O conceito de “historicismo” abarca uma complexidade de sentidos e problemáticas que estão presentes em inúmeras discussões sobre o pensamento histórico contemporâneo. À luz dessa complexidade, seu caráter difuso e polissêmico se constitui como um desafio aos historiadores profissionais e leva ainda hoje muitos autores a evitarem o uso do termo. Entretanto, apesar dos seus vários significados, o historicismo pode ser definido genericamente como uma forma de abordagem que se centra na importância da história para a compreensão dos fenômenos e culturas.
Para a ciência histórica, a perspectiva historicista surgiu na segunda metade do século XVIII na Europa ocidental e fundamentou-se sob a noção de que as configurações do mundo humano são resultado de processos históricos passíveis de serem reconstruídos mentalmente e compreendidos. A partir de então o termo historicismo foi empregado com múltiplos significados, que, por vezes, destoavam entre si. No século XX, essas dissidências tomaram a cena e a visão de mundo historicista passou a ser contestada, dando origem ao que chamamos de “crise do historicismo”
Foi pensando nessa complexa rede de discussões que preparamos uma lista temática com seis artigos da revista História da Historiografia que se debruçam sobre o historicismo e seus desdobramentos. Os artigos aqui reunidos são recomendações fundamentais para compreender os ecos que o pensamento historicista continua a produzir sobre o pensamento histórico contemporâneo. Longe de ser uma discussão simples, buscamos reunir leituras que revisitam o tema como meio para reflexão dos dilemas historiográficos enfrentados hoje e enfatizam a contribuição do historicismo à teoria da história. Confira:
1) A resposta de Otto Hintze para a crise do historicismo
Marcelo Durão Rodrigues da Cunha
Durante muito tempo, uma visão simplista sobre a historiografia alemã fez com ela fosse vista por alguns historiadores como um historicismo simplório e politicamente incauto. É com base nessa problemática que o artigo buscar trazer à tona as contribuições teóricas oferecidas pelo historiador Otto Hintze ao contexto intelectual vivido pela ciência histórica alemã nas décadas finais do Oitocentos e na primeira metade do século XX.
O autor parte do pressuposto de que as posições de Hintze se constituíram em grande medida como uma tentativa de resposta à crise do historicismo. À Luz do conceito de história na modernidade ocidental, Cunha busca compreender a ética individual de Hintze como uma posição derivada da dessacralização da política do Estado moderno e da sua reconceitualização científica do historicismo. O argumento central do artigo é de que tanto a crise do historicismo quanto as respostas oferecidas por Hintze para sua superação permanecem presentes para refletirmos a respeito de alguns desafios vivido pela historiografia profissional ainda no século XXI.
2) Historicismo fraco: sobre hierarquias de virtudes e de metas intelectuais
Em que medida o fato de os historiadores privilegiarem certas virtudes e não outras podem influir sobre a suas tentativas de compreensão do passado? É a partir da noção de historicismo que o artigo de Herman Paul busca responder essa questão e reconciliar a sensibilidade historicista e uma abordagem não-relativista da pesquisa histórica acadêmica do outro.
Para fazer essa análise, Herman Paul distingue as hierarquias de virtudes intelectuais e hierarquias de metas intelectuais. O autor mostra que a primeira hierarquia rejeita um modelo único de virtuosidade histórica em favor de um modelo que permite significativas variações no peso atribuído as virtudes intelectuais e ao modo de obter conhecimento histórico e focaliza as situações historiográficas. A segunda hierarquia concede espaço para que sejam perseguidas as metas intelectuais, porém afasta o espectro do relativismo. Como resultado, o argumento desenvolvido no artigo é de que a posição emergente das hierarquias de metas intelectuais classifica uma forma de historicismo fraco.
3) O que finda é o que fica: tradição em jogo, ensaio em xeque
Pensar o uso do discurso histórico é uma questão que perpassa inevitavelmente pelas tradições e limites discursivos da própria disciplina. Ancorado nessa reflexão, este ensaio se propõe a analisar a meditação de Lezama Lima aceca da tradição latino-americana e seus desdobramentos sobre os usos da linguagem.
Inicialmente, o artigo expõe as diferenciações da tradição cultural de Alejo Carpentier. Em seguida, o autor mostra como Lezama Lima relacionou tradição e historicidade, ao mesmo tempo em que coloca em seu centro o problema da experiência histórica, por meio da figura retórica da emulação. Através da percepção de que a visão histórica pela poesia foi uma questão central para o romancista cubano, Eduardo Felippe chama a atenção para a abertura de outros recursos para a historiografia por meio da crítica de Lima ao historicismo e a ênfase no reconhecimento.
4) Porque a distância histórica não é um problema
O historicismo desenvolvimentista do século XIX recorreu a princípios narrativos para estabelecer a continuidade entre passado e presente. Ao analisar como as preocupações modernas e pós-modernas mobilizaram e guiaram essas seleções entre os fatos, o objetivo deste artigo é propor uma dissipação dos problemas da distância histórica.
Mark Bevir inicia o artigo contextualizando que as preocupações acerca da continuidade entre passado e presente tomaram corpo no século XX, quando os historicistas, preocupados em evitar o anacronismo, levantaram o espectro da distância histórica. O artigo mostra assim como esses princípios narrativos levaram os historicistas modernos a apelarem aos fatos atomizados para validar suas narrativas, culminando nos conflitos com o pensamento dos pós-modernos do final do século XX. O argumento desenvolvido é que as preocupações acerca da distância histórica surgiram junto ao historicismo moderno, e que elas desapareceram com o pós-fundacionismo.
5) O problema do historicismo e as ciências do espírito no século XX
Gunter Scholtz
É possível desfazer as avalições negativas que resultaram na ideia de que o historicismo precisava ser combatido e superado no campo da teoria da ciência? É buscando responder esta questão que o artigo de Scholtz analisa a relevância dos problemas tratados pelo historicismo, mostrando sua importância em nossos dias, dentro do escopo das ciências humanas.
Para tanto, Gunter Scholtz afirma que é necessário compreender o historicismo de forma mais complexa, de maneira a não o reduzir a qualquer uma de suas definições habituais. Na primeira parte do artigo, se esboça as reações e respostas mais importantes por parte da ciência histórica ao problema do historicismo. Posteriormente, o autor elabora um breve resumo para discutir o atual estado do problema. Com base nesse panorama, o autor defende, portanto, a criação das as condições para o entendimento do historicismo para além do “relativismo” e do “positivismo”, mas como um apelo ao reconhecimento da multiplicidade das tradições, o que torna possível um reconhecimento dentro da diversidade humana.
6) Anos de aprendizagem de um jurista formado “numa perspectiva histórica”: Max Weber e o historicismo
São ainda raros os estudos sobre a trajetória intelectual de Max Weber durante os anos iniciais de sua formação. Através das questões abertas por essa lacuna, este artigo se debruça assim sobre a existência de um “jovem Werber” com o objetivo de analisar sua inserção na tradição historicista.
Através da análise da sua correspondência, o artigo de da Mata pretende demonstrar a importância de historiadores como Erdmannsdörffer, Baumgarten, Ranke e Treitschke para o jovem jurista Weber e como sua formação se inseriu plenamente nos quadros da tradição historicista da época. A partir da análise dessas relações do jurista com o campo historiográfico, o argumento desenvolvido pelo autor é de que Max Weber foi profundamente marcado por aquela mesma perspectiva historicista da qual, para muitos, ele teria sido um dos maiores adversários. Em outros termos, Max Weber teria se tornado o Max Weber que conhecemos no berço esplêndido do historicismo alemão.
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