Consolidada a partir dos anos de 1960, a música pop representa atualmente uma das maiores parcelas da indústria fonográfica internacional, em especial do mainstream estadunidense. Falar que sua consolidação ocorreu nesse contexto não significa diminuir ou esquecer artistas anteriores fundamentais para o campo como Cher, Diana Ross, Ella Fitzgerald e Elton John, que são hoje referência para o próprio gênero, mas sim destacar que foi a partir da segunda metade do século XX que o gênero passou a se estruturar enquanto um campo especifico.
Nesta década ocorreram dois dos principais fenômenos para formação do campo: o uso do termo como forma de contraposição ao Rock, que a nesse período tenderia a se revestir por um discurso de gênero “alternativo”, e expansão da música disco e da dance music. Nas décadas seguintes, nomes como Donna Summer, Gloria Estefan, Madonna, Whitney Houston, Michael Jackson e Mariah Carey contribuíram diretamente para definir o que a partir de então ficaria conhecido como música pop, em especial partindo para a produção de canções em diálogo com outros suportes como os videoclipes popularizados na década de 1980.
Estes mesmos nomes foram fundamentais não apenas para a consolidação do que a indústria fonográfica (cultural) dos Estados Unidos passou a definir como música pop, mas também para a consolidação do que seria seu campo. Um campo artístico é, relembrando as considerações de Pierre Bourdieu (1992), elaborado e composto a partir de teias de sociabilidade de sujeitos que, apesar de diferentes visões, atuam sob um mesmo espaço, veículo ou contexto de maneira a terem pontos em comum que os aproximam. Dotado de regras próprias, estes campos atualizam-se constantemente, sendo que essa manutenção ocorre por regras que os sujeitos que os integram criam.
Esses artistas que compuseram, aquilo que chamaremos de “primeira geração da música pop” foram peças chaves justamente para compor esse campo, responsáveis inclusive pela determinação de perfis e elementos chaves como, por exemplo, a cultura de divas, a inserção do piano eletrônico, as performances teatralizadas e dançantes e a já mencionada produção de videoclipes. Tais artistas foram igualmente fundamentais para a própria conceitualização do que seria a música pop, que é constantemente traduzida de maneira equivocada para o Brasil em torno da ideia de música popular.
No caso da música pop, a abreviação faria referência a ideia de produções populares-midiáticas, não remetendo necessariamente a canções folclóricas e/ou tradicionais de uma determinada região e/ou grupo social, o que se enquadraria no Folk, por exemplo (SOARES, 2015). Ou seja, apesar de sua relação popular, o campo da música pop construiu um gênero música que não se definiria exclusivamente por sua sonoridade, mas principalmente pela recepção, pelo impacto cultural, o consumo e especialmente sua inserção no mainstream.
Nesse contexto, tais práticas criaram esse laço comum e uma identidade geracional que, não baseada em fatores biológicos, foi transformada na representação destes artistas e do próprio campo (SIRINELLI, 2006). Contudo, tais práticas historicamente situadas, ao mesmo tempo que estipularam as regras iniciais da indústria da música pop e formaram a primeira geração de artística, é hoje o que dá base para a crise que vive o próprio campo, mergulhado entre outros fatores em um embate de temporalidades e de narrativas. Desde os anos 1990, observam-se embates dentro da indústria entre diferentes gerações que constituem o campo, com especial ênfase entre os artistas emergentes entre 1990 e o início dos anos 2000 e aqueles nomeados de “New pop” e/ou “Young pop”.
Estes embates geralmente podem ser observados nas premiações musicais, ocasiões onde se chancela uma carreira ou contribuição artística para a indústria, como no MTV Video Music Awards de 2015. Neste evento em questão a cantora P!nk, uma das principais divas e representantes da música pop nos anos 2000 se pronunciou no tapete vermelho sobre o atual cenário do campo, afirmando estar sentindo-se “envergonhada” do próprio segmento que produziria cada vez mais canções comerciais sem uma mensagem a ser transmitida. No Brasil, alguns dias antes, uma crítica semelhante teria sido feita a artistas que inseridos no que poderia ser chamado de música pop brasileira. Durante a realização da 22ª edição do Prêmio Multishow, o artista José de Abreu teceu críticas aos prêmios entregues a nomes como Anitta e Luan Santana. Na visão do ator, estes nomes representariam o fim da música brasileira, o que foi respondido através do twitter pela cantora Anitta com uma mensagem afirmando a necessidade de se abrir a uma nova geração de artistas.
Nos dois casos destacados percebe-se a presença de dois elementos: o conceito de geração e a ideia de uma suposta crise da indústria. Diretamente interligados, estes dois pontos possuem como vínculo em especial a noção de temporalidade que atravessa os debates em torno da indústria fonográfica desde o final do século passado. O discurso de crise na indústria fonográfica, e de maneira mais ampla na cultural, está presente desde sua própria consolidação no século XX, sendo que o que diferencia os contextos são suas causas. A mudança de suporte, a emergência de um novo gênero musical, o desenvolvimento tecnológico são apenas alguns dos fatores que motivaram diferentes discursos de crise no setor, que foram responsáveis por reorganizações da mesma, assim como por debates e discussões na sociedade e na imprensa.
Esse mesmo processo voltou a ocorrer recentemente, contudo com a noção de geração no cerne dos debates, sendo a crise da indústria atravessa por uma ideia de crise da temporalidade. Um dos principais teóricos a formular essa hipótese, não restrita apenas ao mercado musical, por Simon Reynolds (2011) ao discutir a ideia de retromania. Reynolds destaca que um dos principais elementos geradores de tensões na cultura pop recente seria um apego constante a década de 1990, em parte pela presença de sujeitos que a viveram, que geraria tensões e bloqueios no século XXI. Potencialmente essa presença da última década do século passado é chamada de retromania, uma menção direta aos hábitos da moda e cultura retro que invocam um passado próximo através de lógicas de mercado e processos de identificação geracional.
Seria justamente a retromania um elemento fundamental nestes debates, para não dizer seu motivador, tendo em vista que eles atravessam não apenas uma falha na comunicação e interpretação entre sujeitos de gerações diferentes, mas a insistência da legitimação de um passado artístico mais “puro” que o presente. Esse “passado” invocado inclusive nas falas de P!nk e José de Abreu apontam para um peso nostálgico no presente referente ao cenário da música pop contemporânea. É como se, dentro dessa crise da indústria, a temporalidade e a memória não apenas ocupassem um papel fundamental, mas seria ela própria medida por um sentimento de não cumprimento de uma promessa de futuro (HUYSSEN, 2014).
Para artistas que viveram um contexto anterior, seu olhar sobre o presente traz o peso do anacronismo que é próprio da memória e que media seu significado. Ao mesmo tempo, os artistas que vivem este contexto invocam o presente como temporalidade principal, através da “imagem do novo”. Existe nesse suposto contexto de crise da indústria um espaço um conflito de temporalidades que reside na coexistência de múltiplos estratos de tempos e experiência. Nesse sentido, a crise da indústria da música pop invocada em discursos é, para além de questões de mercado, igualmente uma crise na ordem do tempo. Ao mesmo tempo que essa crise existiria, os/as artistas que a invocam e protagonizam continuam produzindo suas canções, videoclipes e realizando performances, naturalizando e contribuindo para as discussões ao mesmo tempo que outros/as cantores/as novos passam a incorporar o campo.
Mais do que respostas ou um diagnóstico concluído, esse pequeno ensaio é uma provocação para o debate, em especial aos/as historiadores/as do tempo presente para um estranhamento e uma observação acerca destes processos pois, ao contrário do que muitas vezes somos levados a crer pela visão mercadológica e capitalista não só de lucros e vendas vive essa indústria (ADORNO, 1986). Parte de sua existência, e dos próprios lucros, se dá pela discussão e uso das temporalidades que estão tão internacionalizados que nem mesmo são percebidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. p. 92-99.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past. Nova Iorque: Macmillan, 2011.
SIRINELLI, Jean-François. A Geração. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína (orgs). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.
SOARES, Thiago. Percursos para estudos sobre música pop. In: SÁ, Simone Pereira de; CARREIRO, Rodrigo; FERRARAZ, Rogério (Orgs.) Cultura Pop. Salvador: EDUFBA; Brasilia: Compós, 2015.
[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “40”][/authorbox]
Igor Lemos Moreira
Related posts
Notícias
História da Historiografia
História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography
ISSN: 1983-9928
Qualis Periódiocos:
A1 História / A2 Filosofia
Acesse a edição atual da revista