Hexagrama 18 – 蠱 – Gu (A Corrupção)
Restaurar o que apodreceu traz grande realização.
Mas exige travessia, risco, preparação.
Antes e depois da ponte, consciência do caminho.
— I Ching, livre interpretação[1]
1. Introdução
Estava lendo um artigo de uma grande historiadora brasileira, sobre desafios na educação no Brasil. Como de praxe, muito bem escrito, reflexões profundas, abordagens elaboradas enfocando vários aspectos do tema. Pois bem, mas como sempre, o tema central, a meu ver, ignorado solenemente. E qual seria o tema central da discussão pertinente à prática docente no Brasil? A falência ampla, geral e irrestrita do sistema. Fico me perguntando, que sentido há em se refinar gasolina de avião para ser colocada num Fusca 66? Levantará voo? Mais provável que nem se consiga dar a partida no motor. Aqui, e em várias discussões em torno dessa temática, encontro textos elaborados e altamente sofisticados. E valiosos, sem sombra de dúvida, do ponto de vista teórico. Oxalá cheguemos a utilizar tais conceitos, de maneira prática. Contudo, me pego resmungando pelos cantos — privilégio dos velhos ;>) — onde, afinal, esses autores e autoras imaginam praticar tais ideias, se o sistema sequer consegue alfabetizar com um mínimo de eficiência? Se meninas e meninos que concluem o ensino médio não conseguem decidir, sem usar uma calculadora, se um terço é menor ou maior que um quarto?
Há um vão entre a prática em sala de aula e a teoria acadêmica que busca dar sustento a essa prática. Um descolamento. Reconheço a importância da pesquisa pela pesquisa, claro! Sou apaixonado por descoberta, inovação, imaginação sem freios, mesmo que não se tenha a mínima ideia da possível utilidade do que se cria, elabora mentalmente. O fato de que no século XVII não se podia construir aeronaves e foguetes não significa que Newton não devesse ter elaborado toda a teoria que possibilita colocar uma nave na Lua. Contudo, a analogia é imperfeita. Lá, no século XVII, não havia qualquer urgência, por parte da humanidade, em pisar na Lua, a guerra fria estava longe do radar deles. Galileo, Newton, Leibniz, e outros do mesmo quilate, podiam se dar ao luxo de desenvolver suas teorias pelo bel prazer da contemplação intelectual, pura e simples. Mas aqui, nosso problema concreto, terra a terra, é urgente demais para que não seja atacado em primeiro plano. O fato, indiscutível, é que nosso sistema educacional está passando por uma crise de eficiência avassaladora. Talvez isso sirva a alguns grupos, mas essa já seria outra discussão. O que nos interessa aqui é encarar o fato de que alunos e alunas terminam o ensino médio em clara desvantagem, no que diz respeito aos rudimentos mínimos – leitura, interpretação, raciocínio lógico, aritmética básica, conhecimentos gerais – se comparados com os que terminavam a quarta série dos anos 60 do século XX. Definitivamente, há algo de podre no reino da Dinamarca e o cheiro está impregnando o ar.
A questão do uso da Inteligência Artificial, por sua vez, repete esse mesmo padrão — e não por coincidência. Se a educação é o solo onde o pensamento deveria germinar, a IA é a colheita apressada de um terreno mal preparado. Noto aqui uma relação de proximidade muito grande com essa questão, que abordei em outro ensaio, sobre o uso ético das AI’s. Pressinto que ambos os problemas, aparentemente desconectados — mas apenas aparentemente —, compartilhem uma raiz comum, estrutural e determinante.
2. Novos problemas, velhas estruturas
Vivemos um contexto no qual soluções cada vez mais refinadas são propostas para sistemas em ruína. Isso pode ser visto, de forma clara, na educação brasileira — mas também na chamada ética da inteligência artificial. Nos dois casos, há uma inquietante semelhança estrutural: o deslocamento do foco para sofisticadas engenharias conceituais, enquanto o chão onde essas engrenagens deveriam operar suavemente, está absolutamente comprometido.
Na educação, assistimos à proliferação de teorias e práticas pedagógicas avançadas — abordagens interculturais, currículos decoloniais, pedagogias da escuta, mediação cultural. Há a BNCC, a LDB, debates, discussões. São leis, normas, diretrizes, formulações belíssimas, instigantes, fundamentadas nas melhores intenções e nos autores e autoras mais refinadas, de preparo e boa vontade indiscutíveis. Contudo, são propostas para um sistema que não consegue garantir sequer a alfabetização funcional. A metáfora é simples, mas funciona: Fuscas 66 não voam. Nem baixo.
Na inteligência artificial, o mesmo padrão se repete. Há manifestos, comitês de ética, debates sobre vieses, governança algorítmica, direitos digitais. Mas enquanto se discute a normatividade das máquinas, os sistemas de IA já foram apropriados por corporações que os utilizam para extrair dados, manipular desejos, precarizar o trabalho e acelerar desigualdades. Não é por acaso que as Ais se tornaram disponíveis em larga escala, não cabe ingenuidade aqui. Trata-se de uma faca de dois gumes, já que, se por um lado contempla anseios legítimos de uma democracia digital inclusiva, por outro apresenta o caráter perverso do traficante que oferece droga gratuita ao adolescente que não tem a mínima chance de lidar com o vício. Se a imagem parece forte, é porque o jogo é bruto.
Na outra ponta, cobra-se uso ético, honesto, por parte de usuários que participam da mesma desigualdade de oportunidades que estrutura toda a nossa sociedade. Aqui, em particular, desigualdade de acesso a uma educação de base minimamente eficaz e eficiente. A ética vira, assim, um verniz ilustrado e lustroso sobre um motor movido por injustiça estrutural. E aqui os dois temas convergem, já que não faz sentido cobrar uso adequado de AI da parte de quem sequer consegue formular uma questão elementar, não chegou nem mesmo ao nível da dúvida, como também não faz sentido requisitar teorias e práticas pedagógicas avançadas.
Essa é a repetição estrutural: o uso de discursos éticos e progressistas para legitimar sistemas que, em sua base, estão apodrecidos. E esse apodrecimento não é periférico, mas central. Ele está no cerne das instituições escolares, e no núcleo das arquiteturas tecnológicas de poder.
A crítica, aqui, torno a repetir porque esse ponto precisa ficar claro, não é contra a elaboração teórica. Já citei Newton e a teoria da gravitação, poderia citar inúmeros exemplos. Charles Boole criou a álgebra booleana no séc. XVIII, o que lhe rendeu o deboche de toda a comunidade de matemáticos. Teoria “inútil” que hoje garante o funcionamento do computador em que redijo esse texto — a eletrônica digital não seria possível sem a álgebra de Boole. Claro que a teoria é importante, claro que se deve preparar um futuro melhor. Mas o que se questiona é o silenciamento da urgência. A incapacidade — ou recusa — de reconhecer que há um colapso material e simbólico que precisa ser nomeado antes de qualquer reinvenção. E que esse colapso deveria ser estressado ao limite do insuportável por todo e qualquer pesquisador ou pesquisadora da área de educação. De novo, primeiro as coisas primeiras, sobretudo em tempos de urgência.
É necessário inverter o gesto: não mais planejar para o que a escola poderia ser, mas para o que a escola é agora. Não mais imaginar o uso ético de IAs futuras, mas enfrentar o uso antiético das IAs presentes de maneira coerente. Isso exige uma ética do escombro — não como ruína romântica, mas como ponto de partida realista. Olhar a rua, enxergar as casas desgastadas e pensar um modo de reformá-las, ao invés de imaginar uma Beverly Hills.
Esse padrão de repetição — essa falência da base encoberta por visões do topo — é um dos traços mais constantes das civilizações que colapsam. E, se quisermos não repetir esse erro, precisamos aprender a ver a miséria antes da utopia. Nenhuma utopia pode ser erguida sobre areia movediça, e quanto mais nos movemos, de maneira descuidada, mais afundamos.
A gasolina para jato supersônico está aí. Os Fuscas 66 ainda percorrem as ruas das cidades, mundo afora. Cabe a nós decidirmos: ajustamos o motor ou seguimos alimentando ilusão de voo?
NOTAS
[1] O Hexagrama 18 – 蠱 (Gu), tradicionalmente traduzido como “A Corrupção” ou “A Obstrução”, integra o clássico chinês I Ching (O Livro das Mutações). Ele convida à ação restauradora diante de estruturas deterioradas, alertando para a necessidade de reconhecer o apodrecimento antes de qualquer reconstrução. Em sua sabedoria ancestral, o oráculo aponta: não basta sofisticar a superfície — é preciso enfrentar o núcleo do que se perdeu. Uma leitura simbólica que ecoa tanto na crise educacional quanto nos dilemas éticos das tecnologias contemporâneas.
Créditos na imagem de capa: egeoartes
Erich Georg
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