HH Magazine
Ensaios e opiniões

Desejo de presença e materialidade da voz em Elza Soares

 

Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte

(Susan Sontag)

 

Ouvir canções aleatórias, discos inteiros já conhecidos e outros novos, tem me colocado diante de inquietações acerca do fenômeno da voz. Alguns artistas têm sido companhias recorrentes evidenciando aspectos de suas canções e performances que antes não me diziam tanto e agora vão se tornando, para mim, pura eloquência. Talvez o simples exercício da audição tenha aos poucos me liberado para a experiência mais corporal que intelectual que a música proporciona, fazendo-me lembrar Susan Sontag quando diz que mais do inquirir sobre o significado da arte, o importante é recuperar nossos sentidos e aprender “a ver mais, ouvir mais, a sentir mais” (2020, p. 29). Se foi assim que ocorreu comigo não sei bem, contudo, a incerteza motiva a escrita deste ensaio na paradoxal busca de apreender algo sobre o que por natureza tende a ser instantâneo e irrepetível: a performance vocal; no caso, a performance vocal de uma das mais radicais intérpretes da música brasileira, Elza Soares.

 

Elza emite com naturalidade a voz singularizada pelo recurso do scat singing que, ao seu modo, expressa em forma sincopada a sonoridade malandra e potente que faz dela a virtuose que é. A artista dispõe de uma trajetória que ajuda a impulsionar ainda mais o fenômeno que cria ao cantar. Camadas e camadas sobrepostas de altos e baixos na carreira e vida pessoal, de euforia e sofrimento, de sucesso e obliteração, seguidos de ressurgimento (sempre para melhor!), tornam a artista um ícone da arte brasileira que, como Sísifo, não obstante as complexas dificuldades, não cessa de refazer o mesmo trabalho.

 

Em seus últimos álbuns de estúdio Elza têm produzido canções carregadas de páthos, na tripla acepção que o termo evoca: que afeta profundamente a sensibilidade da recepção; que gera empatia no público; e que cria o efeito de tensão máxima experimentada no curto intervalo de tempo em que dura a performance.

 

A parceria com jovens músicos da “vanguarda paulista” que, atentos às demandas políticas e de mercado, projetam a cantora consagrada para a apreciação de um público também jovem e atravessado pela atmosfera atual que deseja ver unidos qualidade artística e posicionamento político. Canções-manifesto como Mulher do fim do mundo e Maria da Vila Matilde revelam a fusão que amplia a recepção da voz da artista fazendo-a ser compreendida como uma voz capaz de entoar o grito compartilhado por muitas outras pessoas e ser ouvida, mesmo muitas décadas após sua estreia no mundo da música. Em O que se cala, primeira faixa do álbum Deus é mulher (2019), a letra pujante denota o tom politizado deste e dos demais trabalhos recentes da cantora, após a “virada paulista”.[i]

 

Minha voz

Uso pra dizer o que se cala

Ser feliz no vão, no triste, é força que me embala

O meu país

É meu lugar de fala

 

Muito embora, particularmente, eu perceba a arte livre o suficiente para produzir objetos e relações com as questões prementes de cada tempo sem que precise necessariamente se justificar ou tornar isso óbvio, julgo que a opção por deixar marcada a politização de sua arte não diminui a importância do que Elza vem produzindo e faz circular como espetáculo vocal. Desde as performances dos anos 1960 e 1970, já reconhecida no meio artístico, especialmente no âmbito do samba, Elza Soares considerou importante entoar canções cujas letras expressassem junto com o desenho rítmico a própria forma ambígua do samba, explicitada por aquilo que a poesia contrastante de Caetano Veloso exibe tão bem: o samba como “pai do prazer” e “filho da dor”. Igualmente à canção de Caetano, a Mulher do fim do mundo –  composição de Rômulo Froes e Alice Coitinho, que dá nome ao álbum de 2015 –, é uma metalinguagem. Como o samba que canta o samba do artista baiano, o samba deliciosamente rock’n roll performado por Elza Soares alude à voz e ao ato de cantar; ou seja, tematiza a sua arte e sua fala, e ela mesma, compósito de tudo isso.

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar

Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar

Mulher do fim do mundo
Eu sou, eu vou até o fim cantar

 

Cantar
Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou, eu vou, eu vou cantar, me deixem cantar até o fim

La, la, la, la, la, la, la
La, la, la, ia, la, la, la, ia

Acompanhada por músicos excelentes, ao cantar Mulher do fim do mundo, Elza aparece inteira e capaz de se integrar com cada ouvinte/expectador que se permite ser atravessado pela arte que ela cria a partir de seu corpo, seus gestos contidos, sua voz rouca e potente. Como mencionou Paul Zumthor, “A performance é ato de presença no mundo e em si mesma. Nela o mundo está presente” (2014, p. 67). Elza sabe bem disso, ela se faz presença junto com a canção que compartilha conosco. É difícil imaginar a canção sem a voz de Elza e sem os arranjos que apresenta. A canção é um acontecimento formidável! A introdução prepara nossos ouvidos com violinos e cellos para o grau de tensão que a música vai desenvolver. A mistura sofisticada de cavaquinho, violão, percussão e sintetizador torna a melodia perfeita para a conjunção com a voz da intérprete. Casamento orquestrado pelos competentes Mestre Dalua, Marcelo Cabral e Guilherme Kastrup (produtor do disco).

 

Ao ser ouvida na canção, a voz de Elza soa também tensa, como a melodia, cantando a já mencionada ambiguidade do samba nos versos – “Meu choro não é nada além de carnaval/É lágrima de sangue na ponta dos pés” – denotativos da dor e do prazer que a arte da música lhe proporciona. O alongamento das sílabas em palavras como dor, voz, sou, vou, mulher… nas estrofes acima reproduzidas reforçam o recurso da passionalização que ajuda a tornar a canção e o sentimento emitido pela voz da intérprete o elo entre o pacto de identidade e alteridade compreendidos na copresença entre ouvidos e bocas, entre público, intérprete e música na situação performancial. Elza não abusa de suas potencialidades vocais, é antes, econômica, o próprio scat singing só é evidente na canção ao brincar com a tradição improvisando os lala laiás do samba no remate; e na sílaba final da palavra cantar, quando a rouquidão e o tremor da voz se associam para enfatizar o ato de cantar no enredo da canção e da vida artista – que já declarou precisar cantar para não enlouquecer. Contudo, a nota mais econômica emitida pela voz de Elza soa aos nossos ouvidos com a densidade tremenda de toda uma orquestra e nos toca transmutando emoção pura em prazer orgânico, por meio dos nossos sentidos receptivos aos efeitos de embriaguez causados pela voz e pela arte.

 

Igor Stravinsky, em suas lições sobre poética musical adverte-nos sobre o que indica ser a “realidade da música”: a pulsação. Para o maestro russo, é da natureza da música possuir uma respiração, uma pulsação, uma vibração própria que a define como fenômeno específico e de difícil apreensão pela linguagem discursiva (1996, p. 41-42). De modo semelhante, antes dele, Friedrich Nietzsche (1992), preconizava a importância do “impulso dionisíaco”, que, como princípio de criação artística, encontrava na analogia com a embriaguez – “cantada por todos os homens e povos originários nos hinos” – sua melhor expressão. O impulso dionisíaco, para o filósofo, exibe uma tendência imanente a retornar ao estado natural de indistinção – eliminando a singularização da unidade do sujeito – no qual as pessoas entre si – e com a natureza – se encontram reconciliadas.

 

O fenômeno da voz tem a força de criar algo semelhante ao que assinalam Stravinsky e Nietzsche. A voz rouca e trêmula de Elza Soares, ao performar as canções que escolhe compartilhar com o público, origina um universo particular onde dor e graça, swing e rock‘n roll se tornam pulso, respiração, arrepio, prazer. Sua voz entoada tem efeito somático sobre nós ouvintes, dançantes e cantantes de suas canções.

 

Stravinsky, ao citar o conterrâneo Souvtchinski, especifica dois tipos de música definidas por este, dos quais o segundo tipo efetua um deslocamento da unidade tonal estabelecendo-a no instável. Assim, “Esse fato torna-o [esse tipo de música] adaptável à transposição dos impulsos emotivos do compositor [ou do intérprete]. Toda música em que o desejo de expressão predomina pertence ao segundo tipo” (1992, p. 37). É importante observar que não se trata de buscar arrancar emoção a fórceps ou optar por executar canções melodramáticas. Antes disto, trata-se de remontar à natureza mesma da música e do fenômeno vocal, reconhecendo-os como arraigados no que é sensível, na presença, na conjunção de corpos.

 

Seja embalada pelo ritmo do samba, jazz, rap ou rock‘n roll, solando ou acompanhada por músicos talentosos, a voz de Elza Soares cria um elo perfeito entre letra e música, intérprete e público, como dito. Ao performar, ela manifesta o fenômeno da voz como poucos. Cada palavra enunciada, cada nota entoada é lábio, é língua, é garganta, é carne, é corpo, é vida, é arte, é política, é ontem, é hoje, é a voz do fim do mundo.

 

 

 


REFERÊNCIAS

NIETZCSHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio Jaime Ginsburg. São Paulo: Companhia de Bolso, 1992.

SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

STRAVINSKY, Igor. Poética musical (em seis lições). Tradução Luiz Paulo Horta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

 

 

 


NOTAS

[i] É importante registrar que antes da fase recente da carreira de Elza Soares que eu chamo de “virada paulista”, ela já estabeleceu uma parceria profícua com o músico e crítico literário paulista José Miguel Wisnik, originando o disco Do cóccix até o pescoço, em 2002. No disco produzido por Wisnik, Elza interpreta canções marcantes de sua carreira, com a potente A carne, composição de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti.

 

 

 


Créditos da imagem: Reprodução. Instagram/Elza Soares

 

 

 

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