“É melhor prevenir que remediar”, diziam nossas bisavós, avós e mães pra nos convencerem a levarmos um casaco, um guarda-chuva e um spray de própolis a qualquer lugar que fôssemos. Algumas vezes levávamos um casaco no calor do verão e passávamos todo o dia como cabideiros ambulantes com uma roupa deslocada pendurada no braço ou amarrada na cintura e tínhamos de dedicar bons minutos para explicar a todos que chegavam o porquê de estarmos com um casaco mesmo fazendo 35 graus na sombra. Mas quando a peça de roupa ficava no armário o céu fechava e não só fazia frio mas, por capricho dos deuses, pegávamos um belo resfriado. O que me faz pensar que deus é mulher e lá de cima olha pra baixo e diz “deveria ter levado o casaco”.

De fato, o ditado tem razão, é mesmo melhor prevenir que remediar. O problema é que somos pegos de surpresa em alguns momentos em que um spray de própolis não muito nos ajuda. No início do ano de 2020 o mundo parou, e quando digo mundo, quero dizer fábricas, produção, serviços. Pela primeira vez percebemos uma ameaça próxima que podia tirar nossas vidas e as vidas de quem amamos, principalmente quem tanto buscou nos proteger. O covid-19 surgiu com sintomas parecidos a uma gripe, mas se alastrou como uma asfixia generalizada, que atacava os pulmões ricos e pobres, brancos e pretos, do norte e do sul. Sentimos o medo da morte nos quatro cantos no mundo e aplaudimos de pé profissionais que se arriscaram para cuidar de quem amamos.

O cenário do cuidado com o outro não demorou muito para se afastar como uma miragem, afinal o mundo estava parado e os pulmões ricos não estavam satisfeitos. Vimos logo que, enquanto lideranças sérias buscavam salvar vidas e defender o isolamento social, as mesquinhas buscavam salvar as engrenagens do capital, mesmo que sobre milhares de mortes. Em meio a crise da impotência que todos nós sentimos diante das atitudes nefastas desses desgovernos, vimos a área das Ciências Humanas, mais uma vez, sendo desmerecida de existência, pois não conseguimos com nenhuma de nossas melhores pesquisas de campo sintetizar a fórmula do remédio para o coronavírus, logo, não precisamos existir nesse momento, podemos ficar sem investimentos em virtude de melhores direcionamentos para as biológicas, que remediarão o problema. A injustiça nessa lógica é evidente. Não se pode cobrar das Ciências Humanas o antídoto para curar enfermidades do corpo e desmerecê-la por não o ser capaz. Esse não é nosso papel na sociedade. Somos responsáveis pelo pensamento crítico que fez o proletário perceber que é ele quem estava produzindo as riquezas, que fez com que com as mulheres lutassem pelos seus direitos, que fez os negros queimarem as senzalas e a diversidade surgir como fazendo ruptura a tradições que a aprisionava. Não descobrimos os remédios do corpo mas alimentamos a dúvida que quebra correntes e salva corpos que por vezes foram colocados para morrer.

Não é de se assustar que muitos querem nos tirar de cena novamente, pois desejam fazer os trabalhadores acreditarem que suas vidas valem menos que seus empregos. Mas são tolos os que pensam que nascemos e nos fechamos nas academias. O benefício da dúvida se alastra nas ruas, nas escolas, nas músicas, nos filmes, nas favelas. É registrado nas revistas e artigos mas também em projetos de lei em que quebra silêncios e tira mordaças afrontando quem as colocou. Continuamos pensando na crise, pois somos nós que furamos as estruturas com as mudanças. Não temos o remédio, mas prevenimos muita dor quando fazemos a sociedade questionar sobre seus governantes e exigir seus direitos, mesmo que em momentos de rigidez. A dúvida foi lançada, como disse Drummond, “uma flor nasceu na rua […] sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor” (ANDRADE, 2002)

 

 

 


REFERÊNCIA

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

 

 

 


Créditos na imagem: Novo mural de Banksy em Bristol, na Inglaterra — Foto: REUTERS/Rebecca Naden.

 

 

 

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