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Fausto lê Olavo

FAUSTO, Ruy. Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, versão ebook.

 

“Uma das tendências da esquerda nascida na Rússia, no início do século XX, e que se tornou mais ou menos hegemônica na esquerda mundial a partir da segunda ou terceira décadas do mesmo século, conduziu a um resultado catastrófico. Ela nasceu de um partido autoritário que, depois de algumas peripécias, deu origem a um Estado totalitário (o que significa: um Estado em que se negam todas as liberdades civis e políticas e que tem como projeto uma dominação total do indivíduo), e, mais tarde, a um sistema de Estados totalitários. O balanço da experiência totalitária de esquerda é o de muitas dezenas de milhões de mortos, principalmente camponeses, sendo os pontos altos desse massacre a fome stalinista dos anos 1930, que atingiu os camponeses da Ucrânia e do sul da Rússia, e o ‘Grande Salto Para a Frente’ (projeto delirante de crescimento econômico e industrialização hiperbólicos) de Mao Tse-tung, entre 1958 e 1961. Pode-se acrescentar ainda o ‘grande terror’ na União Soviética, nos anos 1930; a Revolução Cultural Chinesa, que começa em 1966 e cujos prolongamentos vão até a morte de Mao, dez anos depois; e, last but not least, a façanha sangrenta de Pol Pot e companhia, que resultou em por volta de 2 milhões de mortos, mais ou menos um quarto da população do Camboja”.

 

A citação acima não deixa dúvidas de que, para Ruy Fausto, os Caminhos da esquerda passam por uma crítica ao totalitarismo comunista e por uma vigorosa defesa do pluralismo e da tolerância. Tal empreitada também mapeia os riscos da democracia brasileira frente a radicalização da direita. Como se trata de uma obra publicada em 2017, antes de Olavo de Carvalho, expoente máximo desse último segmento político, ganhar notoriedade e ser alçado à condição de conselheiro do presidente da República, inclusive no que diz respeito à indicação de ministros de Estado, a análise de Fausto apresenta a vantagem de não estar contaminada pela polarização atual.

Aos interessados em uma leitura crítica do olavismo, Ruy Fausto oferece um roteiro a partir da perspectiva da esquerda democrática e avessa a totalitarismos. Na parte do livro dedicada a esse tema, sublinha que os intelectuais da extrema-direita são caracterizados “pela extrema violência do tom do que dizem ou escrevem”. Não por acaso, “um número importante dos seus representantes veio da esquerda ou da extrema esquerda” totalitárias. Embora tenham mudado de lado, mantêm a intolerância de sua formação inicial. Fausto não é claro ao atribuir a Olavo esse tipo de trajetória. Apenas a sugere, vinculando-o em seguida a outras tradições intelectuais, algumas delas conservadoras e espiritualistas, como a “um dos seus ídolos, o filósofo francês Louis Lavelle”.

Fausto também faz análises pontuais, como, por exemplo, a do livro O Jardim das Aflições, em que Olavo de Carvalho trata da relação entre “Marx e Epicuro na base da atitude que ambos teriam em relação à prática”.  A analogia entre esses dois autores é considerada “mais que duvidosa”, pois “Olavo de Carvalho não hesita em pôr nas costas do epicurismo (e, portanto, indiretamente também de Epicuro) a responsabilidade pela justificação das atrocidades do regime comunista”.  Olavo chega a afirmar que o “inferno soviético” é “uma herança mórbida que, através de Marx, veio do epicurismo”. Perante tal afirmação assombrosa, Ruy Fausto sentencia ironicamente: “Pobre Epicuro!”. Outras interpretações impactantes, mas sem rigor, são identificadas. Segundo Fausto, o que Olavo “diz de Hegel não é melhor. Sem que a sua leitura de Hegel seja pura e simplesmente a leitura vulgar, ela é – apesar das aparências – muito superficial”. Mais ainda: “O autor não entende nada de Lógica de Hegel, nem da dialética hegeliana”, completando: “É verdade que há muitos outros que também não entendem dessas coisas, mas pelo menos não ficam arrotando sabedoria”.

Fausto eventualmente reconhece o valor intelectual de escritos de Olavo, afirmando “que, de vez em quando, estudando seus textos, topamos com algum desenvolvimento interessante”, como no caso de sua análise sobre “os diferentes ateísmos”. O reconhecimento desse valor é importante, porque mostra que Fausto faz uma análise científica e não ideológica do autor em foco. Em certo sentido, Olavo de Carvalho pertence a um movimento mais amplo de jornalistas que se destacam no mundo cultural, dando origem aos jornalistas-filósofos, jornalistas-historiadores, etc. Esses profissionais sobressaem pelo estilo da escrita, principalmente em sua tradição polemista. Não por acaso, apesar de pertencerem a diferentes gerações e possuírem trajetórias intelectuais distintas, a ascensão de Leandro Narloch, e da história politicamente incorreta, é paralela à de Olavo de Carvalho, e da filosofia politicamente incorreta. Ambos sabem escrever para o grande público, sabem produzir paradoxos chocantes, fazem crer ao leitor iniciante que ele está tendo acesso a alta cultura, a grandes debates intelectuais, e que todos seus eventuais preconceitos podem encontrar bases em argumentos históricos ou filosóficos.

Também não por acaso, os depoimentos dos “discípulos” de Olavo, elogiando-o, tendem a ser de outros jornalistas, que devem ficar seduzidos com a eficaz combinação de alta cultura e linguagem popular. Devem, com razão, ficar admirados com a capacidade que esse autor tem em alcançar centenas de milhares de leitores. Devem, sinceramente, querer ser seus discípulos e atingir, de forma semelhante, tão grande público.

Tanto na história politicamente incorreta, quanto na filosofia politicamente incorreta, as interpretações sem rigor estão a serviço de objetivos políticos. Após conquistar leitor, é possível inocular nele preconceitos contra minorias ou desprezo pelos valores da tolerância e da igualdade. Eis o que Fausto afirma:

“Para se ter uma ideia de até onde vai o discurso de Olavo de Carvalho, ofereço ao leitor esta pérola de ódio, extraída de uma das suas obras recentes: ‘Quem quer que estude as vidas de cada um deles descobrirá que Voltaire, Diderot, Jean-Jacques Rousseau, Sade, Karl Marx, Tolstói, Bertolt Brecht, Lênin, Stálin, Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tse-tung, Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Georg Lukács, Antonio Gramsci, Lillian Hellman, Michel Foucault, Louis Althusser, Norman Mailer, Noam Chomsky e tutti quanti foram indivíduos sádicos, obsessivamente mentirosos, aproveitadores cínicos, vaidosos até à demência, desprovidos de qualquer sentimento moral superior e de qualquer boa intenção por mais mínima que fosse, exceto, talvez, no sentido de usar as palavras mais nobres para nomear os atos mais torpes … Outros foram estupradores ou exploradores de mulheres, opressores vis de seus empregados, agressores de suas esposas e filhos. Outros, orgulhosamente pedófilos. Em suma, o panteão dos ídolos do esquerdismo universal era uma galeria de deformidades morais de fazer inveja à lista de vilões da literatura universal’.”

 

Caberia perguntar qual é a relação entre Sade e Noam Chomsky? Ou então por qual razão Tolstói e Norman Mailer deveriam ocupar lugares no “panteão dos ídolos do esquerdismo universal”, ao lado de Lênin, Stálin e Fidel Castro? Trata-se, na verdade, de mais um exemplo de falta de rigor da análise, que mistura de forma caricatural e grotesca autores de diferentes perfis. Nesse emaranhado, porém, é possível notar que há o repúdio aos defensores da tolerância, do pensamento científico e da noção de soberania popular, constatado nas respectivas condenações de Voltaire, Diderot e Rousseau. A falta de rigor também transparece na condenação da obra, a partir do comportamento moral do autor. Esse tipo de discurso é uma apologia ao obscurantismo, pois nega autonomia do texto filosófico.

Não há dúvidas que, para Ruy Fausto, esse extremismo anti-intelectual está a serviço de um projeto político:

“Para terminar, uma consideração de ordem geral sobre o estilo argumentativo de Olavo de Carvalho. Ele usa uma série de figuras sofísticas, muito rodadas, que deve extrair de textos filosóficos sobre a retórica ou de manuais de marketing político da extrema direita americana. Vou dar apenas dois exemplos dessas figuras. Uma consiste em ir até o extremo da acusação, até os limites do absurdo e da caricatura. Assim, como vimos, ele não acusa Obama de tais ou tais erros políticos, de ações ilegais ou desonestas, ele o acusa de estar a serviço da conspiração islamista mundial. A acusação é tão absurda que desarma o interlocutor. Seria fácil defender o acusado se se tratasse de tal ou tal malfeito inexistente, mas possível. Quando estamos diante de uma impossibilidade total, é como se ele mexesse nas próprias bases racionais de toda crítica e julgamento. O contraditor eventual, e com ele o público em geral, é como que paralisado pela enormidade.

 

O foco político de Olavo de Carvalho não se volta apenas ao plano internacional. A falta de rigor de algumas de suas formulações também se presta a legitimar projetos políticos no Brasil:

 

Uma segunda figura — e fico por aqui — é o sofisma da hiperanálise ou do desdobramento infinito das razões (uma espécie de caricatura da regra cartesiana da decomposição das dificuldades). Assim, para discutir a questão de uma possível ‘intervenção militar’ (quer o autor seja ou não favorável a ela), ele observa (não cito literalmente, mas é isto): ‘Vocês se posicionam em relação a uma intervenção militar? Mas sabem o que é isso? Sabem que a decisão partiria do Estado-Maior do Exército? E, a propósito, sabem o que é o Estado-Maior? Sabem quais as mediações que teria a decisão de intervir? Em resumo, não sabem nada sobre o que é uma ‘intervenção militar’ e pretendem tomar posição diante dela’. O argumento vem ainda reforçado pelo recurso a categorias da metafísica de Aristóteles, pois ele acrescenta: querem falar e opinar sobre um objeto, mas só conhecem qualidades dele (é bom, é mau). Entretanto, é impossível conhecer a qualidade sem conhecer a substância. O sofisma é evidente. A passagem que o seu raciocínio efetua não é da qualidade para a substância, mas do essencial para o inessencial. De fato, sabemos por experiência direta ou indireta o que significa uma ‘intervenção militar’. Conhecemos a essência dela (repressão, suspensão das liberdades fundamentais). O conhecimento dessa essência (que não é simples ‘qualidade’) vem mistificado por elementos que ele apresenta como substanciais, mas que, na realidade, são inessenciais (a estrutura de comando do Exército, as mediações pelas quais deveria passar a decisão de intervir). Isto é, a obliteração do essencial pelo inessencial é apresentada, pomposa e enganadoramente, como movimento teoricamente enriquecedor, conduzindo da simples ‘qualidade’ à substância do fenômeno.

 

Da mesma maneira que a história politicamente incorreta, a Universidade não estabeleceu uma interlocução crítica com a filosofia politicamente incorreta, ambos fenômenos tratados como não merecedores de análises sérias. Porém, uma vez que essas manifestações foram incorporadas pela opinião pública, não há como negar sua importância. Ruy Fausto é pioneiro em reconhecer isso e de alertar para o estudo do que ele define como sendo a “máquina linguística perversa — para não dizer mais — do sr. Olavo de Carvalho”.

 

 

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