– Menino, não chora. Não chora menino que não demora.
Obcláveo dava a rima, fechava os olhos e perguntava:
– Menino, está olhando?
– Não conto, não conto, não conto.
Obcláveo fechava os olhos, se não o menino não contava. Fazia bico. Obcláveo se alastrava:
– Estou te vendo, estou te vendo, estou te olhando por entre a máscara.
O menino debruçou as vistas sobre um vejo-não-vejo, sobre um não-queria-que- vissem, ninguém o visse. Jogou-se no poço, atirou seu olho e jogou de novo. Jogou-se.
– Não jogue, não jogue, não jogue. Disse Obcláveo.
– Se se jogar não terá outro jeito. Se não ficar em casa, fica enfermo.
O menino não sabia ser assim tão fundo. Não sabia ser tão perigoso. Debruçou-se sobre o poço. Debruçou-se sobre um agora-vejo.
Obcláveo declarou estar infectando, infectando na fraqueza das tramas do tecido da máscara. Primeiro atingirá a garganta. Depois, os pulmões serão atingidos.
Descansava no fundo, no fundo no fundo de um nem-te-conto, um olho de menino e um de menina:
– Quem é Obcláveo todo afetador?
A menina engoliu em seco e se disse sem resistência. Um poço fundo, uma menina embaixo para um menino lá em cima:
– Não conto, não conto, não conto. Te dou uma birra. Água e sabão, álcool em gel e detergente.
No meio do poço, o menino via. Iam seus olhos quando os baldes caíam:
– Estou descendo, disse.
– Estou te olhando, estou te olhando, disse Obcláveo.
No fundo do poço, a menina. Caíam baldes ao descer do menino. Ele tinha nos cílios saliva, suor e sangue. Ele tossia, sentindo dificuldade para respirar.
O poço ia ficando cada vez mais fundo, infectado cada vez mais ficando. Obcláveo debruçou o peito sobre o poço da menina, empurrando o menino para baixo. Obcláveo gargalhava, sem faróis, no escuro mudo do medo de todos, do medo coletivo.
O menino abria o poço. Com seus olhos, bocas, narinas e pulmões. Ele abria o que abria. E quanto mais ele abria, mais ele abria. Mais Obcláveo o envolvia.
De cima do poço, agora, a menina o via. Ele tentava a enxergar lá em cima. E quanto mais descia, para cima mais seu olho ia. Virava cílio quando os cílios Obcláveo encharcava de perdigotos.
O menino embaixo. A menina em cima. Obcláveo pulava tranças com eles, a corda foguinho não brinco mais, levantava a saia da menina. Ia embora a saúde dos meninos, de todos, do coletivo, quando viam Obcláveo de perto, tão perto dentro, sem distância de dois metros:
– Menino, não chora. Não chora menino, que não demora.
– Menina, não chora. Não chora menina, que não demora.
– Com quantas mortes se encerra isso tudo?
Diziam a ele que ele não era ele. Tudo porque chorava. Meninos não choram. Mais nada. Mas aquilo o derretia, o empoçava, o infectava. A menina lá em cima a perscrutá-lo.
Diziam a ela que ela não era ela. Mas se chorasse era menina. Mais nada. E o ar pingava, o parapeito a consolava e a fazia menina. Meninas choram, meninos fazem chorar. E o ar pingava, o menino chorava. Obcláveo subindo e descendo, gargalhando, galhofando:
– Tá bom, vou infectar outras pessoas em outros cantos, em outras freguesias.
A menina jogava a chave. O menino abria. Abria a boca e Obcláveo falava, depois de ter ido infectar os outros, depois de ter infectado o planeta.
– Com quantos mortos se encerra isso tudo? Essa paixão? Esse desconforto?
A resposta saiu quase muda, trêmula e vazia:
– Com esses espinhos nas mãos e outros imensos.
– Estou te olhando, mas não te vejo. Estou sentindo teus efeitos.
O menino cegou a lua. E cega ficou. A lua cegou o menino. E cego ficou. Primeira lágrima depois daquele desencontro, depois daqueles olhos no poço terem ficado doentes.
O menino ficou lá embaixo, no diminutivo da menina, sem perceber, deixando-se perder. Encolhida ficou a menina. Perdida como um sabonete tantas vezes esfregado nas mãos.
Obcláveo pegou o menino quando a menina subiu vendada. Inverso, invertido e coroado. Um menino que aumentava aos poucos, aos cânticos prantos que se enxugavam em lenços.
– Com que lágrimas se escreve isso?
Escreve-se no muro, nos avisos e nas recomendações. Com um “éle” bem longo e esgrimas nos olhos. Com umas lágrimas feitas de água e de sabão e de álcool em gel. Com a precaução.
Obcláveo olhou para seus próprios efeitos quando olhou os furos provocados nos pulmões do menino. Quando olhou o menino, ele era imenso. Quando viu o menino, os furos eram extensos. O menino lá em cima, seus olhos agora no parapeito. A menina lá embaixo com seu músculo batendo no peito. Quando pensou, o pensamento era imenso. Menino e menina brincando de em cima embaixo. Agora, o menino lá embaixo e a menina lá em cima. Os cadeados e as chaves abrindo portas em seus corpos afetados.
– Com que portas eu enxugo minhas lágrimas? Com que poço eu conto o que não posso? Perguntou o menino.
Escolheu a mais salgada, aquela que estava emperrada.
Trouxe o remédio? Perguntou a porta.
– Trouxeste a chave?
O menino ficou sem boca, sem remédio, irremediável estava.
– Menino, não chora. Não chora menino que não demora. Não há leitos, nem respiradores para todos.
A menina ficou calada, bordeando o poço, encarcerada. A menina lá em cima jogando olhares de não te vejo, cílios, máscaras. Quando via, espreitava, espalhava os olhos pelos seus peitos. Chorava, chorava.
– Queres que te conte uma história?
O menino abria. E quanto mais ele abria, mais ele abria, mais gente em escala geométrica se infectava. O poço mais fundo ficava. Mais se fechava, mais portas se abriam e se fechavam.
A menina juntava-se aos grupos de risco. Mais fundo ficava. E ocos ficavam seus olhos. Despetalados ficavam as flores do em volta do poço enquanto Obcláveo salgava mais ainda as lágrimas. Empestador ameaçava:
– Menino, me dá meu conto se não de amor eu te mato.
Créditos na imagem: The Awakenings – Oskar Kokoschka (1917). Ilustração. The Dreaming Boys séries.
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