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Ensaios e opiniões

‘Feliz’ dia das professoras? A feminização da docência e suas implicações para a saúde das mulheres.

 

“O amor e a doação que se espera de uma mãe-professora”[1].

 

É possível localizar na história do Brasil, um primeiro avanço da educação formal após o período da Proclamação da Independência, haja vista que, com a necessidade de destituir o país de uma imagem marcada pela colonização e pelo atraso, assim como, construir uma nação unitária rumo ao progresso, houve demasiados investimentos na expansão da escolarização. Apesar disso, é apenas no período compreendido como Primeira República (1889-1930) e com o seu notório desenvolvimento econômico, que o Brasil passa a investir na consolidação de um currículo escolar.

Nesse momento, observava-se a necessidade de transformar não só as relações de trabalho como, também, as políticas educacionais, afim de moldar e controlar os anseios da classe trabalhadora que surgia. O ideal republicano, portanto, defendia uma educação gratuita com o intuito de fomentar “o progresso pelo trabalho, a ordem pela disciplina, a educação como virtude”[1].

Com a Constituição de 1891, a União passa a reger as instruções de ensino, marcando a tentativa de reduzir a distância existente entre aquela sociedade pós-abolicionista majoritariamente iletrada e os ideais modernos. Para a consolidação dessa tentativa, exigia-se um corpo de profissionais endereçados a manter a disciplina, reiterando nas salas de aula as noções de ordem e progresso. Nesse sentido, não era garantido ao professor, nenhuma autonomia no seu trabalho. O corpo docente, nos primeiros períodos dessa época, era formado por homens pobres que viam no magistério a única solução de rentabilidade. No entanto, com o crescimento exponencial do setor comercial e industrial, e em razão da constante desvalorização social que já existia pela docência, esses homens migraram para as atividades profissionais mecanizadas nos centros urbanos. Assim, podemos evidenciar que o desprestigio social da profissão já era uma constante quando ocupada por figuras masculinas.

Nesse instante, com a real intenção de expandir o magistério de forma rápida e barata, passa-se a solicitar a presença feminina nas salas de aula. No entanto, embora os primeiros motivos do encorajamento da mão de obra feminina fosse a busca por mão de obra mais barata e acessível, naquele mesmo instante, afim de convencer e endossar os princípios republicanos e o aceite das mulheres na licenciatura, se atribui a esse ofício discursos deterministas que persistem até os dias atuais.

Como justificativa para romper com os papeis de gênero divididos pela esfera pública e privada, ou seja, para fazer com que essa atividade profissional realizada por mulheres fosse socialmente aceita, constrói-se uma narrativa que atribui princípios morais ao magistério. Nesse sentido, atribui-se ao ato de lecionar, um caráter filantrópico que sustentariam a moralidade feminina, pois para exercer tal função “[…] era preciso de um corpo estável de profissionais que não buscasse no salário o motivo de seu ofício”[2]. Por outro lado, um discurso ainda mais recorrente para justificar a presença das mulheres na vida profissional, seria a ideia de um dom feminino em que a prática da docência representaria uma extensão da maternidade e, em cada aluno e aluna, as mulheres deveriam ver seus filhos espirituais. Sendo assim, ser professora seria um prolongamento da vida doméstica, dos bons costumes e do papel maternal, ou seja, institucionaliza-se uma ligação quase indissociável entre o seu oficio e sua vida privada.

Todos esses princípios demostram que a docência era ainda menos reconhecida como profissão quando passou a ser realizada por mulheres, encarnando uma extensão das práticas do lar e da manutenção de uma figura feminina maternal e cuidadosa. Formava-se ali um modelo de professora, um modelo de mãe e um modelo de esposa, o que, além de dar margem para o fenômeno de feminização da profissão, também seria um dos principais indícios para a manutenção da má remuneração, pois, segundo as crenças da época, se tratava de uma vocação, o que tirava a importância de direitos que regulamentasse a carreira.

Ainda nos dias de hoje, paira sobre o imaginário comum a ideia de vocação quando se trata de seguir a carreira do magistério, sobretudo se ligado à vontade de escolha de uma mulher. Ainda, com base nesses pressupostos, podemos observar que a licenciatura no ensino fundamental nos dias atuais é massivamente composta por um corpo de professoras. A ideia de que os alunos precisam de uma tutela mais cuidadosa e maternal no princípio de sua escolarização, as mulheres serão as encarregadas de assumirem esse papel, afinal, representaria uma espécie de mãe-professora.

Diante disso, a precarização das condições de trabalho e da remuneração se torna um fenômeno intimamente ligado à feminização da docência, haja vista que, quanto mais jovem são os alunos, ou seja, quanto mais a função de tutelá-los é destinada ao feminino, menor é o salário. Assim, evidenciamos que em uma área já bastante deslegitimada frente às demandas de uma remuneração justa, ela é ainda mais subjugada quando englobada pela mão de obra de uma mulher.

Alguns levantamentos de dados apontam que as mulheres ocupam cerca de 98% das vagas de educadores do magistério primário[3]. O levantamento releva que, em 2007, 97,9% dos profissionais docentes em creches, corresponderia às mulheres; enquanto o número reduziria para 74,4% no ensino fundamental e 64,4% no ensino médio. Já no ensino superior, apenas 45% do corpo docente eram compostos por mulheres[4].

O fato das mulheres formarem metade do corpo docente de Universidades, pode ser usado para justificar uma certa equidade de gênero dentro do magistério e refutar a tese de uma feminização da profissão. No entanto, devemos ter em mente que esse dado é desigual se analisadas as estatísticas da porcentagem em outros níveis de ensino. Se um menor número de homens entra no magistério e, logo, um maior número deles conseguem lecionar no ensino superior, escancara-se que o maior contingente de homens que entram na docência consegue se emancipar dentro dela, enquanto as mulheres são relegadas as categorias maternais do ensino e com os mais baixos salários mesmo sendo, incomparavelmente, a maior mão de obra.

Muitos são os motivos que podemos traçar sobre a dificuldade que as mulheres possuem de conseguirem se especializar e adentrarem no âmbito do ensino superior como professoras. O fator talvez mais pujante seja o peso da dupla jornada dessas mulheres que, ao mesmo tempo que se dedicam as cargas comuns de trabalho como os homens, possuem uma outra jornada de trabalho dentro do seu âmbito privado, sendo responsáveis pela criação dos filhos e por toda as atividades do lar, como lavar roupas, fazer almoço e realizar a faxina. Sendo assim, o que se encontra não é nem uma dupla jornada de trabalho, mas sim uma jornada continua, visto que a sobrecarga mental se materializa como uma constante na vida dessas mulheres.

No que diz respeito a professoras do ensino das séries iniciais, essa dificuldade de estabelecer limites entre seu trabalho e sua vida familiar, se torna ainda mais difícil, pois o seu trabalho pode configurar uma extensão de suas atividades diárias dentro de suas casas, experimentando uma relação quase indissociável na maternagem de sua profissão o que, por sua vez, também influencia na forma que essas mulheres enxergam o trabalho docente e como estabelecem limites nas relações com seus alunos e, até mesmo, com a família destes. Logo, notamos que “a domesticidade na escola engendra relações sociais de tal forma que, muitas vezes, têm-se a impressão de se estar em um ambiente privado e não em uma instituição pública de ensino”[5].

Portanto, conciliar as demandas do âmbito privado com o âmbito público, além de tentarem frequentar cursos de pós-graduação para ascender em suas carreiras, é vista como uma tarefa hercúlea para muitas mulheres. Como decorrência dessa dinâmica, muitas vão desenvolver distúrbios como ansiedade, dificuldades de concentrar, insônia e falta de apetite, o que remonta o quão nocivo são as estruturas patriarcais que se engendram em suas vidas. Em um estudo feito em 2001 pela doutora em psicologia, Maria Juracy Toneli Siqueira, com auxílio da graduanda, Edirê S. Ferreira, que visava investigar a realidade de 150 professoras da série inicial da rede pública de Florianópolis, ao fazer o levantamento do número de docentes que haviam solicitado licenças para tratamento de saúde durante o tempo de exercício da docência, constatou-se uma série de fatores.

Os principais motivos obtidos, segundo as psicólogas foi, em ordem decrescente: doenças do aparelho respiratório, problemas do aparelho locutor, problemas de saúde na família e problemas psicológicos ou psiquiatras. Os dois primeiros sintomas podem ser ligados ao tempo de serviço e condições de trabalho pois, questões com o aparelho respiratório foi vinculado a doenças como laringite e lesões na cordas vocais, podendo ser explicado pelos longos períodos em sala de aula fechada e com o grande esforço da fala; enquanto os problemas pélvicos, como desvios na coluna, podem ser relacionados com o tempo de serviço dessas professoras, considerando que, quanto maior o tempo de carreira, maior a frequência desses casos.

Não obstante, os outros dois fatores recorrentes para a licença dessas mulheres, elucidam de forma mais evidente a condição de servidão e maternagem na vida dessas mulheres professoras. Como problemas psicológicos, a maiorias das professoras apontam quadros depressivos e de estresse, que pode ser entendido como uma “[…] relação com as frustrações profissionais e/ou pessoais associadas às ansiedades decorrentes das tentativas de conciliação impostas pela dupla jornada de trabalho, como pode ser verificado pelas entrevistas realizadas.”[6]. Nesse mesmo viés aparece as licenças por motivos familiares que, novamente, colocam em cheque o peso da maternagem e da servidão, pois se alguém da família fica doente, definitivamente este há de requerer um cuidado advindo de uma mulher.

Além desse estudo realizado por essas psicólogas, o pesquisador Codo, em 1999, já havia caracterizado a síndrome de Burnout como sendo um dos principais problemas de saúde que afligem os profissionais encarregado de cuidar, principalmente os professores. Segundo ele, a síndrome seria decorrente de um desgaste emocional por um contato direto com muitas pessoas, sobretudo quando se encontram em situações de vulnerabilidade e o profissional não pode ajudá-las. Isso pode se mostrar mais recorrente em mulheres justamente pela carga social e histórica de cuidadoras naturais.

Por outro lado, muitos dos prontuários possuem observações constando frases como “individuo simulando doença e consulta sem motivo aparente”[7], o que revela que a gestão pública da educação, assim como os próprios profissionais da área suspeitam desses pedidos de licença, muitas vezes associando-os a casos de histeria.

Assim, a discussão que envolve a saúde feminina dentro da docência nos revela que, embora não possamos afirmar que as condições de trabalho atual derivam exclusivamente da feminização da docência ocorrida historicamente, haja vista que, como explicitado acima, à docência já era uma prática estigmatizada; podemos claramente traçar panoramas que conectam a exploração da mão de obra feminina na docência sobre uma justificativa “nobre” e os impactos da dominação masculina no desenvolvimento profissional e, também, na saúde das mulheres professoras.

A ideologia que coloca um caráter natural ao trabalho docente realizado pelas mulheres, atribuindo a elas lugares de submissão, cuidado, maternagem, servidão e domesticidade, na verdade, foram estrategicamente construídos para a exploração de sua mão de obra barata e para engendrar parâmetros deterministas que corroborem para a manutenção de um sistema opressor e desigual no que concerne às relações de gênero. Os impactos na vida dessas mulheres são a sintomatização de uma sociedade patriarcal que, como se não bastassem as doenças psicossomáticas, as marcas nos corpos encurvados, os baixos salários, as jornadas continuas, as posições inferiores na área de trabalho e tantas outras consequências da feminização da docência, o sistema ainda as transforma nas principais vítimas de violências e agressões físicas por parte dos alunos em sala de aula e, até mesmo, pela família dos mesmos[8]. Literalmente, uma profissão de risco para todas nós.

 

 

 

 


NOTAS:

[1] PASSOS, Mauro. Historiando embates e conquistas da profissão docente em Minas Gerais (1977-2004). In: PEIXOTO, Ana Maria Cassandra & PASSOS, Mauro. A escola e seus atores – educação e profissão docente. Belo Horizonte, Autêntica, 2005, p.14.

[2] CHAMON, M. Trajetória de feminização do magistério: ambiguidades e conflitos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Apud DAMETTO, Jarbas; ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira. Op. cit., p. 160.

[3] PEZZINI, Fernanda Caroline Esser. A feminização da profissão pedagogo: o estado da arte (2000-2019) sobre mulher e o magistério. 2019. Monografia (Especialização) – Curso de Pedagogia, Departamento Academico de Ciencias da Educação, Universidade Federal de Rondônia, Vilhena, 2019, p. 37.

[4] Ibid.

[5] SIQUEIRA, M. J. T.; FERREIRA, E. S. Saúde das professoras das séries iniciais; o que o gênero tem a ver com isso? Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 23, n. 3, p. 76-83, 2003, 77.

[6] Ibid, p. 79.

[7] Ibid.

[8] DAMETTO, Jarbas; ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira. Mãe, mulher… professora! Questões de gênero e trabalho docente na agenda educacional contemporânea. Acta Scientiarum. Human And Social Sciences, [S.L.], v. 37, n. 2, p. 149, 1 jul. 2015. Universidade Estadual de Maringa, p. 164. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4025/actascihumansoc.v37i2.27127

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Normalistas no final do século XIX (Arquivo: Colégio Caetano de Campos).

 

 

 

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