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Resenhas

Entrevistas com o último Lukács

A presença de Lukács no Brasil não é desconsiderável. Sua influência é nítida em nomes como Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto[1], que foram talvez seus mais contumazes divulgadores no Brasil ao longo da segunda metade do século XX por meio de traduções e da tentativa de elaborar um pensamento fortemente inspirado pelo filósofo húngaro. Não se poderia deixar de lembrar também os nomes de José Chasin e Esther Vaissmann, que, já no campo mais estritamente universitário, trabalharam durante anos com o pensamento do velho Lukács. Também se pode observar (como seria de esperar no caso de um pensador tão profundamente marcado pela crítica e teoria literária) sua presença em Antonio Candido e Roberto Schwarz (2012, p. 13), cujos métodos de leitura da literatura nacional passam, em larga medida, pela mobilização de um conceito de mimesis herdado da tradição crítica a que Lukács pertence como pensador central.

Na última década, com a publicação sistemática das obras lukacsianas pela Boitempo, esse trabalho ganhou novos contornos, uma vez que se passou a ter acesso às suas obras em traduções de reconhecido prestígio e em edições feitas com o cuidado pelo qual a editora é conhecida. Publicou-se o monumental Para uma Ontologia do Ser Social (2012-2013), além de seu famoso Prolegômeno (2010), O Romance Histórico (2011), O jovem Hegel (2018), entre outros. Além disso, a organização do Instituto Lukács (fundado em 2012) e do Curso Livre Lukács (2015) indicam o crescimento do interesse sistemático pelo autor e por sua obra, especialmente seu trabalho maduro, produzido nas últimas décadas de sua vida.

Autor já conhecido no Ocidente desde sua juventude, quando da ascensão do Nazismo, Lukács opta não pelo exílio nos países capitalistas (como Adorno, Thomas Mann e outros), mas vai à Moscou, indicando uma postura que manteve até o final de sua vida e que é expressa nas entrevistas sobre as quais iremos nos debruçar nesta resenha: o pior socialismo é melhor que o melhor capitalismo (LUKÁCS, 2020, p. 42). O fato de que se mantém fiel a seu apoio à Revolução de 1917 e que opta por lutar por dentro contra as distorções stalinistas ao invés de refugiar-se no Ocidente marca o ostracismo de sua obra de madurez, tanto de sua crítica literária dos anos de 1930 e de sua Estética de 1960 (cuja publicação da Boitempo já anunciou para os próximos anos) quanto de sua Ontologia. O que caracteriza a recepção brasileira ao pensamento lukacsiano é exatamente o fato de que se tem redescoberto não o jovem Lukács hegeliano de Teoria do Romance (1920), ou o marxista ainda em vias de formação de História e Consciência de Classe (1929), mas sim o velho Lukács (2020, p. 29), que, como ele mesmo diz em outro momento de suas entrevistas, só começou a realmente escrever sua obra depois dos setenta anos. A recepção internacional a essas obras é ainda muito precária e citamos apenas o fato sintomático de que, até hoje, a Ontologia não conta com uma tradução completa para a língua inglesa. Diante desse ostracismo, sendo muitas vezes considerado um pensador anacrônico e superado pelas tendências teóricas que emergem nos anos 1960 (que Carlos Nelson Coutinho, profundamente inspirado pelo mestre húngaro, analisou em seu Estruturalismo e a miséria da razão (1972), numa tentativa de dar continuidade ao trabalho do próprio Lukács em seu livro A destruição da razão (1954), cuja tradução e publicação o Instituto Lukács levou a cabo), a presença lukacsiana no Brasil é uma peculiaridade de nosso ambiente intelectual.

O penúltimo livro publicado nessa empreitada editorial da Boitempo, Essenciais são os livros não escritos, é exatamente um conjunto de entrevistas concedida por um Lukács octogenário, mas extremamente ativo. É o autor que está trabalhando em sua obra como se não estivesse no último quartel de sua vida. É descrito por um dos entrevistadores assim: “Lukács está vestido para o trabalho. Blusa escura, paletó cáqui. Pequeno e magro, dá a impressão de dispor ainda de uma vida inteira diante dele. Esquecemos que ele tem 84 anos” (LUKÁCS, 2020, p. 30). As entrevistas são marcadas pela lucidez de suas respostas e pela coerência de posição que adota em torno dos mais variados temas, indo desde questões mais conjunturais das reformas econômicas em curso até problemas ligados à filosofia estética. Poder-se-ia reduzir a coerência de suas intervenções, correndo o risco de todas as reduções, ao que ele mesmo chama de renascimento do marxismo. Suas preocupações giram em torno de tirar o marxismo do campo dogmático a que o stalinismo o reduziu e de promover reformas institucionais nos países do campo soviético que apontem também para a correção dos erros políticos e econômicos impostos pelo enrijecimento teórico. Essa renovação assume sempre a forma da retomada aos textos de Marx.

O stalinismo, entendido como submissão da estratégia à tática e das perspectivas gerais do socialismo à estratégia (LUKÁCS, 2020, p. 60), produz a submissão da compreensão concreta da realidade ao mais rasteiro politicismo, o que impede o enfrentamento das questões fundamentais para o real progresso político. Assim, sua defesa das reformas econômicas que estavam em curso na Hungria e na Tchecoslováquia é sempre feita no sentido de que elas apontam para a superação desse regime de coisas e é também sempre acompanhada da nota de que, se a essas reformas não se seguir um processo de democratização do socialismo e de participação das massas operárias, elas não conseguirão alcançar o objetivo imaginado. Desfaz-se aqui o mito de um velho Lukács cegamente fiel aos regimes soviéticos que a preferência do pior socialismo sobre o melhor capitalismo pode ensejar. Sua defesa dos resultados da Revolução de Outubro não é, em nenhum momento, acrítica. Seu posicionamento incide, inclusive, sobre a própria crítica rasteira ao stalinismo, que se mantém presa ao problema do “culto da personalidade”. É que esse velho Lukács sabe claramente que a distorção a que o socialismo soviético foi submetido ao longo das décadas de 1930 e 1940 não foi um problema de superfície, mas sim de seu real desenvolvimento concreto, um desvio (historicamente determinado pelas circunstâncias em se deu) que não estava relacionado à personalidade de Stalin, mas sim aos rumos seguidos pelas lutas de classe no século XX.

A atualidade dessa perspectiva não poderia ser maior, uma vez que a figura de Stalin é retomada nos meios de comunicação liberais brasileiros exatamente para fugir do debate à crítica ao pensamento liberal[2]. A história, tomada de um ponto de vista personalista, é reduzida às escolhas feitas por determinados líderes políticos em determinadas circunstâncias históricas e não entendida como um processo de desenvolvimento contraditório e dialético que as figuras em proeminência, mais do que tudo, representam. Essa é a lógica, por exemplo, do aparecimento, no romance histórico realista, das grandes figuras: não como protagonistas marcadas por um voluntarismo que tudo explica, mas sim como resultado e fator catalisador das tendências que se desenvolvem a partir da síntese das escolhas individuais tomadas por cada um dos membros da sociedade (LUKÁCS, 2011, p. 46-84). É essa concepção materialista de história que impede o velho Lukács de cair na retórica da crítica liberal que, ao criticar a figura de Stalin, rechaça a possibilidade de transformações concretas na realidade concreta. Isso por mais que ele possa ser criticado dos mais variados pontos de vista.

Se vê no socialismo real os problemas da burocratização e a democratização como caminho preferencial para a resolução dos problemas socioeconômicos, Lukács tem clareza que foi a União Soviética stalinista, apesar de todas suas contradições, que, segundo o autor impediu que a cultura ruísse diante dos dois maiores perigos enfrentados durante seu período de vida: Hitler e o american way of life (LUKÁCS, 2020, p. 161-62). Contra esses dois perigos fundamentais, teria sido a União Soviética sob Stalin que produziu as forças sociais de verdadeira oposição, fazendo uma campanha militar que realmente conseguisse derrotar o regime nazista e mantendo um poderio bélico atômico capaz de impedir a expansão cultural dos americanos ao final da Segunda Grande Guerra. Sem negar os problemas, Lukács não se esquece de contar a história sem apagar as conquistas que o regime, condenado por ela, conseguiu realizar. Longe, portanto, da retórica liberal a que estamos tão acostumados.

O velho filósofo, retirado em seu apartamento em Budapeste, mantém também os olhos atentos aos acontecimentos do mundo ocidental de seu tempo, e, nesse sentido, chama muita atenção seu diagnóstico do capitalismo do século XX. Afirmando sempre que seria necessário um teórico capaz de, usando o método histórico-dialético de Marx, reescrever O Capital chamando atenção para os novos problemas, em vários momentos Lukács aponta algumas diretrizes para esse trabalho. De um lado, a expansão do capital sobre os serviços e a alteração fundamental que isso representa para os conflitos sociais: o estranhamento, que antes se manifestava na falta de tempo livre do trabalhador, ou seja, no mais-valor absoluto, coloca-se agora, numa era do mais-valor relativo, no uso que é feito desse tempo (LUKÁCS, 2020, p. 24-25). A expansão do capital e o american way of life apropriaram-se do trabalhador em sua totalidade, usando seu próprio tempo livre, sua capacidade de consumo, para sua reprodução. Os problemas sociais, portanto, estão todos recolocados e a cultura assume um papel de relevo, uma vez que ela se transforma, mais do que nunca, em campo de disputa (LUKÁCS, 2020, p. 96). Por outro lado, surgem movimentos de revolta e resistência contra a generalização dessa forma de vida: os estudantes, os negros e o Vietnã. Assim como o modelo stalinista entra numa profunda crise, também o ocidente está em crise e sua manifestação é nítida na revolta dos estudantes (especialmente em 1968), no problema da entrada dos negros na sociedade americana e na oposição contra a Guerra do Vietnã (LUKÁCS, 2020, p. 146). Embora teça críticas às formas como esses movimentos organizam-se, Lukács é, em larga medida, receptivo e compreende que seu significado e a manifestação da insatisfação com a vida tomada em sua integralidade pelo capital, com a supremacia do mais-valor relativo e suas consequências. Esses movimentos, embora revoltem-se contra o problema, padecem de sua restrição ao espontaneísmo dos happenings (LUKÁCS, 2020, p. 66), a perspectiva de Lukács é exatamente conseguir abrir caminho para a ação organizada do partido em seu sentido leniniano.

No conjunto desses problemas, que aparecem ao longo de todas as 16 entrevistas várias vezes, pode-se ver claramente o que o filósofo entende por renascimento do marxismo. Esse leitmotiv de suas intervenções, a necessidade de referir-se constantemente ao texto de Marx e apontar a vinculação de seu diagnóstico com os três clássicos do materialismo histórico-dialético aparece como um problema exatamente de método e não de conteúdo. A renovação ideológica, sem a qual Lukács não imagina ser possível constituir-se uma séria oposição contra o avanço do capitalismo e uma reforma geral da sociedade socialista, não se dá pela repetição dos diagnósticos, mas pela insistência no método, em seu primado ontológico. Assim, o capitalismo alterou-se profundamente, mas é ainda capitalismo e está à espera de um teórico capaz de desvendá-lo; o estranhamento também altera-se na mesma proporção, mas permanece sendo o estranhamento e produzindo a falta de sentido da vida contra a qual se revoltam os jovens de todo o mundo. O reencontro com Marx significa a revitalização das capacidades ideológicas da oposição ao capital e é condição sine qua non para sua completa superação.

Chama atenção, ainda, a entrevista sobre o cinema e sobre o problema cultural nos países socialistas. Depois de já ter publicado sua Estética em 1963, as intervenções assumem aqui formas cristalinas e são sempre cirúrgicas. Tecendo comentários elogiosos a dois cineastas húngaros (Jacsó e Kovács), Lukács levanta questões fundamentais tanto para o pensamento estético quanto para sua relação com a vida social. As questões relacionadas à forma cinematográfica chamam atenção. Um exemplo disso seria o lugar da palavra e da representação dos problemas intelectuais no cinema: “A meu ver, os problemas intelectuais, no sentido do conteúdo, são indispensáveis no filme. Mas devemos procurar os meios para expressá-los. Parece-me que ainda não conseguimos encontrá-lo” (LUKÁCS, 2020, p. 83). Nesse comentário, o problema da técnica e da forma artística está colocado de maneira cirúrgica: o cinema, pelo material que elabora e pela técnica que desenvolve a partir desse material, precisa encontrar maneiras adequadas de formalizar a realidade de maneira cada vez mais eficaz. Assim, no teatro, a palavra é uma forma extremamente eficaz de criar e elaborar o pensamento; no cinema, segundo a hipótese de Lukács, não. Assim, comentando o Shakespeare de Laurence Olivier, o filósofo húngaro observa que as palavras são desnecessárias. O texto shakespeariano, que no teatro é essencial para o efeito da obra, na gravação cinematográfica, pela natureza do material (som e imagem em movimento, uso de câmeras etc.), é supérfluo e poderia ser suprimido. Ou seja, o cinema precisa encontrar uma técnica capaz de formalizar o problema do pensamento.

Ainda nesse campo, chama atenção do leitor informado de que estamos diante de um pensador octogenário a atualização com que Lukács comenta as produções culturais de seu tempo: não apenas no caso do cinema, cuja linguagem se desenvolveu quando ele já estava vivo, ou seja, um fato de sua vida adulta, mas também da literatura. Lembra sempre um ensaio seu sobre Soljenitsin, apontando a forma como o autor trabalha o tipo humano que se desenvolve sob o stalinismo. Não se trata de um comentador apenas de obras clássicas, mas sim de um sujeito disposto a sempre reformular seu pensamento quando se coloca diante de obras que o obrigam a reestruturar sua forma de pensar.

Mas não apenas como crítico literário ou filósofo interessado nas questões estéticas Lukács comenta esse quadro de problemas: eles são também pensados em seu aspecto social e, inclusive, econômico. As reformas econômicas em curso nos países socialistas nesse momento pareciam abrir a possibilidade da capitalização dos serviços culturais, contra a qual Lukács se levanta de forma veemente, defendendo, por exemplo, a gratuidade de museus, os preços baixos de livros etc. E, nessa defesa, ele evidencia outro aspecto de sua defesa do pior socialismo como sistema melhor do que o melhor capitalismo: a cultura é parte essencial da educação do povo num processo revolucionário, que poderia mesmo ser reduzido à elevação cultural do povo como sintoma da emancipação do homem. Oferecer acesso aos museus, à tradição literária e musical de toda a humanidade, ao acervo de artes plásticas das mais diversas tradições etc. funcionam como forma de elevar o nível cultural do povo e de produzir, usando a metáfora de Lênin que Lukács (2020, p. 95) retoma, o cozinheiro que seja capaz de administrar o Estado. Aqui, mais uma vez, estamos diante de um conjunto de questões que remontam praticamente a todo seu desenvolvimento intelectual: a defesa de uma forma eficaz, como vimos no caso da elaboração intelectual e do uso da palavra no cinema, está determinada pela necessidade da emancipação do homem, processo em que a cultura desempenha um papel fundamental.

Esse conjunto de 16 entrevistas, apresentado e traduzido por Ronaldo Vielmi Fontes, junto das Conversações com Lukács e Pensamento Vivido, ambos publicados recentemente (2014 e 2017, respectivamente) pelo Instituto Lukács, representam um roteiro introdutório ao pensamento maduro de um dos principais filósofos do século passado. Colocam-nos diante de uma multiplicidade de assuntos e problemas que, como tentamos mostrar, remontam a toda a carreira intelectual de Lukács e, por isso, à história do século XX como um todo. Representam um pensador imerso em seu trabalho e abatido pelo tempo, a quem parece insistir em vencer. No final das entrevistas, acompanha o volume uma cronologia do autor, o que nos lembra a falta de um trabalho biográfico de fôlego sobre Lukács, cuja vida é quase tão interessante quanto seu pensamento[3]. Essa falta, que esperamos ver sanada nas próximas décadas, é tenuemente abrandada pela publicação desses documentos que nos apresentam um Lukács de carne e osso, um sujeito

 

 

 


REFERÊNCIAS

CONGDON, Lee. The Young Lukács. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011.

LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

LUKÁCS, György. Essenciais são os livros não escritos: últimas entrevistas (1966-1971). São Paulo: Boitempo, 2020.

NETTO, José Paulo. Introdução. In: LUKÁCS, György. Para uma Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 9-21.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Editora 34, 2012.

SAYURI, Juliana. “Legado de Stalin volta a inflamar debates na esquerda”. In: Folha de São Paulo, 19 de Dezembro de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/12/legado-de-stalin-volta-a-inflamar-debates-na-esquerda.shtml. Acesso em 01 de outubro de 2020.

ZANINI, Fábio. “‘Stalin não foi a reencarnação de Lúcifer’, diz influenciador de Caetano Veloso”. In: Folha de São Paulo, 17 de Setembro de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/stalin-nao-foi-a-reencarnacao-de-lucifer-diz-influenciador-de-caetano-veloso.shtml. Acesso em 01 de outubro de 2020.

 

 

 


NOTAS

[1] Sobre isso, cf. NETTO (2018).

[2]Cf. SAYURI (2019) e ZANINI (2021) como exemplos.

[3] Único esforço no sentido de construção de uma biografia de Lukács, o trabalho de Lee Congdon (2011), The Young Lukács, nunca foi publicado no Brasil.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação.

 

 

 

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