HH Magazine
Publicações

Entre lugares – Sobre Correntes, de Olga Tokarczuk

Quase sempre quando conheço alguém e me perguntam onde trabalho e onde moro me sinto entrando no trecho algo acidentado de uma estrada. Pois depois de responder, começo a ter de oferecer explicações frente a algumas indagações e mesmo exclamações, quase lamentos, do tipo “nossa, que difícil”. São realmente muito poucas as pessoas que dão de ombros, que entendem, e em menor número ainda as que perguntam se a paisagem do longo caminho entre minha casa e a cidade onde fica a universidade é bonita. Quando esse raro evento ocorre me sinto ganhando a pequena, ínfima loteria, de haver encontrado um interlocutor que saiba viver para além das conveniências.

Estou, compreensivelmente, desde março de 2020 sem ter pegado a estrada, geralmente de manhã muito cedo ou à meia noite, para ir e voltar de onde leciono. Hoje faço tudo da sala de estar da minha casa, a quilômetros de onde estão uma gaveta de aulas preparadas, alguns dos meus livros mais essenciais para elas, uma caneca térmica e uma caixa de chá Lady Grey, cujo conteúdo deve ter mofado. Pertenço à pequena parcela da população que ainda está em home office e, por decisão minha, o mais perto que cheguei de viajar desde que começou a pandemia foi ter ido algumas vezes na casa da minha irmã, em uma cidade da região metropolitana. Troquei minhas viagens anteriores por algumas incursões imaginárias em lugares onde já estive e em outros que não, em volta e meia futricar no Google Maps e percorrer bairros por onde já andei e as ruas de outros por onde gostaria de andar, por fotos antigas minhas e as atuais do Instagram de amigos e amigas que não moram na mesma cidade que eu, pelo meio das quais percorro a praia de Copacabana, o rio Hudson, as avenidas de São Paulo, morros em Minas Gerais e algumas cidades do interior do Rio Grande do Sul.

Por ser alguém privilegiada, que costumava viajar para além do ir e vir do trabalho e que viajou até o último segundo possível antes que se desatasse a pandemia que a rigor nos trancou dentro de casa, ler Correntes de Olga Tokarczuk, publicado esse ano pela Todavia, com tradução de Olga Baginska-Shinzato, foi como voltar, um pouco e guardadas as proporções, à minha rotina de cuidar a previsão do tempo aqui e lá, contar meias e roupas íntimas, escovar os dentes em banheiros de estações rodoviárias e muitas vezes despertar sem saber onde estava.

Não sou tão nômade quanto a narradora desse romance fragmentado, mais velha do que eu e que afirma não ter sido treinada para profissão alguma. Apesar de já haver tentado estabelecer raízes, ela afirma não ter tido sucesso, e o próprio romance reflete esse desapego: “Aprendi a escrever em trens, hotéis e salas de espera. Sobre mesas retráteis de aviões. Faço anotações durante o almoço debaixo da mesa ou no banheiro. Escrevo sentada sobre as escadarias nos museus, em cafés, num carro estacionado no acostamento” (p. 27). Em uma sucessão de capítulos curtos, em Correntes passamos de relatos em primeira e terceira pessoa, de ilhas a barcos e metrôs de grandes cidades, de hoje ao século XVII. Uma única permanência é buscada, retomada, incessantemente: aquela dos nossos corpos, principalmente na velhice, à beira ou depois da morte, estes últimos transformados em relíquias religiosas, memento mori, e objetos de estudos de aulas de anatomia e de exibição em museus, e que mesmo assim muitas vezes acabam viajando, embalsamados dentro de frascos. Quando disse que Correntes me remetia “um pouco” à minha rotina, no entanto, foi porque minha leitura dele foi atravessada pela experiência da pandemia e por esse momento em que estamos contemplando, pela primeira vez, uma normalidade perto da antiga, seja lá o que isso quer dizer, para cada um de nós e sobre como passamos por esse período.

Como mulher estive sempre consciente do meu corpo: o corpo de uma mulher nunca é dissociado de quem ela é até ela se tornar, como Tokarczuk sinaliza duas vezes em sua narrativa, invisível ao envelhecer. O corpo de uma mulher é útil, descartável, uma commodity, uma limitação, uma transgressão e está sujeito a uma série de transformações que implicam uma variedade de sintomas com os quais os homens não precisam lidar. Essa hipervigilância em relação a nossos corpos – que vai de saber por que minhas gengivas estão sensíveis (um sintoma pré-menstrual), passando pelo incômodo de ser o único corpo desse tipo em um recinto, ao limite de se eu deveria mesmo estar sozinha em uma determinada rua em determinado horário – talvez tenha sido a salvação e ao mesmo tempo o inferno para muitas de nós durante a pandemia. Estar ciente de sintomas e do nosso entorno nunca foi tão importante, ao mesmo tempo que muitas de nós, quando não adoeceram, jamais tiveram tantos sintomas imaginários, possíveis alterações de ciclo e mudanças em nossos corpos, das mais profundas às mais superficiais; uma das preocupações veiculadas nos primeiros meses de claustro foi também, obvia e irritantemente, a de não engordar durante a quarentena para aquelas que puderam fazê-la, e meu Instagram foi bombardeado com perfis de receitas fit e de aplicativos de exercícios para se fazer em casa.

No entanto, para além da doença, houve outras dimensões das nossas relações com nossos corpos em meio à pandemia que foram especialmente dilacerantes: a impossibilidade do toque físico, de abraçar e beijar a quem queremos, e principalmente a de nos vermos ou àqueles a quem amamos em camas de hospital, sem a possibilidade de uma despedida física. Corpos perderam sua materialidade ao virar números, consumidos nos noticiários de fim de tarde, junto com o café, e hoje quando estão abaixo da casa de 500, os consideramos poucos. Nos habituamos, no primeiro ano de pandemia, a ver fotos e imagens aéreas de cemitérios com inúmeras covas abertas, de contêineres frigoríficos estacionados do lado de fora de hospitais, e pipocavam entrevistas de pessoas que não sabiam de quem estavam efetivamente se despedindo em enterros por conta de caixões lacrados e da abundância de cadáveres por enterrar. Em Correntes, essa angústia pela materialidade daquelas pessoas que já não estão aparece em três episódios distintos: o coração do compositor e pianista Frédéric Chopin, levado por sua irmã da França até à Polônia; os pedidos desesperados de Josefina Soliman ao imperador da Áustria Francisco I pela restituição do corpo de seu pai, um escravizado africano membro da corte de Viena e que, depois de morto, foi transformado em um espécime em exibição em um museu de história natural; e da relação do anatomista holandês Philip Verheyen com sua perna amputada, que conservava consigo na esperança de que fossem sepultados juntos.

Uma outra recorrência no romance é a questão do tempo, que pode ser esticado ou desaparecer por completo quando nos deslocamos em viagem, e aos lugares entre lugares, neste ínterim: “Quando viajo, desapareço do radar. Ninguém sabe se estou no ponto de partida ou de chegada. Será que existe algum ‘entre lugar’?” (p. 58), indaga a narradora. Esses entre lugares ou não lugares – a ideia de desaparecer, escapar – também são buscados ativamente por alguns de seus personagens: o capitão de uma balsa; uma dona de casa moscovita; Charlotta, a filha menos conhecida do anatomista holandês Frederik Ruysch, que contempla a ideia de se vestir de homem e embarcar em um dos navios da Companhia das Índias Ocidentais: “Ela seria um grumete, ninguém jamais notaria, pois é relativamente alta e forte, e além do mais, amarraria os peitos com uma faixa de pano” (p. 218). Lembrei-me das vezes em que estive em aeroportos e contemplei “errar” de avião, embarcar para outro destino sem avisar ninguém. Ou ainda, de quando me divertia ou divirto, com os usos equivocados de advérbios de lugar por parte de pessoas queridas, que nunca sabiam ou sabem direito onde eu estava ou estou, se lá, se aqui ou se no meio do caminho, e com outros que não sabiam ou ainda não sabem onde realmente moro. Minha hesitação anterior entre tempos verbais demonstra exatamente do quanto esse período de pandemia pode ser também um entre lugar, um entre tempo. Não tenho mais minha vida como era, não sei quando voltarei a tê-la, de modo que fica difícil saber como falar a respeito, em que tempo verbal, do mesmo jeito que falamos de uma pessoa incapacitada por uma doença, mas que ainda não veio a óbito.

No primeiro ano de pandemia, em que ainda não sabíamos ao certo com o que estávamos lidando, os dias eram idênticos, os fins de semana se mesclavam às terças-feiras por excesso ou falta do que fazer, horas silenciosas (ao menos no meu caso) se espichavam infinitamente sem que nada efetivamente mudasse. 2021, no entanto, o mais terrível desses dois anos, parece que passou como um espirro, um piscar de olhos, meia dúzia de e-mails respondidos. Presumo que tenha sido o costume adquirido com a nova rotina, por mais perversa que seja, como quando vamos a um lugar pela primeira vez e parece que levamos cinco horas, e o retorno parece durar cinco minutos, pois nosso cérebro já assimilou o que tinha que assimilar do caminho entre um ponto e outro. De muitas formas, excetuados os prazeres, a pandemia foi, é ou está sendo, como viajar.

 

 

 


REFERÊNCIAS

TOKARCZUK, Olga. Correntes. São Paulo: Todavia, 2021

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Capa do Livro. Editora Todavia.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “170”][/authorbox]

Related posts

Narrativa, linguagem e romance: notas sobre “O escritor morre à beira do rio”

Wesley Sousa
1 ano ago

Caos na escada rolante

Thiago Ronza Bento
2 anos ago

Pele negra, máscaras brancas e o clipe Hat-Trick

Jhon Lenon de Jesus Ferreira
3 anos ago
Sair da versão mobile