O segundo livro de Eduardo Dieb Por que só eu estou sem roupa nesse quarto? (Árvore Digital, 2016) repete o uso de formas breves, curtas, em um misto de poemas, sentenças, aforismas ou epifonemas que o autor já praticara em seu livro de estreia. Podem ambos, portanto, serem classificados como híbridos, em mistura de prosa e poesia entre outras misturas.
O primeiro livro de Eduardo Dieb tem “Prefácio” de Patrícia Cardozo de Faria, enquanto o segundo é prefaciado por Nei Schimada, que assina KS. Nei.
Patrícia Cardozo de Faria destaca o aspecto artesanal e imagético, que concorrem a estranhamentos, na escrita de Eduardo Dieb, em seus modos aforismáticos. Patrícia Cardozo de Faria vê na escrita de O Livro do Cão Negro – Eu e não eu (Gráfica XPTO, 2013), urbanidade, modernidade, contemporaneidade em textos em que reconhece erotismo e niilismo.
Nei, por sua vez, dá ênfase à memória evocando situações em que ele e Dieb vivenciaram experiências de vida e de arte, de fruição estética. Uma espécie de movimento musical rock-punk afetivo, partilhado. Nei destaca um exemplar da série “Entreouvido no metrô”, quando essa forma de escrita ainda não era série, entre os escritos de Eduardo Dieb, mas está presente no Por que só eu estou sem roupa nesse quarto? Talvez esteja como embrião, não como origem.
Patrícia Cardozo de Faria, como disse, reconhece certo niilismo no primeiro livro de Eduardo Dieb.
Nei vê melancolia, canção de Lupicínio Rodrigues, no Por que só eu estou sem roupa nesse quarto?
Se Patrícia aproxima a escrita de Dieb ao gráfico, ao desenho, ao imagético, Nei aproxima ao som, à música. Pares complementares em contiguidade e continuidade, assim como penso serem os dois primeiros livros publicados de Eduardo Dieb.
Os textos nesses primeiros livros de Eduardo Dieb são formas breves de poesia/vida, cuja herança lírica é a herança dos epigramas, da poesia epigramática, que tende ao elíptico, ao lacunar. Velha-nova noção latina da brevitas. Flagrante, instante, flash.
A diferença, no segundo livro, é que Eduardo Dieb opta por poemas em chave séria na maioria das vezes, em detrimento dos poemas joco-sérios ou dos cômicos estrito senso, em maior número em seu livro de estreia, O Livro do Cão Negro. A semelhança do primeiro livro, o segundo também traz o uso do diálogo, que virá a compor o terceiro livro dele, baseado na série “Entre ouvido no metrô”, Histórias Passageiras (Qualidade em Quadrinhos Editora, 2019), sobre o qual não me debruçarei aqui.
Entre as diferenças do segundo livro e do primeiro, destacam-se os dois contos finais, gênero em prosa que não havia em O Livro do Cão Negro – Eu e não eu, embora lá houvesse uma ou outra narrativa curta.
O Livro do Cão Negro – Eu e não eu é sério, é cômico, é joco-sério, ou seja, tem como eixo principal o trabalho com matérias, assuntos, temas sérios em tom jocoso. Tem ao mesmo tempo a perspectiva da gravidade e da leveza, da seriedade e da comicidade. O gênero joco-sério é justamente aquele que conjumina esses dois eixos.
Assentado em paradoxos (poema “Quase”, por exemplo), trocadilhos, equívocos e quebras de expectativas (poema “Do falo”, por exemplo), os textos de O Livro do Cão Negro – Eu e não eu são de uma espécie mais mansa até o poema “Cão Negro”, meu preferido entre todos da coletânea. Depois de o “Cão Negro”, o livro parece ser outro, morder com mais força. Não que, necessariamente, sejam dois livros em um ou duas partes de um livro, mas a própria diagramação em sua arte final, cujo fundo preto e a fonte branca, no poema “Cão Negro”, pode sugerir isso que estou interpretando. Os dois. O sério e o jocoso. “O “Eu” e o Não Eu”. O ser e o não ser, as duas partes contidas no livro.
Qual parte é a do “Eu” e qual a parte do “Não eu”? Os leitores que escolham. A mim, não é essa a divisão que vejo principal, embora ela seja uma hipótese pertinente. Para mim, “Eu” e “Não eu” estão o tempo todo no livro, em todos os poemas, em todos os aforismas, que são formas sentenciais reflexivas, de tendência filosófica, que Eduardo Dieb lança mão em chave joco-séria, cômica. Meu argumento se baseia na detecção do uso do paradoxo. Na coexistência de inconciliáveis, do afirmativo e do negativo, do presente e do ausente, do ser e do não ser. “Eu” e “Não eu”, talvez, remetam-se a Fernando Pessoa, do “Eu e outros Eus”. Dos heterônimos. Mas, não penso ser esse o gênero o da despersonalização predominante no livro que leio de Eduardo Dieb.
Os poemas que prefiro, e isso é arbitrário, mas válido, são aqueles a meu ver melhor definidos, e definidos como poemas.
Voltando ao Por que só eu estou sem roupa neste quarto? , segundo livro de Eduardo Dieb, destaco os contos “Leka”; “Paula”.
“Leka”, um homem e uma mulher. Uma mulher com um apelido, um homem com uma alcunha. “Paula”, outro homem e outra mulher. A mulher com nome. O homem com a mesma alcunha do conto “Leka”, o mesmo homem. E os enredos são semelhantes, e o foco narrativo é semelhante, nas diferenças, nos dois contos que encerram Por que só eu estou sem roupa nesse quarto? O leitor fica sabendo ao ler “Leka” de onde Eduardo Dieb retirou o nome de seu segundo livro. Pinçou-o da narrativa do conto.
Para não antecipar ao leitor em que circunstâncias e na boca de que personagem isso ocorre, não dou spoiler. Em semelhança com seu primeiro livro, Dieb também pinça de um dos textos, com perspicácia, o nome do livro. Recurso publicitário, cuja formação e experiência Dieb honra e não nega.
“Leka” é uma narrativa intrincada, em um parágrafo único, com uma primeira letra maiúscula (fonte alta) no início e um único ponto final. É um fluxo narrativo, não propriamente um fluxo de consciência, pois tem um narrador em primeira pessoa e diálogos sem separações formais entre a narração e a conversa, tudo condensado, denso, sem uso de pontuação demarcando.
O intrincado narrativo mimetiza o intrincado da relação homem/mulher do enredo, juntamente com o monólogo interno, que é o que o narrador pensa, mas não fala à personagem feminina em paralelo ao monólogo interno da mulher, do que ela pensa e não diz ao homem. “Leka” tem um fluxo narrativo vertiginoso, para além da surpresa da frase título do livro.
“Paula”, também em um parágrafo único e sem separação formal entre o narrado e o dialogado, começa no meio da história, do enredo, passa à ordem cronológica e no fim retoma o fio inicial, o começo.
Isso se dá em uma espécie de disposição das ações in media res (no meio da coisa), in ordo naturalis (em ordo natural), característica de narrativas heroicas, de épicas, epopeias.
Ocorre que “Paula” está longe de ser uma épica ou epopeia. Essa disposição é motivada pelo fluxo de consciência já visto no conto “Leka”, conforme mencionei.
Outra característica que distancia o conto da épica ou da epopeia nessa questão da disposição das ações é que o meio do que se narra em “Paula” é ao mesmo tempo o fim e o começo.
Esse meio que é ao mesmo tempo fim e começo do último conto e último texto de Por que só eu estou sem roupa nesse quarto? é emblemático da escrita de Eduardo Dieb até agora.
Dieb é um autor no meio de sua trajetória. Seu começo, seu primeiro livro, seu meio, seu segundo livro, embora não sejam seu fim, encerravam seu fim até a publicação de Histórias Passageiras.
O meio é a mensagem, como diz um velho clichê publicitário. Dieb está em pleno exercício da mensagem. Ele é um Lobo, tal qual um de seus nomes de família, tal qual a alcunha de personagem nos dois contos que encerram Por que só eu estou sem roupa nesse quarto?
Esse lobo corre em círculos não para alimentar a matilha, como canta Djavan, mas para alimentar as narrativas. Ele, em formas breves narrativas, põe fogo na mistura.
Créditos na imagem: The Arrow of Time, arte de Mark Bryan. Disponível em: http://www.artofmarkbryan.com/monkeys/
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