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Ensaios e opiniões

Esboço para uma fenomenologia da gambiarra

 

não ato

nem desato

desa

r

t

iculo

 

Chacal

Pra quê?, Preço da passagem (1972)

mesmo que tivéssemos uma enorme luneta

a viajar por nossas veias

nunca nos enxergaríamos a olho nu

logo nós

seres tão vestidos

mas um dia o pano cai

 

Miró da Muribeca

último ato, Ilusão de ética (1995).

 

A gambiarra é a técnica do mundo da vida*. Atesta, ao mesmo tempo, para a capacidade criativa do homem a partir daquilo que ele dispõe concretamente em seu cotidiano e para seu caráter de imperfeição enquanto homo faber. O homo gambiarra não é o homem que produz realidades e coisas de maneira ativa, mas aquele que as conserta e adapta às circunstâncias contingentes. A gambiarra não é somente uma técnica derivada de conjunturas materiais, isto é: mais ou menos propensa em determinadas sociedades, senão uma compensação da defasada condição humana. Embora poderíamos afirmar que a condição de homo gambiarra tem sido encoberta pelo avanço desigual e pela sofisticação tecnológica dos universos industrial e pós-industrial (biotecnologia, nanotecnologia, sistemas autônomos de inteligência artificial, big datas, etc.). Contra qualquer absolutização do ser humano através da técnica, haverá uma propensão irresistível à gambiarra. O homem não controla plenamente seu destino por ferramentas que dispõe a priori, ele inventa seus artifícios técnicos na pressão dos acasos que surgem repentinamente, e produz seus futuros em cada um desses acidentes. A gambiarra é a oficina do Ser.

A gambiarra é o elogio da atualização contra toda obsolescência programada das coisas-do-mundo. Mas também é um elogio da obsolescência contra toda atualização programada. Ela opõe a compra e a produção ao conserto e a adaptação. A gambiarra tem uma relação ambígua com o histórico: ela manifesta-se enquanto a técnica que atenta (intencionalmente ou não) para a solução temporária em virtude da escassez dos meios para adquirir determinado produto (sabe da finitude das coisas); mas por outro lado, ela é curiosamente a-histórica, pois recusa que haja um término da vida útil dos objetos, prolongando indefinidamente suas utilidades. Trata-se de um restauro em que sua finalidade principal, via de regra, é a conservação. Mas que, ao mesmo tempo, não pode escapar da transformação sútil. Assim, o histórico e o a-histórico estão agindo mutuamente contra qualquer dinâmica irrefreável de progresso. Vocábulo que não pode definir ou delimitar a dinâmica do desenvolvimento da gambiarra. Sua capacidade produtiva não está atrelada ao inédito ou ao antigo; não totalmente a cada uma dessas dimensões. A gambiarra não pode desfazer-se das experiências passadas para criar expectativas futuras. Seja em relação ao objeto em si, seja em relação a transmissão dessa técnica cotidiana. Ela sempre terá que projetar sua criação partindo do referente estável em momentânea instabilidade: um objeto previamente defasado ou deslocado. Defasado significa: objeto que não atente mais as necessidades daquele que o utiliza, mas – contra qualquer descarte – tem as funções restauradas total ou parcialmente, e, em última instância, até mesmo potencializadas. Deslocado significa: o objeto que possui sua utilidade primeira, aquela que vem da fábrica ao consumidor prescrita em um manual, realocada – contra qualquer aquisição desnecessária ou/e financeiramente restringida – em outras tarefas que não aquela que fora concebida. Se a antiguidade da gambiarra é tanto objeto defasado como objeto deslocado (mas sempre um objeto), o elemento de novidade mais significativo – comum a ambos – é estético. Embora seja evidente que há novidades nos modus operandi dos objetos, em especial daquele deslocado de sua função primária. Tão pouco a gambiarra preocupa-se com as noções de originalidade e falsificação, embora ela possa ser fonte de abundante originalidade. Há duas consequências óbvias, mas importantes de sublinhar sobre a gambiarra: ela pode alcançar tanto uma realização bem-sucedida, como a realização malsucedida.

Gambiarra é gíria genuinamente brasileira, e deve encontrar certa dificuldade para ser versada em outras línguas. Ela expressa o fato de que o brasileiro tem um fascínio pela novidade mas, no geral, sempre está preso ao seu passado. Isso para bem ou para mal. Todavia, gambiarra pode ser expandida como fenômeno universal e uma constante antropológica, sem depender da especificidade de formações socioculturais. Pelo menos não a priori, pois seria engano crasso negar totalmente que a gambiarra também é praticada pela pressão que fatores socioeconômicos exercem sobre os indivíduos. Voltando: a gambiarra é uma improvisação destemida, que brinca com os riscos. Um chuveiro, por exemplo, quando é mal instalado, coloca em proximidade dois elementos que são demasiadamente perigosos: água e eletricidade. O desastre da gambiarra é o curto-circuito. A gambiarra produz uma estética peculiar – que beira o desagradável –, mas que confronta os produtos minimalistas da técnica atual. Os fios evidentes das ligações elétricas, os tijolos sem reboco, os remendos de fita que resolvem qualquer trinco, o prego que segura a alça arrebentada do chinelo, a customização de roupas, a desordem de cores e de formas, a superfície não linear, a ausência de simetria nas construções. Algo interessante de observar, entretanto, é certa popularização da gambiarra como sinônimo de praticidade, atalho – é certo que, por vezes, duvidosos. Tutoriais têm viralizado em redes sociais como o Tik-Tok, o Instagram e o YouTube, ensinando “gambiarras”. Esses tutoriais podem indicar a comprovação de que o universo digital expandiu as fronteiras da descrição pejorativa da gambiarra, quer dizer: a gambiarra expressa a capacidade de realizar tarefas com autonomia em relação aos terceiros prestadores de serviços. Truques de culinária, cuidados pessoais, limpeza doméstica, técnicas de marcenaria e consertos de eletrônica. A gambiarra é um truque: técnica de simplificação do cotidiano em compensação da complexidade tecnológica ou da carência de tempo. Gambiarra é a engenharia do mundo da vida.

Não há educação formal que ensine gambiarras. Não se estuda em universidades ou nas escolas. Dizer que a gambiarra é a técnica do mundo da vida significa que ela é a forma reduzida e ínfima da técnica como conhecemos, isto é: sem grandes amarras de significação metafísicas. A gambiarra é ato pré-teórico: não necessita manual. Estão envolvidos em sua criação atributos como curiosidade, intuição, inspiração, perspicácia e bom senso. Por isso é que a educação para a gambiarra se faz, na prática, através da tentativa e do erro – de modo solitário –, em desvendar novas utilidades para o objeto já previamente concebido. Ver, ouvir e aplicar são fundamentais em relação ao ler e abstrair. Não haver manual implica que suas técnicas serão apreendidas em simultâneo a composição do produto final, e não a priori. Gambiarra é desvelar caminhos. Mas a gambiarra também demanda um tipo específico de educação que aparenta ser menos solitária: tutoriais. Trata-se de uma educação boca-a-boca que, impreterivelmente, precisa da experiência de outro indivíduo (tutor) para se realizar. Quando o pai ou a mãe ensina seus filhos os temperos, as artimanhas e os segredos de uma comida saborosa. Quando os filhos ensinam seus pais como acessar a Internet. São inúmeras as tarefas e ensinamentos que compõem ambientes cotidianos como as casas, as ruas, os pátios da universidade, as praças, que podem ser vistas como tutoriais. Contudo, a educação por tutoriais foi não só ampliada, mas modificada pelo mundo digital com suas redes sociais que privilegiam o audiovisual.  E nesse sentido, ela ainda mantém-se solitária e envolve um ver, ouvir e aplicar, sem qualquer diálogo físico mais profundo como a mediação do ensino. De qualquer maneira, estão presentes propensões básicas da gambiarra: o improviso, a adaptação, o conserto e a simultaneidade entre produzir e raciocinar. Duas ações inseparáveis. A gambiarra é a ciência do mundo da vida.

A capacidade quase que acidental de produzir realidades e coisas a partir da intenção de adaptar ou consertá-las. Essa é a genialidade cômica da gambiarra. O ser humano que performa uma gambiarra está ciente da possibilidade de falha, mas prefere a falha em vista, é claro, da impossibilidade material do consumo. Essa projeção social e econômica da gambiarra, todavia, provém do instinto pelo reparo que temos ao visualizar algo estranho às características comuns de funcionamento. Não há pessoa que veja algo defasado e não o alcance para compreender seu erro e tentar modifica-lo. Embora, de fato, isso aconteça em intensidade diferentes. Não parece haver muita coisa a ser perdida quando se executa a gambiarra, pois o que está perdido é objeto completamente defasado. Por essas e outras razões, a gambiarra é mais empolgante (no sentido de um fazer por si próprio que pode dar certo) do que decepcionante (aquilo já estava quebrado).

A gambiarra não faz promessas imensuráveis ao ser humano: a imortalidade. Ela tão só assegura a permanência do homem em seu cotidiano onde convivem simultaneamente repetição e mudança, estragos e reparos, perfeição e imperfeição, utilidade e inutilidade. Günther Anders acusou que a tecnologia, a partir da invenção dos armamentos atômicos, nos destinou a viver a latente expectativa do fim dos tempos. Ao passo que ela também procurou – talvez pela fascínio irrefletido das produções tecnológicas no mundo da vida – amenizar a presença desse horizonte em nossa vida, privando nossa aptidão de imaginar suas consequências devastadoras. Estamos enclausurados em realidades e linguagens que as máquinas e seus operadores produzem. Anders chamou isso de discrepância prometeica.1 A gambiarra pode ultrapassar esses diagnósticos. Ela é a tecnologia que precisa de um tipo sofisticado de imaginação para existir: a imaginação bate-pronto. Contra o pensamento programado, teleológico e unidimensional, todo futuro poderá ser adaptável pela gambiarra circunstancial. A gambiarra é a alternativa ao fim dos tempos.

Há uma relação íntima entre o homem e a natureza no cerne da gambiarra como a técnica do mundo da vida. Contra uma relação predatória do homem com a natureza por intermédio da técnica, gambiarra é também reciclagem. Sua matéria-prima é o lixo descartado pela tecnologia de ponta, ou melhor: aquilo que é demasiado simples e escapa a qualquer tentativa de refino – ou seria tão refinado que escapa a tentativa de simplificação? Esse lixo apelidamos de sucata, digna de uma descrição por inteiro. A gambiarra compõe por meio do que está decomposto. Ela produz coisas baseada no que já foi dotado de grande estima, mas hoje encontra-se desprezado; algo que no passado constituiu o futuro mais provável e, no entanto, ligeiramente foi substituído por uma outra utopia do homo faber. Contra finalidades passageiras, a gambiarra é a coleta dos restos e o retorno dos futuros descartados.

Falamos somente superficialmente do elemento estético da gambiarra, destacando o seu caráter desagradável – sem desmerecer suas composições, ao contrário, enfatizando-as frente o minimalismo contemporâneo. A gambiarra é densa no quesito estético também porque constitui uma forma de criação artística: poética, visual e musical. Nesse sentido, ela é produtora intensa de inovação. Essa imaginação bate-pronto é presente em recitais de poesia, no teatro e nas rimas de hip-hop improvisadas, por exemplo. Teatro é a mistura de emoções e atmosferas instantâneas e dispersas que precisam ser agrupadas rapidamente, como uma gambiarra que enxerga unidade em elementos aleatórios. Poesia: trabalho árduo de mexer e remexer versos e estrofes, ler e reler seus próprios poemas, tal como a música: compor e decompor. A sucata da gambiarra artística (o objeto referencial deslocado ou defasado de suas funções primeiras) é a linguagem. Os sons e posições do corpo empregadas para realizar alguma atividade (o manejo da voz, da caligrafia, o estalar dos ossos, as acrobacias e alongamentos, a batida em certa região corporal, etc.). Essas linguagens são convertidas em outras linguagens, uma atualização de formas literárias e formas de atuação, do léxico corriqueiro e, no limite, de aspectos biológicos e físicos do corpo humano. Penso muito nas realidades que somos capazes de produzir quando vejo o frescor e a renovação performadas por músicos experimentais como Tom Zé; pelo manuseio da guitarra elétrica por alguém como Jimi Hendrix ou Jimmy Page do Led Zeppelin, por uma banda como os Mutantes; quando Hermeto Pascoal conecta-se com a natureza (sem transformá-la em produto) e com seu corpo para emitir ritmos surpreendentes; nos organizados ruídos vocais do beatbox do hip-hop; na discotecagem a partir do arranjo das ranhuras da agulha nos discos de vinil; nas gambiarras distópicas do cinema de David Cronenberg, aquelas de Crimes of the Future; na possibilidade de que grandes obras (pinturas, filmes e músicas) foram tramadas por gambiarras aplicadas em seus equipamentos. A gambiarra é a técnica da experimentação, por isso não tem nada a perder.

 

Mosaico com algumas “gambiarras”. Montagem feita pelo autor a partir de reproduções disponíveis na Internet

 

***

Link para acessar o interessante site da Orquestra de Sucata, que propõe uma transformação de materiais recicláveis em instrumentos musicais alternativos: https://orquestradesucata.com.br/

* Este ensaio é um experimento de descrição fenomenológica a partir de contribuições da antropologia filosófica. É evidente que há, nas minhas considerações, ideias derivadas de outros autores. Como nossa intenção é descrever e não analisar ou conceituar, nestas linhas não estarei preocupado em rigorosamente expressar inúmeras citações e referências. O ensaio parece ser o âmbito ideal para uma boa descrição, todavia, é preciso entender o que ensaio e descrição significam formalmente, sem que o texto perca sua credibilidade de antemão. De todo modo, alguns autores e leituras que possuem seus traços presentes no texto são: Odo Marquard, Günther Anders, Vilém Flusser, Arnold Gehlen, Heidegger e Husserl. Também relacionamos nossa descrição da gambiarra à ideia de atualização, que vêm sendo desenvolvida pelos historiadores brasileiros Mateus Pereira e Valdei Araujo.

 

 

 


NOTAS

1 ANDERS, Günther. Teses para a era atômica. Tradução: Alexandre Nodari e Déborah Danowski. Revista Sopro, nº 87, abril de 2013.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Gambiarra 25, BLOG DO MARDEMES, O mundo MÁGICO da engenharia.

 

 

 

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