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Das condições de possibilidade da história

RANGEL, Marcelo de Mello. Da ternura com o passado: história e pensamento histórico na filosofia contemporânea. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

 

Foto de capa do livro  Da ternura com o passado

O novo livro de Marcelo Rangel é uma excelente notícia para os estudiosos da Teoria da História. O texto é relativamente curto e com uma escrita fluida, mas ao mesmo tempo é bastante denso e traz contribuições generosas para a reflexão teórica – o que enseja o leitor a percorrê-lo diversas vezes sem se cansar, como sói acontecer com muitos trabalhos do campo.

Na obra, Rangel demonstra (ao contrário de um certo preconceito vigente entre alguns historiadores) que o diálogo produtivo entre pensamento histórico e filosofia contemporânea não apenas é possível, como também é necessário para abrir a reflexão teórica para novos limites e possibilidades. Mais do que repetir o que os filósofos tratados no livro disseram a respeito da história (em especial Jacques Derrida, Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche e, sobretudo, Walter Benjamin), Rangel tece um diálogo entre eles de modo a colocar uma questão a respeito da dimensão dos sentimentos e tonalidades afetivas (Stimmungen) que envolvem toda reflexão sobre a história.

Por muito tempo, a reflexão teórica se ocupou em descrever as condições para a produção de um saber objetivo e racional sobre a história, de tal modo que o aspecto climático e das disposições afetivas ficaram em larga medida relegados a segundo plano. Ao retomar essa questão como um problema fundamental para a historiografia, Rangel faz mais do que abrigar esses fenômenos no âmbito do “irracional”, pois o autor sabe bem que “o irracionalismo – enquanto o outro lado do racionalismo – fala apenas estrabicamente daquilo para o que o racionalismo é cego” (HEIDEGGER, 2012 [1927], p. 195/136). O refinamento teórico de Rangel leva a sua reflexão para além dessa dualidade estéril, em direção a uma crítica da modernidade e, em especial, do modo como nela se configurou o pensamento histórico.

O ponto central dessa crítica consiste em afirmar que a experiência da modernidade levou ao obscurecimento do caráter de possibilidade que é o da história. Isso porque, ao longo da modernidade, sedimentou-se a compreensão da irreversibilidade do tempo linear e contínuo, de tal maneira que a história se configuraria como o reino da necessidade. A expressão mais evidente disso reside na ideologia fundamental da modernidade, a do progresso. Nesse sentido, os horizontes (as possibilidades de sentido e de ação) que se apresentam em cada momento são vistos como constituídos por uma certa “historicidade”, mas isso no sentido estrito de um desenvolvimento processual que explicaria a ocorrência desses horizontes sedimentados no presente e que, por sua vez, apontariam para um futuro previamente determinado – configurando assim a lógica do progresso.

Pois bem, a crítica de Rangel incide justamente nesse ponto. A despeito de ter afirmado o sentido histórico de toda experiência, a modernidade também levou à denegação do caráter de possibilidade e de diferenciação que é o da história, como o autor assinala em diversos momentos do livro. Em outras palavras, Rangel identifica aí uma espécie de curto-circuito: ao passo que a consciência histórica moderna passou a abarcar âmbitos cada vez mais amplos da realidade, o preço pago por esse alargamento foi a perda da capacidade de encontrar na própria história os elementos, significados e sentimentos que potencialmente permitem complexificar os horizontes do presente em direção a outros mundos possíveis, o que caracteriza uma forma de fechamento. Desse modo, a modernidade foi efetivamente capaz de produzir um conhecimento mais amplo e preciso a respeito dos fatos passados, mas sem saber retirar desse conhecimento os horizontes de possibilidades que poderiam atuar no sentido da transformação de uma dada realidade. O resultado desse curto-circuito é uma forma de conhecimento sobre o passado marcada por uma postura apática e conformista (duas Stimmungen fundamentais para a consolidação da ideologia do progresso) em relação ao que atualmente vigora no presente. A proposta teórica de Rangel, por sua vez, consiste em questionar essa configuração moderna e abrir o pensamento histórico ao campo e à lógica do possível, de modo a fazer surgir as condições para a emergência da diferença e da ruptura com esses horizontes sedimentados.

Mas o que possibilita essa abertura? Aqui reside o ponto de maior inovação das reflexões apresentadas por Rangel. Em sua perspectiva, para que a historiografia seja capaz de tematizar e produzir a diferenciação histórica (a produção de horizontes que não reafirmam, mas desestabilizam o que é dado em cada presente), é necessário que ela vise a produção de disposições afetivas e economias sentimentais favoráveis à emergência dessas diferenciações. O que Rangel quer demonstrar em seu livro é que o obscurecimento do caráter de possibilidade da história, levado a cabo pela modernidade, está intimamente ligado à desconsideração do papel das Stimmungen na produção do conhecimento histórico. Porém, o plano dos afetos e dos sentimentos está presente (e até mesmo possibilita) toda forma de pensamento, incluindo o pensamento histórico. Sendo assim, a aposta teórica do livro consiste em dizer que a historiografia deve visar a produção de determinadas economias sentimentais, pois estas “seriam a origem da possibilidade de transformações efetivas da história” (RANGEL, 2019, p. 53). Desse ponto de vista, a tarefa fundamental da historiografia deixa de ser a produção de um conhecimento cada vez mais detalhado de todo e qualquer passado, “mas a participação e continuação de determinadas performances e sentimentos próprios (mais adequados) à crítica de seu mundo” (p. 55).

Assim, a tarefa de desestabilizar as referências sedimentadas e os horizontes congelados não pode passar ao largo da dimensão das afetividades, pois esta seria a própria condição de possibilidade para a realização dessa crítica. Vale dizer, é a tematização das Stimmungen que abre caminho para que possamos reinscrever no pensamento histórico a força e a experiência do possível. Ao longo de seu livro, Rangel trata de alguns desses sentimentos potencialmente capazes de realizar essa tarefa crítica. A melancolia, por exemplo, seria fundamental para dar origem a uma desconfiança radical para com os horizontes históricos sedimentados, pois ela permite quebrar com o conformismo e a apatia citados acima e, assim, abre o caminho para a assunção da tarefa de reconfiguração desses horizontes (o que Benjamin chamava de “redenção”, Erlösung). Outro exemplo importante que o livro tematiza é o amor (caritas), no sentido de um cuidado e uma responsabilidade gratuitos para com às diferenças (ou tudo o que não é familiar) que provêm de passados distantes, mas que carregam consigo a capacidade de abrir os horizontes do presente para outras configurações, e que emergem de forma misteriosa em instantes imprevistos e breves, mas carregados de possibilidades (kairós). Assim, sem cair em um “romantismo vulgar”, Rangel demonstra como a abertura amorosa para com o passado consiste em uma atitude teórica radical, na medida em que acolhe a alteridade de maneira a desestabilizar as referências congeladas no presente, criando assim as condições de possibilidade para a transformação histórica.

E é por isso que o título desse livro foi tão bem escolhido. A ternura com o passado não significa uma relação acrítica ou romantizada, mas se revela como a própria condição de possibilidade da crítica histórica. Arriscaria dizer também que a ternura seria precisamente o tom afetivo capaz de romper com a lógica do ressentimento, que desempenhou um papel crucial na conformação do nosso horizonte histórico atual no Brasil. Pois como diz o verso eternizado na voz de Elis Regina:

 

Não, não sei guardar ressentimento

Eu hoje lembro com ternura cada momento.

 

 

 


REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 10ª edição. Tradução revisada e apresentação de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petropólis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012 [1927].

 

 

 

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