, socialmente estranho e consumidor de pornografia que se torna o motorista de táxi de Scorsese, mas em diversas referências semelhantes. Por outro lado, o personagem de De Niro em Coringa (Murray Franklin) é absolutamente inspirado em Jerry Langford (Jerry Lewis) em O rei da comédia, que conta a história de um aspirante a comediante obcecado por um comediante experiente e apresentador de talk show (ao ponto de sequestrá-lo). Algumas associações ao Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, e Clube da Luta (Fight Club, 1999), de David Fincher, também podem ser feitas. Com relação ao primeiro, a questão da banalização da violência, delinquência juvenil e psiquiatria numa trama social marcada por abismos sociais e econômicos, hipocrisias e desigualdades numa Grã-Bretanha distópica é bem evidente. No caso de Clube da Luta, creio que os paralelos também são possíveis em termos de um personagem principal (esquizofrênico), que conduz o filme através de sua percepção da realidade. A referência está no modo como o que é real para ele e como ele termina por influenciar as pessoas. Essas seguem-no como cordeiros numa espécie de culto violento que se torna um obscuro movimento subterrâneo e subversivo de ataques e destruição das ferramentas do sistema opressor da sociedade (e moralidade) do consumo. Em Coringa, algo semelhante acontece. Fica claro que essa não é a “intenção” de Fleck, que não se move por intenções (boas ou ruins) ou objetivos maiores. Mas o culto a ele acaba sendo sedutor como modo de sentir-se vivo e relevante, alguém que existe e é “querido” – algo que aparece como um desejo íntimo no primeiro ato do filme. Sem dúvida, outras relações e referências são possíveis também.

O nível de realismo do filme impressiona. Acredito que o Coringa de Phillips reinventou a noção realismo dentro deste gênero. Inclusive, a trilogia de Christopher Nolan (por melhor que seja) ganha coloridos até caricatos perto desse nível de realismo cinematográfico. Contudo, é bom dizer que boa parte (senão tudo) do que vemos no filme, no nível da trama, parece sempre filtrado pela apreensão que Fleck faz da realidade – que, como somos levados a crer ao longo do filme, nunca é inteiramente confiável ou “realista”. Se ele fantasia, cria, inventa e reinventa, distorce seus desejos, suas aspirações, seus medos e vontades, tudo que assitimos pode ser apenas um devaneio de um interno em Arkham? Uma piada que pessoas “normais” não entenderiam? Piada dele ou do diretor? Não há como saber.

O filme caminha, portanto, na contramão do que a parceria da DC Comics com a Warner tem feito ultimamente com seus filmes sobre personagens dos quadrinhos na sua queda de braço com a poderosa Marvel/Disney: abraça e incentiva as decisões do Diretor. Todo filme é feito de escolhas. Aqui as escolhas de Phillips foram integralmente chanceladas pelo Estúdio, coisa que não aconteceu em filmes anteriores da DC Comics. Inclusive, o modo como Thomas Wayne é figurado me parece fundamental nesse sentido. Porque reforça que não se trata de uma adaptação de quadrinhos (há referências aqui e ali como espécie de “easter eggs”). Mas o topos do “bom capitalista”, o mito meritocrático estadunidense do “self-made man”, do bilionário “bonzinho” que pode salvar a todos por sua consciência liberal erudita, é completamente desfigurado pela perspectiva de Fleck/Coringa, algo ainda não desenvolvido (até onde eu sei) no mythos do cruzado encapuzado. Isso parece sugerir que não existem riquezas (menos ainda as bilionárias) redentoras, inocentes ou bem intencionadas.

Por fim, Coringa celebra a tradição da sétima arte em grande estilo. Ele apresenta as questões e as hipocrisias de uma sociedade despedaçada pelas muitas máscaras que todos ali vestem, seja por escolha ou não. Não no sentido de colocar os(as) espectadores(as) na posição confortável de quem desmascara alguns, para louvar/aplaudir outros. Mas, talvez, para deslocá-los(as), forçando-os(as) a pensar sobre as suas próprias máscaras e sobre quem são a partir do que viram e como expressam isso. Reagir de algum modo, não importa qual, diante do artefato artístico apresentado é o que essa obra de arte exige de nós. Impossível ficar indiferente.

 

 

 


NOTAS

[1]     Segundo o Prof. Dr. Artur Costrino (Departamento de Letras da UFOP), as comédias e tragédias cujas características são aludidas no texto são as latinas, não as gregas. Agradeço imensamente ao Artur pela leitura atenta, comentários, sugestões e críticas à versão preliminar desta resenha.

 

 

 


Créditos na imagem:  Reprodução Poster The Joker, Todd Phillips, 2019.

 

 

 

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