HH Magazine
Coluna Negra Braima Mané

Histórias públicas e suas impregnadas tutelas, algumas notas

 

“Agora, aqui pra nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes… Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se comportar? Não é à toa que eles vivem dizendo que ‘preto quando não caga na entrada caga na saída…’”1

Estes últimos meses fiz uma travessia em meio as discussões sobre democracia, política e política, história pública e historicidades democráticas. Uma overdose de textos e mais textos que refletem sobre os aspectos críticos que estão intricados nas produções de historiadoras e de historiadores que estão nas referências. Até mesmo a delimitação sobre cada conceito é tão múltipla que as discussões que enfrentei estão situadas numas de “cada pessoa escolhe aquilo que lhe apetece mais e toca o barco” e dentro de uma ética muito turva, subjetiva e precária. Bom, sendo assim, dou aqui meus pitacos sobre toda essa questão, obviamente aquilo que toca e não poderia ser diferente. Acredito que os povos pindorâmicos também passem por algo semelhante, mas cabe a eles a comunicação. Nesse texto não saiu dos moldes modernos de produção do conhecimento da história como um todo, apenas constato aqui alguns riscos. 

Percebo na leitura de variados textos sobre popularização da história, autoridade compartilhada e práticas da história pública um receio latente, mas que fica nas entrelinhas, subjacente. Esse receio pode ser sumarizado da seguinte forma: outras formas de fazer história não acadêmicas estão tomando uma dimensão cada vez maior ao passo de retirar a legitimação dos acadêmicos de escrever a mesma. Ou seja, a prerrogativa de controlar a narrativa da história das historiadoras e historiadores fez com que o debate sobre história pública adentrasse a instituição acadêmica. Isso pelo menos desde os anos 70 do XX mundo afora e cada canto uma experiência distinta. 

Discutindo dentro dos moldes modernos, não foi uma movimentação despretensiosa da galera acadêmica de partilhar uma comunidade imaginada qualquer com as outras pessoas, tão ativas quanto, na produção de suas histórias. De chega junto num debate humilde e ver o que os outros agentes sociais possuem para completar essa construção de histórias. Uma soma entre as diferentes linguagens, sujeitos, tecnologias, perspectivas e afins. Mas não foi muito bem assim. A coisa tá mais para se reinventar em momentos de crise e escassez, algo sistêmico ao mundo branco, do que para construção de mundos solidários. A escassez de empregos viabilizou a abertura para novos afazeres aquelas pessoas formadas nos cursos de história, somada ainda a uma economia-política liberal. Daí se tem os profissionais da história. 

Obviamente que esta não foi a única razão. O desenvolvimento tecnológico, querendo ou não, pulveriza as formas de comunicação e o povo não consome somente o que está no papel. Além do mais, algo para além disso tudo é que toda comunidade produz história legítima a partir de suas bases ontológicas e epistemológicas e vivem a partir dela. Ainda mais no brasil, onde a história do povo preto, por exemplo, somente veio aparecer na institucionalidade no século XIX e mesmo assim precária e repleta de falsificações defendidas. Bom, a questão é que a academia se viu contra a parede. Ela sabe que nunca foi a única a produzir história, mas dos anos 70 pra cá mundialmente se vê abalada em talvez nem mais fazer parte do hall da fama das pertencentes a história, uma vez que se o povo parar de legitimar a mesma outras formas de historiar darão conta, não é mesmo? Parece que no brasil a coisa ficou mais na pegada do engajamento. Vamos discutir sobre isso adiante. 

Vejo que assim se origina a história pública. É a saída que as historiadoras e historiadores encontraram para não perder legitimação, controle da história e defender seu cercado, ora. O que me incomoda não é defender seu cercado, mas sim uma falácia de se colocar ao lado do povo, de achar que está descendo do posto de autoria para partilhar a autoridade de escrita fazendo da história democrática. Ao meu ver isso não se sustenta. A preocupação da história pública é achar métodos dos mais diversos para se legitimar enquanto parte do povão, parte do povo dito brasileiro que paga aluguel, vive de renda mínima, sem condições de uma roupa daora, muitas vezes sem perspectiva no devir e que vive vendendo o almoço pra compra a janta, diria meu pai. Pelo menos é esse o brasil que tá em volta da minha casa alugada com vários vizinhos. 

A parte principal da discussão são os parâmetros. Isso não é discutido com razoabilidade. Razoável é a tia e o tio, que você vai lá partilhar a sua autoridade, dizer o que entendem o que é o tal do compartilhamento. Não sei onde essa informação fica, mas não são nos textos. Já penso se geral ali, a ser pesquisada, joga no bigode: junta o que você vai escrever e disputa aí uma política de estado x ou y que a comunidade tá precisando, sem essa de política partidária, edital, ças coisa que possui data de validade. Seria a hora que a porca iria torcer o rabo. Muitas pessoas iam pegar seu engajamento e ciscar em outro terreiro. Pois é, nesse quiproquó, os parâmetros da história pública que percebi na minha parca leitura estão entre: ouvir quem se entrevista; estar junto das pessoas em todo o processo de produção da escrita; abrir mão de algumas definições apriorísticas e utilizar definições das pessoas pesquisadas, a dita dialogia; criar acervos; criar documentários; criar podcasts; ampliar o debate estudado; tensionar o debate público com o intuito de construir políticas pública alheia via sensibilização, comunicação, disseminação e tudo mais. Quando não, rola pesquisar sobre tal assunto porque a historiadora ou o historiador foi tocado pelas injustiças outras que subjetivamente lhe atravessam. Uma espécie de pagamento aos pecados de origem dos brancos no brasil. Tudo isso é fazer uma história com as pessoas e não sobre as pessoas. Engraçado que nos textos também não vi a escrita partilhada com tais sujeitos da pesquisa, vai lá saber o motivo. Nem ao menos alguma invenção de texto-audiovisual, música-texto-vídeo. Sei lá, qualquer coisa para que todas as pessoas que participaram também estejam nessa discussão crítica sobre a tal da história pública. 

Voltando aos parâmetros. Os parâmetros poderiam ser outros? Ao meu ver, sim. Primeiro: todas as pessoas pertencem a algum laço de sociabilidade e não necessariamente precisam sair deles para produzir história, mesmo que haja discursos e mais discursos sobre horizontalidade no processo da história pública. Pô, a história é colonial em sua ontologia e não vai ser meia dúzia de gato pingado que descolonizou a parada agora, caso isso seja possível. Sabe porque as pessoas não precisam sair de seus laços de sociabilidade para produzir história? Porque no brasil, em nosso contexto contemporâneo, o que não falta é história feita por um terceiro. Daquelas pessoas que participam, fica junto, mas depois de pronto, quando muito, manda o livro, o documentário para dizer que fez a sua parte. A regra é falar sobre o outro, compreende? Ou essa não é a pegada da ciência moderna? Catalogar, organizar e definir a realidade universal. Talvez hoje, depois das discussões sobre a pós-modernidade, a ciência diga que tem várias fragmentações da realidade, mas que cabe aos cientistas continuar catalogando e organizando as mesmas. No contexto que vivemos e o politizando as pessoas deveriam produzir por si mesmas. Dentro do padrão moderno de história, pro momento nem estou abrindo mão dele. Haveria uma quebra entre pesquisador/a e objeto, no máximo. Antes que questionem se esta movimentação política contextual inviabilizaria o debate historiográfico, ora, defendo que não. Vejamos. 

Uma vez que as pessoas que vivem e estão produzindo sobre suas comunidades debateriam com outras narrativas sobre o tema já pesquisado. Como disse o que não falta é escrita da história feita por um terceiro sobre dado tema. Não somente na historiografia, mas em outros meios de produção também. Alguns vão dizer que isso vai acabar com o movimento de crítica. Vai não, mas agora quem vai produzir a crítica é quem está atravessado pela discussão em sua existência no momento de sua própria produção. Debates sobre os mais diversos temas não faltará, o que muda é quem fará os mesmos. Enquanto isso, a galera que escreve sobre o outro pode produzir sobre si e suas comunidades, aliás, tem muitas experiências sociais não historiada ainda dos brancos que possuem suas vivências num brasil racializador, cindido em raças. Essas histórias eu gostaria de ver para depois geral nos seminários, colóquios, congressos, reuniões e ademais comparar com experiências das pessoas pretas no mesmo contexto histórico e entender cada vez mais como o racismo atua a depender da cor da pele nessa diáspora. E aí todas as pessoas estarão implicadas, não vai ter como abstrair e muito menos usar ferramentas discursivas para se isentar. É preto no branco. 

O que inviabiliza essa participação produtiva no caso do povo preto? O problema é: as pessoas não tem condições de exercerem tal atividade. Por que? Porque estão na correria para a casa não cair. Tem que pagar as contas, comer e acordar cedo no outro dia. Labuta incessante. Nos casos das pessoas pretas do interior estão incessantemente travando uma luta contra jagunços e empreiteiras que matam para usurpar terras, rios, matas e por aí vai. Aqui entra o segundo ponto dos parâmetros: que tal as pessoas da história ao invés de contar sobre histórias alheias se mexe para a reparação história ocorrer no br aos pretos? Mas vão fazer o que? Fazer greves; barrotar a rua e instituições com protestos; se colocar como linha de frente numa possível guerra civil que, por aqui, somente assola a negrada há 500 anos. Mas isso ninguém. Vai que morre no processo e os louros ficam com quem? Esse para mim é um ato antirracista razoável. O problema é que os movimentos negros deixaram o branco dizer o que é antirracismo, mas isso é uma roupa que os MNs ainda vão precisar lavar. Portanto, quando a negrada estiver minimamente inserida na dinâmica do que chamam cidadania do estado democrático de direitos, certamente irão realizar as produções acadêmicas, documentais, cinematográficas, museológicas, televisivas e afins. Isso é uma constante antropológica universal: toda comunidade produz sobre si de diversas formas. Ou, caso a negrada, quiser abrir mão de produzir, que abram, mas por uma escolha autônoma e consciente e não pelo racismo que impõe a dinâmica social. Diante de uma reparação história, e não políticas liberais situadas na exceção, a comunidade preta vai poder competir dentro da proposta da cidadania liberal que o capitalismo propõe. Certo? Sendo assim, antes de debater história pública o debate é compreender que não existe esse tal de público, de democracia, de estado-nação e de cidadania para mais de 50% da população que gostam de chamar de brasileira. Até aí nada novo sob o sol, o debate sobre inserção do negro na sociedade de classes é pelo menos do XIX, mas estou eu aqui no XXI escrevendo a mesma ladainha, mas também você pode voltar a imagem que compõe propositalmente este texto. 

Finalizo, incorporando a neguinha atrevida que catimba a discurseira daquilo já provisoriamente pacificado, me questionando: quantas pessoas brancas vão querer ser esse boi de piranha? Abrir mão da estabilidade de vida material e psicológica para outra raça ser inserida nos direitos civis, sociais e políticos. Se doar ao ponto de não se beneficiar para que a dita nação floresça de fato nas gerações posteriores. Uma espécie de altruísmo radical por uma vida inteira, pois reparação história não virá no próximo mandado do lula em 2022. Ainda mais numa conjuntura onde a farinha é pouca e determina quem, for ligeiro, fazer seu pirão primeiro. Por não acreditar nesta proposta acima, feita numa confabulação proposital para instigar constrangimento, percebo a mesmice da toada: a história se mantém aquela quem tutela a negrada via os mais diversos discursos de amiguismos, aliados de luta e afins. Aqui um detalhe: tendo uma negrada que defende dada politicagem, mesmo que de laranja. Uma pena! Porém, no fim do dia, quem continua apertado na escravidão (hoje dizem serviços), usurpado de terra, atravessados por balas cravejadas, famílias destruídas, sem soberania alimentar, exposto as vulnerabilidades de todos os tipos e na mão da história pública – que não se distingue de outras áreas da história – é a mesma parcela social no cativeiro brasil: a preta. E que as exceções não sejam tentativa de argumentação para provocar expressões de teor especulativo como “abrir possibilidades” ou “são experiências potentes”. Apesar das ciências humanas ter incorporado essa parada aí já de algum tempo. De especulação já chega o mercado financeiro que muitos progressistas abominam dada economia-política neoliberal. Na economia-política não é justificável, mas no campo de produção acadêmica rola? Tudo isso para pelejar aqui: sejamos lógicos, a exceção afirma a regra. Eis os limites reais dum aqui e agora secular. 

 

 

 


REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Racismo e sexismo na cultura brasileira. Apresentação na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e problemas da População Negra no Brasil”, IV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, 29 a 31 de outubro de 1980. 

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

 

 

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