Para Lirinha, Luiz Simas, Luiz Rufino, Seu Zélio, Joãozinho da Goméia e a todos e todas as kumbas

Quando a flor tava dormindo
Vento fogo corredor
É a bença prometida
Pra quem é merecedor
Pai Tomás levanta a cuia
Com incenso de fulô

Preta velha atiça o fogo
Que o trabalho começou

Vem arriar nesta casa

(Chamada dos Santos Africanos)[1]

 

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Macumba é política – Política é macumba

Esse texto é uma espécie de invocação, à minha maneira, de dois grandes pensadores do político e da política que são Luiz Simas e Luiz Rufino, começando pela grande obra de filosofia política popular brasileira que é Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas (em especial, aqui, me concentrando no capítulo “Campo de batalha e campo de mandinga”), para chegar ao recém lançado Flecha no tempo e, quem sabe, a partir da apresentação de alguns pontos, conseguir entrar na gira e lançar, também, eu mesmo, algumas flechas.

Quando afirmam ao mesmo tempo que “o campo de batalha é o lugar das estratégias”, ou seja, a dimensão do político, e que o campo de mandinga, a dimensão dos feitiços, dos encantos, “onde se praticam as frestas”, que estes dois campos encruzam-se, eles nos dizem que política é macumba, à medida que, por detrás das estratégias de poder, é preciso reafirmar o campo encantado ao qual o colonialismo desencantador tanto buscou dizimar; e que a macumba é política, na medida em que através de feitiços e poéticas operamos nas frestas do poder para corroê-lo de dentro. “É na perspectiva da mandinga, modo de inteligibilidade assente no complexo saber das macumbas”, dizem os dois, “que se encarnam as potências, que mobilizam, e é nesse mesmo modo que também se disparam os golpes operados nas frestas”[2].

Sendo a mandinga a obra dos poetas feiticeiros, chamados de kumba que, juntos, formam a makumba, podemos, já, pensar que a tal tarefa hiperpoética só de dá em um coletivo, “invocando múltiplas temporalidades, espacialidades, dimensões e as suas diferentes formas de interação”[3]. Esta coletividade macúmbica e poética, precisa, contudo, empreender uma guerra simbólica contra o carrego colonial, que achata a transcendência, produz hierarquias de saber, epistemicídios e desencanta os espaços e os discursos. E tal guerra consiste em “estabelecermos formas de luta que se atentem minimamente à capacidade de alçarmos as coisas que vem do alto, do invisível, invertendo lógicas, praticando virações, alçando voos e nos amiudando”[4]. Tal guerra, que se dá ao mesmo tempo nos campos de batalha e de mandinga, é, portanto, não apenas política e poética, como também epistemológica.

Uma política macumbeira, como a que defendem Rufino e Simas, mais do que um projeto, “é uma aposta” que defende a pluriversalidade, a plurirracionalidade e as diferentes formas de existência e de práticas de saber diante do racismo epistêmico presente na noção de universalidade, humanidade etc. Ecoando Nego Bispo, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Aílton Krenak, Davi Kopenawa, Grada Kilomba, Conceição Evaristo e Sueli Carneiro, Simas e Rufino defendem o radical caráter político das macumbas brasileiras como “formas de potenciar a vida” e reencantar os corpos, docilizados pelo colonialismo. “As macumbas”, afirmam, “com toda sua força simbólica/política, denuncia a mordaça imposta contra as formas de autoinscrição do ser e saber nas diferenças”[5]. Mais do que uma afirmação de uma vitória, a segunda obra conjunta de Simas e Rufino, Flecha no tempo, anuncia a necessidade de se empreender esta batalha, que, aqui, se anuncia através dos brados dos bugres, das flechas dos tupinambás e dos feitiços dos velhos feiticeiros.

A figura do caboclo, como “antinomia da civilidade” entra em cena para reencenar o político, e nos dar uma segunda chance de reinventarmos um outro Brasil, sendo “a amarração que enigmatiza a luta contra as esferas do terror do colonialismo”[6] e cuja flecha atravessa os campos das “representatividades formais” inaugurando uma política imediata e urgente, prática e simbólica, encantada e macumbeira, corporal e discursiva[7]. Lançando minha flecha, cito Simas e Rufino: “Nossa peleja precisa ser levada, como vivência, reflexão e ação macumbada, para o campo dos saberes onde os desencatadores não sabem jogar, como bandeira fincada no Humaitá. Para cada discurso empedernido, uma gargalhada zombeteira zumbirá no vento feito um anti-amém, marafando letras e corporificando a palavra como a encruzilhada de onde as flechas voam para desassombrar o medo e encantar o mundo”[8].

 

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Dia 15 de Novembro: A República e o Caboclo das Sete Encruzilhadas

Em 15 de Novembro de 1889 acontecia o primeiro de muitos golpes que marcariam, até os dias de hoje, a República Brasileira. Marechal Deodoro da Fonseca instituía um governo provisório e se autoproclamava o primeiro presidente do Brasil. “Seja um hino de Glória que fale / De esperança, de um novo porvir!” cantam para celebrar; “Somos todos iguais!” gritava a liberdade que dizia abrir suas asas sobre nós, um país que, dizem eles, “já surgiu libertado”[9]. Em 15 de novembro de 1908, pouco menos de 20 anos depois, acontecia, não o primeiro, mas o evento inaugural do que viria a se chamar Umbanda: Zélio Fernandino de Moraes, que havia sofrido uma terrível paralisia e, tendo sido levado por sua mãe a uma benzedeira que recebia Tio Antônio, o espírito de um preto velho, foi aconselhado a procurar a Federação Espírita de Niterói, pois, junto do Positivismo, sua manifestação espiritual, o Kardecismo, já havia chegado por essas bandas de cá. Conta a lenda que Zélio, já transgredindo o ritual, vai ao jardim, busca uma rosa e a põe sobre a mesa coberta com o pano branco, logo em seguida recebendo o espírito de um índio.

Esse índio, que anunciou seu nome como Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haveria, para ele, caminho fechado, vinha contestar o preconceito da Federação Espírita com relação aos espíritos destas terras, negros escravizados e libertos, índios, prostitutas, malandros, boiadeiros, marinheiros e ciganos, todos até então considerados “sem luz”. Como toda aparição espectral é política, como nos mostra tão bem o fantasma do pai de Hamlet, porque sempre nos ordena uma ação, o Caboclo das Sete Encruzilhadas aparecia e ordenava a criação de uma nova religião, que, esta, não silenciaria nenhum espírito subalternizado em vida e em morte, pelo Estado ou pela Religião.

Luiz Simas, em O corpo encantado das ruas, apresenta uma bela análise, já antecipara em Flecha no tempo, na qual compara esses dois acontecimentos. Para ele, o surgimento da umbanda como religião no período pós-abolição e nos primeiros decênios da nossa república é um sintoma do momento em que começavam os debates em torno da construção de uma identidade nacional, bradando contra “os ideólogos do branqueamento racial e os gestores do projeto colonial”. É nesse sentido que “o que o Caboclo das Sete Encruzilhadas anuncia não é só religião”[10]. A hipótese de Simas é a de que a história da umbanda, através de seu mito de origem, narra a formação brasileira através de seus tensionamentos, e que tal história nada tem de passado, pois “há um país oficial que ainda tenta silenciar os índios, os caboclos, os pretos, os ciganos, as pombagiras (mulheres donas do próprio corpo em encanto) e todos aqueles vistos como estranhos por um projeto colonial amansador de corpos, disciplinador de condutas e aniquilador de saberes”[11].

A atualidade da guerra simbólica que empreendem tais personagens conceituais afro-ameríndios-brasileiros, ou personagens melanodérmicos, como definem Renato Noguera, Marcelo Moraes e Wallace Lopes[12], faz da umbanda, mais do que uma religião, um “tratado político que versa sobre [os dilemas], os conflitos, ambivalências [das identidades] e possibilidades dessa terra [que emerge como contínuo de táticas, invenções e sabedorias de fresta]”[13] que nos possibilitam o confronto para despachar o carrego colonial através das novas “práticas de cura e guerrilha cotidiana das culturas subalternas”[14]. Umbanda, portanto, como nome da abertura de caminho nesse campo de batalha, simbólico e prático, que é o poder colonial, e, nesse sentido, o brado do Caboclo das Sete Encruzilhadas performatiza a enunciação dessa luta, sendo, por esse motivo, um dos mais importantes intelectuais brasileiros[15].

 

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A política da Goméia e o Caboclo Pedra Preta

A importância da umbanda contra a guerra colonial mostra-se ainda hoje premente, quando terreiros de diversas religiões afro-brasileiras são atacadas pelo exército do monoteísmo branqueador e de seus ideais de pureza e, nesse sentido, precisamos, sempre, retornar ao seu mito fundador para recontar a história de seu Zélio e do que ele inicia em Niterói. Mas sabemos, e isso nos conta a própria umbanda, que não há origem. A cada vez que um espírito baixa, seja nos batuques dos banto, jeje ou nagô, seja na pajelança ou no catimbó, a macumba já começou. É por essa razão que, além de saudar o Caboclo das Sete Encruzilhadas, precisamos chamar para a gira outros Filósofos de Pena, para que a experiência da repetição e da primeira vez sempre marque a produção das diferenças.

Nesse sentido, queria invocar a figura de um grande político brasileiro, chamado Joãozinho da Goméia. Nascido em 1914 no interior da Bahia, coroinha da Igreja, é levado ainda pequeno, por motivo de saúde, a fazer santo no Candomblé pelas mãos de Jubiabá, um sacerdote não muito respeitado em sua época frente ao matriarcado das Grandes Casas baianas. Além de homem, em um tempo em que as mães-de-santo eram as responsáveis pela guarda da espiritualidade africana, Joãozinho teria sido feito em um terreiro que não seguia estritamente o que preconizava a religião iorubana, que além de misturar os ritos da cultura banto com a nagô, ainda recorria à espiritualidade indígena em seus cultos. Se não bastasse isso, João era homossexual, afeminado, gostava de rir, de festas, de dançar, além de alisar seus cabelos com ferro quente, uma interdição do candomblé pelo fato do ori, a cabeça, ser a morada do orixá.

Devido a esse desprestígio diante da chamada “África baiana”, Joãozinho da Goméia decide abandonar a Rua da Goméia e vir morar no Rio de Janeiro na década de quarenta. Aqui nessas terras, Joãozinho da Goméia ganha fama pela sua frequência em teatros, boates e, sobretudo, no carnaval, quando, para horror de muitos sacerdotes, ele se tornava Arlete, desfilando em concursos de fantasia vestido de mulher e chocando a todos com sua habilidade de passista. Sendo, talvez, o maior pai de santo com apelo midiático, firma seu chão em Caxias, tendo como frequentadores de sua casa artistas e políticos famosos[16].

A importância da chegada de Joãozinho da Goméia no Rio de Janeiro é tamanha que o grande filósofo quilombista Abdias Nascimento chega a escrever para o Jornal “O quilombo” que “a pequena cidade Estado do Rio, Caxias, se transforma num grande, imenso quilombo. Seu povo é todo negro. Cada fundo de casa é um ‘terreiro’, em cada encruzilhada se topa com um despacho pra Exú. Não é sem motivo que já chamam Caxias de Roma sem igrejas… Era dia de São João… Dançamos no terreiro do famoso pai-de-santo Joãozinho da Goméia…”[17].

Em um momento em que a umbanda se estabelecia como uma religião urbana e, portanto, civilizada, e em que as associações espíritas tentavam a todo custo se afastar de uma experiência tribal, Joãozinho da Goméia passa a ser o maior representante da macumba carioca, com sua mistura de Candomblé de Angola, misturado com Ketu e umbanda. Em Bahia de todos os santos – guias de ruas e mistérios, Jorge Amado, antes, já tinha dito que “outros candomblés podem ser mais puros nos seus ritos (…). Porém nenhuma macumba é tão espetacular como essa da roça da Goméia, ora nagô, ora Angola, candomblé de caboclo quando das festas de Pedra Preta, um dos patronos da casa”[18]. Diferente dos terreiros de candomblé, cujo nome sempre indica a pertença a um determinado Orixá, e diferente também dos centros de umbanda, que têm seus nomes dados pelos guias chefe das casas, caboclo ou preto velho, a casa da Goméia tinha três patronos: Iansã, o orixá dos raios e ventanias, Oxóssi, o orixá caçador, e o caboclo Pedra Preta, outro filósofo que chega à nossa gira.

Esse caboclo, que se encontra com Walter Benjamin nas encruzilhadas de Simas, traz uma das mais importantes perspectivas da política macumbeira. Se Benjamin ensina a “escovar a história em contrapelo”, o filósofo das matas antecipa a micropolítica, cantando: “Pedrinha miudinha dentro dessa aldeia. Uma é maior, outra é menor, a miudinha é que nos alumeia”, mostrando que não é através das grandes causas e políticas que conseguiremos firmar ponto, mas sim através de pedrinhas miudinhas[19].

E, cantando, batucando e saudando essas pedras miúdas da Gomeía, a Acadêmicos do Grande Rio já prepara a sua festa quilombista para 2020, com o enredo “Tata Londirá: o Canto do Caboclo No Quilombo de Caxias”, os compositores Dedé Aguiar, G. Martins, Jailson Da Grande Rio, Mo e Nego, nos apresentam sua política poético-macumbeira:

 

É pedra preta!
Quem risca ponto nesta casa de caboclo
Chama flecheiro, lírio e arranca toco
Seu Serra Negra na jurema, juremá
Pedra preta
O assentamento fica ao pé do dendezeiro
Na capa de Exu, caminho inteiro
Em cada encruzilhada um alguidar
Era homem, era bicho flor

Bicho homem, pena de pavão
A visão que parecia dor
Avisando salvador, João
No camutuê jubiabá
Lá na roça a gameleira
Da gomeia dava o que falar
Na curimba feiticeira

Okê! Okê oxossi é caçador
Okê! Arô! Odê!
Na paz de zambi ele é mutalambo
O alaketo, guardião do agueré

É isso, dendê e catiço
O rito mestiço que sai da Bahia
E leva meu pai mandigueiro
Baixar no terreiro, quilombo caxias

Malando, vedete, herói, faraó
Um saravá pra folia
Bailam os seus pés
E pelo ar bejoim
Giram presidentes, penitentes e yabás
Curva-se a rainha e os ogans batuqueiros pedem paz

Salve o candomblé, eparrei oyá
Grande rio é tata londirá
Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé
Eu respeito seu amém
Você respeita o meu axé

Salve o candomblé, eparrei oyá
Grande rio é tata londirá
Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé
Respeita o meu axé

*

 

Dia 13 de maio – Carrancas, Abolição e os Pretos-Velhos

Como encerramento desses apontamentos para pensar uma filosofia política popular brasileira, nos meus termos, ou uma política macumbeira, nos termos de Simas e Rufino, queria trazer o pensamento político dos velhos e sábios kumbas, através da denúncia e da reabilitação constante da luta contra o racismo que os pretos velhos empreendem nas macumbas. Pode parecer estranho tentar apresentar um pensamento político a partir dessas figuras serenas, personagens que sempre trazem certa mensagem de paz, como são vistos os pretos velhos no imaginário umbandista. Mais estranho ainda se pensarmos que no dia 13 de maio são comemoradas as festas dos pretos velhos nos centros e terreiros brasileiros. Mas não confundamos tão antecipadamente a tranquilidade destes filósofos que tanto conhecem o cativeiro com resignação, pois seus pontos cantados nos contam uma outra história.

O dia 13 de maio é, sim, a data comemorativa das festas de pretas e pretos velhos e também a data na qual, em 1888, a princesa Isabel assina a Lei Imperial no. 3353. Precedida pela chamada Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que libertava todas as crianças doravante nascidas de pai escravos, e da Lei dos sexagenários, de 28 de setembro de 1885, que determinava a extinção gradual da escravidão, a Lei Áurea, como todo sabemos, apesar de seu poder simbólico, não passou de um teatro barato, literalmente, só para inglês ver. Mas a data para a encenação não foi nada inocente: em 13 de maio de 1833, a exatos 55 anos antes da assinatura da pretensa abolição da escravidão, na Freguesia de Carrancas, nas Minas Geras, ocorria a primeira de uma série de levantes, como a Revolta dos Malês (em Salvador, Bahia, no dia 24 de janeiro de 1835) e a revolta de Manuel Congo (Vassouras, Rio de Janeiro, em 6 de setembro de 1838). A Revolta das Carrancas marca, então, um momento histórico na história do país, que tinha como objetivo o assassinato de todos os brancos da cidade e tomar suas propriedades.

Como memória da Revolta das Carrancas e como denúncia da farsa encenada pela Princesa Isabel para apagar um dia de luta de diferentes povos sequestrados de sua terra, para nos lembrar que a abolição nunca aconteceu e que a luta é ainda tão necessária quanto nos séculos passados, como vemos nas favelas, nas periferias, nos elevadores de serviço, nas portas dos fundos e nos quartos de empregada, pretos e pretas velhas entoam seus pontos, para nosso assombro, que deveria ser cotidiano. É por essa razão que “vovó não quer casca de coco no terreiro”. Ela explica: “Casca de coco faz lembrar dos tempos do cativeiro”. As cantigas que firmam ponto nos terreiros da umbanda carioca são marcas dessa história, que é de ontem e de hoje; marcas da violência policial contra pretos e pobres que, antes ou depois da assinada mas não assegurada abolição da escravidão, são cantadas por Pai Joaquim de Angola: “No dia treze de maio tava tocando meu tambor / Pai Joaquim estava dançando quando a polícia chegou / Entra preto, branco não entra, se entrar pau vai levar / Esse nêgo é meu, vem cá! Esse nêgo é meu, vem cá!”

No dia treze de maio, no dia da abolição, a polícia entre na festa dos pretos para resgatar um escravo fugido. Isso foi antes da assinatura da lei? Foi isso que provocou a Revolta das Carrancas? Isso aconteceu esse ano em algum canavial? Pai Joaquim estava, ontem, em seu barraco em alguma favela carioca? Só sabemos que esse problema é a razão de nossa luta, política e epistemológica, dentro e fora dos muros da academia, onde os capitães do mato ainda querem agrilhoar saberes e cunhar a ferro pessoas. Contra tais capatazes da universalidade se dirige, hoje, minha luta, nessas linhas de mandinga e de batalha para que a filosofia venha a se tornar um lugar de resistência. Essa é, para mim, a tarefa do filósofo hoje: firmarmos um terreno no qual tantas outras vozes possam ser ouvidas, outras histórias possam ser contadas e outras experiências sejam vividas, pois, ao contrário do que conta nossa história oficial, “O preto velho é um nego feiticeiro. Se não fosse o preto velho, não acabava o cativeiro”.

 

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O cachimbo da vovó

Depois de concluído o texto, senti a necessidade de trazer algumas imagens dessas grandes kumbas que são as pretas-velhas. A menção à casca de coco no terreiro que a vovó não queria para não lembrar do tempo do cativeiro me parecia ainda muito insuficiente para retratar a força do poder dessas filósofas não conceituais. Foi então que me chegou a voz de uma das cantoras mais marcantes de minha infância, cantando um ponto que eu adoro e cuja gravação nunca tinha ouvido. Clementina de Jesus, uma personificação da filosofia banto, canta “Fui pedir às santas almas”:

 

Eu andava perambulando
sem ter nada pra comer,
Fui pedir às almas santas
para vir me socorrer

Foi as almas que me ajudou

Foi as almas que me ajudou

Meu divino espírito santo
Louvo a Deus Nosso Senhor

Quem pede às almas
as almas dá
filho de pemba é que não sabe aproveitar

 

Ouvindo esse ponto, me vinham apenas as imagens da fumaça do cachimbo dessas velhas feiticeiras, riscadoras de encantos e benzedeiras de palavras. Se, como dizem, “Preta velho quando fuma cachimbo, ô sinhá / fumaça vai longe, ô sinhá”, a fumaça mostra o alcance das palavras dessas velhas, seu poder de irradiação filosófica e política, seu poder de subversão, mesmo sob os olhares da sinhá!

“Fumaça vai longe, ô sinhá / vai pra defumar”, continua o ponto, firmando que as palavras dessas kumbas vão disseminando o encantamento e despachando o carrego colonial[20]. “A fumaça do cachimbo da vovó sobe bem alto / só não vê quem não quer”, canta outro ponto, e nos adverte: “O cachimbo da vovó tem mironga / Na barra da saia, Na sola do pé”. Essas personagens melanodérmicas, sempre retratadas como epítomes da tranquilidade, da paciência, de resignadas não tem nada, são versadas na política macumbeira e, com suas mandingas, abrem os campos de batalha para o necessário enfrentamento. Essas senhoras, mucamas, quituteiras, mães pretas, representam o mais alto grau de poder revolucionário da diáspora africana e é graças ao seu ensinamento que, hoje, mães, avós, nas pequenas áfricas desse país, conseguem a força e a sabedoria para existir e resistir.

É por isso que sábio é aquele que canta: “ai, vovó eu tenho medo / ai vovó eu tenho medo / da fumaça do cachimbo descobrir meu segredo”. Salve Vovó Maria Conga! Salve Luísa Mahin! Salve Sueli Carneiro! Salve Vovó Catarina de Carangola, que põe os inimigos de porta a fora! Salve Conceição Evaristo! Salve Angela Davis! Salve Vovó Maria Redonda! Salve Lélia Gonzalez! Salve Ruth de Souza! Salve vovó Cambinda! Salve Clementina de Jesus! Salve Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Dona Zica, Tia Surica, Zezé do Folclore e todas as grandes filósofas populares das diásporas africanas!

 

 

 


NOTAS

[1] José de Lira Paes Filho (Lirinha). Chamada dos Santos Africanos, Cordel do Fogo Encantado, 2001.

[2]  Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2018, págs. 105-106.

[3] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 106.

[4] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato, pág. 107.

[5] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. “O Alvo”, capítulo de Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2019, págs. 103-105.

[6] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. “A primeira flecha”, capítulo de Flecha no tempo, págs. 11-12.

[7] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, pág. 15.

[8] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, pág. 6.

[9] Referências ao Hino de Proclamação da República, na letra de Medeiros e Albuquerque.

[10] Luiz Antonio Simas. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019, pág. 171.

[11] Luiz Antonio Simas. O corpo encantado das ruas, pág. 171.

[12] Renato Noguera, Marcelo Moraes e Wallace Lopes. “Esquentando os tamborins”, in: Wallace Lopes Silva (org.). Sambo, logo penso. Afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis Editora, 2015, pág. 17.

[13] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, págs. 65-66.

[14] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, pág. 67.

[15] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, pág. 71.

[16] Um maior detalhamento desse grande pensador das ruas pode ser encontrado no artigo de Joselina da Silva, da Universidade Federal do Ceará intitulado “O Negro Baiano Pai Joãozinho da Goméia: o candomblé de Duque de Caxias na mídia dos anos cinquenta”. Revista Magistro, Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da UNIGRANRIO (http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/viewFile/1048/616).

[17]  Abdias Nascimento. “São João no Quilombo de Caxias”. Jornal Quilombo, Ano I. Rio de Janeiro, Julho de 1949, pág.12.

[18] Jorge Amado. Bahia de todos os Santos. Rio de Janeiro: Record, 2000, pág. 11.

[19] Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2019, pág. 75.

[20] Sobre isso ver o capítulo “O carrego colonial” de Flecha no tempo.

 

 

 

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