Não conto das ocorrências
dos fragmentos
do trio elétrico
dos vapores em que andei
te dou um mapa colorido da capa do caderno
o brinco de metal
o termômetro que marcava minha febre
minha febre
o laço que prendia o meu cabelo
Guilherme Mandaro
Guilherme Mandaro nasceu em 17 de dezembro de 1952, na cidade do Rio de Janeiro, destacando-se como uma figura proeminente na cena da poesia marginal dos anos 1970. Embora pouco conhecido, desempenhou um papel singular no cenário literário dessa geração, sendo creditada a ele a inovadora ideia de utilizar o mimeógrafo em experimentos literários. Além de professor de História em um curso pré-vestibular no centro do Rio de Janeiro, Mandaro foi envolvido na militância estudantil, conforme relatou seu amigo, o poeta Ricardo Chacal:
Ele tinha uma formação teórica forte, marxista e tal, mas era um jovem mais novo que eu, encantado também com aquela revolução da contracultura, das drogas, e isso nos aproximou muito. Aí ele falou: “tem um mimeógrafo lá no curso onde dou aula. Roda apostila, provas, panfletos para a divulgação das passeatas, vamos rodar lá!”. (BARROS; ROST, 2020, p. 38)
Charles Peixoto produziu através do mimeógrafo o livro Travessa Bertalha 11 (1971), seguido uma semana depois por Ricardo Chacal, que lançou o seu, intitulado Muito Prazer, Ricardo (1971), ambos diagramados por Mandaro. A produção desses livros envolvia recorte, grampeamento de papeis e a aplicação de algumas técnicas de editoração. Dessa maneira, teve início o processo de literatura em mimeógrafo, que se desenvolveu nesta geração ansiosa por liberdade de expressão, sem a preocupação excessiva com o lucro e contando com uma distribuição informal de sua produção em shows, praias, indo de “mão em mão”, possibilitando outras experiências libertárias e fugindo do processo mercadológico do livro.
Seguindo a máxima mcluhaniana de que “o meio é a mensagem”, o livro em mimeógrafo transformou a mensagem e seu tom, adotando uma linguagem distante dos cânones literários tradicionais e preservando a liberdade de expressão. Os temas eram urbanos, influenciados por elementos como rock, publicidade, modernismo oswaldiano, carnaval de rua carioca, entre outros. Mandaro não se considerava um poeta, mas sim um professor de história engajado nas questões políticas de seu tempo, o que transparecia em sua poesia.
O corpo pequeno coberto de jornais/manchado de sangue/cercado de discursos/sem ninguém que o amasse/prá além do ódio pelos assassinos/esfriando só/todos os gestos ausentes/tanta gente/o corpo pequeno coberto de jornais/manchado de sangue. (MANDARO, 1976, p. 23)
E chegando no país onde saí/imprimi a matriz morena/de sua miséria/entre os trópicos e meridianos/década paisagem/e as paisagens estavam desertas/as ruas quase vazias/os rostos muito cansados/as vontades todas desfeitas. (MANDARO, 1976, p.57)
Mandaro foi um dos fundadores do coletivo poético Nuvem Cigana e escreveu dois livros: Hotel de Deus (1976) e Trem da noite (1979). Morreu ainda jovem em 1979, ao pular da janela de seu prédio. O contexto da ditadura militar gerou nesta geração setentista um clima de angústia e desesperança, demarcando na poesia o silenciamento do período e suas ausências:
Há coisas que não se pode mais dizer/há coisas que ficarão por muito tempo caladas/caladas e presentes/ como um calafrio num corpo só/distante do movimento vivo/às vezes as coisas permanecem/como o fogo morto de alguma necessidade/precário o tempo do silêncio necessário/perpétuo o tempo de uma ausência imposta. (MANDARO, 1976)
Os tempos não mudaram como deviam/ e alguém me disse que o amor desaparece/ com a crise geral do capitalismo. (MANDARO, 1976, p.61)
O cenário urbano e litorâneo da cidade do Rio de Janeiro, especificamente o bairro de Copacabana, onde Mandaro viveu e morreu, foi de alguma forma protagonista de algumas das suas poesias. Nelas, sinaliza a desigualdade social de um bairro da zona azul, onde se percebe a dialética da construção e destruição, movimento incessante da modernidade observada pelo poeta flanêur carioca. O processo de coisificação, no qual pessoas tornam-se produtos consumidos rapidamente, a prepotência dos modus operantes do capitalismo, o esmagamento das subjetividades assistidas num momento de asfixiamento imposto pela ditadura militar, à negação do humano, a espontaneidade da escrita imersa num cotidiano urbano que se vivencia se incorporam a linguagem moderna e ao poeta que a descreve.
[…] Copacabana tem um lado de dentro, longe do mar, com seu povo, sua construção e destruição, Copacabana é dialética. Essa gente que todos os dias se vê nas ruas, todo esse povo, esse mundaréu de gente, não é mais de suburbanos, nordestinos e favelados, mas apenas miseráveis, tristes e pobres. A miséria não tem fim em Copacabana. Não é miséria geográfica, estatística, mensurável. É miséria sem fim. É miséria econômica, e humana, miséria apressada, miséria de trabalhadores, imigrantes que não voltam, é miséria de subúrbio, despejada pelo ônibus norte-sul. Copacabana é um sinal mudo e ferido desse tempo.
Reino de gente, babel de papel, como o tigre.
É na perda diária de identidades nas superfícies encardidas, nos brilhos opacos das garrafas, gemido de motores, barulho. Quem vem do norte, quem vem do morro, quem vem de trem. Nossa Senhora de Copacabana e Nossa Senhora da Penha em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Copacabana qualquer posto. ponto final. (MANDARO, 1979, p. 49)
A temática amorosa surge em sua poesia, contudo, adquirindo nuanças coletivas, onde o eu lírico se mistura “aos nós” da sociedade, ao mundo urbano, moderno, incompreensível e à vida cotidiana, com suas travessias, desastres e paixões em situações-limites:
Porque as pessoas não se entendem/com suas histórias e travessias/seus desastres e suas paixões/correndo loucas/prá trás de seus próprios armários/e eu que sonhei com cada uma delas/volto pouco a pouco sozinho/prá minha espera/histórias/travessias/e paixões. (MANDARO, 1976, p.25)
É perceptível em várias produções literárias marginais a relação intrínseca com o modernismo brasileiro, na sua relação de arte e vida, texto e contexto, a linguagem espontânea, o coloquial com o uso de gírias e a adoção de versos livres, imediatos, fugazes:
10,45h
Algo como a umidade que a chuva/encharcando-me, que a roupa molhada/deixa passar para o corpo/alguma coisa como um tremor que/como um temor tomou conta de mim/e quando estou mais fraco partido/inconstante úmido/com o sextante largado na mão/sem saber o que fazer com tanta estrela/as imagens sedutoras coloridas/e rasgada como um trago mais forte/uma droga heavy/os ossos gelados/o coração gelado/a cabeça parada num ponto qualquer/e minha última e pior oportunidade/de comprar cigarros no bar aberto. (MANDARO, 1979, p.53)
A experimentação dessa geração envolvida com a produção literária denominada como marginal foi singular, ainda que esses poetas tenham alguns traços em comum como o contexto histórico vivido, a classe social, o rompimento com o estabelecido, a busca pela verdade encontrada em versos e pessoas livres, o intento era o da vivência da poesia, processo individual e intransferível.
A poética de Guilherme Mandaro ampara-se na “matriz morena de sua miséria, entre os trópicos e meridianos de cada paisagem” (MANDARO, 1979, p. 57), no seu ser brasileiro, que vai além da zona sul, alcançando outros espaços e épocas. Seus versos confluem em história e poesia, em melancolia existencial de quem era jovem na ditadura militar e na alegria efêmera do desbunde, numa militância política reverberada em vivências poéticas com artimanhas, corpo na ação.
Na apresentação do livro Hotel de Deus afirma corajosamente: “Que não seja o medo da loucura que nos obrigue a baixar a bandeira da imaginação” (MANDARO, 1976, p. 31).
REFERÊNCIAS:
BARROS, Patrícia; ROST, Isis. Muito prazer, Chacal. BARROS, Patrícia; ROST, Isis (org.). In: Transas da contracultura brasileira. São Luís: Passagens, 2020. P. 30-50.
MANDARO, Guilherme. Hotel de Deus. Rio de Janeiro: Nuvem Cigana, 1976.
MANDARO, Guilherme. Trem da noite. Rio de Janeiro: Nuvem Cigana, 1979.
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