Documentos auto-bio-ficcionais de terror da vida real

I. 22/12/2022. Seis 2. Dois 222. Quatro 111… Mais 1.

Naquele dia, começava e terminava uma vida. Aliás, várias vidas – de várias pessoas, e das mesmas pessoas. Nos reunimos todos na mesma casa. Um apartamento pequeno, baixo, apertado e quente. E perturbador. Branco, limpo. Extremamente limpo, como uma pele arranhada por uma palha de aço, por uma escova de pregos, de alguém que obsessivamente limpa por fora como quem quer limpar por dentro (é inútil). Lembra um hospital… Talvez um CTI, talvez um sanatório, talvez um necrotério.

Eu voltava à cidade onde me criei. Já morava em outra cidade, e ainda não morava na cidade em que moraria logo depois. Voltava após uma temporada de trabalho, uma campanha que, dentro dela, ocorreram muitas outras, até mesmo uma de verdadeiro horror. De certa forma, esta campanha acabava ali.

Nos reunimos todos neste apartamento. Todos mesmo. E o teto desabou sobre nossas cabeças. Com o teto, desabou tudo, até o chão, que afundou e fez desabar o apartamento de baixo, como em um efeito dominó vertical. Afundou o chão. Desabou após muitas advertências de que desabaria, após outros prédios do entorno desabarem. E foi sobre as nossas cabeças.

Dos escombros, restamos eu, meus irmãos, minha madrinha – e restamos em escombros. Morreram todos, e inclusive nós. Melhor dizendo, muito de nós – e deles – morreu ali. Nossas versões históricas de nós morreram ali. Quem éramos até ali morreu.

Retiramos blocos de pedra de cima de nós, lambemos nossas feridas, suturamos nossos rasgos, enterramos nossos/as mortos/es. Renascemos dos escombros. Nossos ossos ainda dóem. Mas eles têm tutano e vida.

 

 

Créditos na imagem de capa:

Azkaban. Em: https://recreio.com.br/noticias/entretenimento/como-surgiu-a-prisao-de-azkaban-de-harry-potter.phtml.