HH Magazine
Ensaios e opiniões

Melancolia e Temporalidade

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

 

 

 

O tempo é a atmosfera que envolve a melancolia[1].

 

De início, quero destacar que esta análise trata o quadrante da melancolia enquanto um fenômeno que envolve modus de relacionamento de homens e mulheres com/no tempo e não enquanto um sintoma psicopatológico[2]. O que quero dizer é que pensar a melancolia é pensar sobre os significados, reações e sentimentos que envolvem os sujeitos, em sua diversidade, quando uma espécie de disritmia se faz presente; quando de maneira mais ou menos radical, enquanto uma possibilidade de busca, os modos como apreendemos o mundo, como o atualizamos e o reconfiguramos, se revela em um hiato com relação ao tempo da ação. Não quero dizer que haveria uma suspensão do agir no mundo, mas uma interrupção do que nos faria sentir de acordo com a temporalidade experimentada.

A tonalidade saturnina[3], considerando-se o que foi afirmado acima, destaca um paradoxo central da experiência temporal moderna, de modo geral, no século XX. O que se intensifica é uma sensibilidade que ao ser anunciada evidencia uma estranheza caracterizada enquanto algo que parece estar onde, talvez, não deveria, mas que, ao mesmo tempo, se faz presente em suas únicas condições possíveis. Este caráter paradoxal da experiência moderna, algo (que se sente) que não deveria estar mas que se faz presente nestas que seriam as únicas condições possíveis, é de extrema relevância para pensarmos o quadrante da melancolia.

De modo mais sintético, Jean Starobinski afirma que uma das figuras mais características da melancolia, ou dos sujeitos sob o signo de saturno, é “a discordância entre tempo exterior e o tempo interior”[4]. Marshal Berman é pontual em sua metáfora ao afirmar que, para os modernos, o passado se torna um “guarda-roupas onde todas as fantasias estão guardadas” e que ao vesti-las, os modernos percebem que “nenhuma realmente lhe serve”, o que se torna um fardo pois “o homem moderno “jamais se mostrará bem trajado”, por que nenhum papel social nos tempos modernos é para ele um figurino perfeito”[5].

Este desconforto geral, para Berman, demonstra uma diferença fundamental com relação à experiência moderna do século XIX, pois “Se prestarmos atenção àquilo que escritores e pensadores do século XX afirmam sobre a modernidade e os comparamos àqueles de um século atrás, encontraremos um radical achatamento de perspectiva uma diminuição do espectro imaginativo.”[6]. Ou mesmo que haveria ocorrido uma reconfiguração do tempo histórico, ou seja, que o tensionamento entre espaço de experiência e horizonte de expectativa resultou em um duplo encurtamento. Sendo assim, esta breve pontuação do que seria a melancolia para este ensaio, além desta face da modernidade no século passado, constrói a moldura geral do que se propõe expor a partir da leitura através das atmosferas (stimmungen).

Se, como levantamos no parágrafo anterior, ocorre um encurtamento dos espaços de experiência e dos horizontes de expectativas, algo fora, com isso, alterado na constituição destas categorias enquanto “dado antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia ser imaginada”[7]. A constituição destas categorias, como é exposto por Reinhart Koselleck, enquanto mais ou menos alargadas se dá na “tensão entre experiência e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, fazendo surgir o tempo histórico”[8]. Este “algo alterado” dentro do que se disponibiliza como experiência e expectativa, demonstra a relevância do que o historiador alemão chama de “coeficientes de mudanças”[9], ou seja, os fins mais ou menos estabelecidos – como o lutar pela liberdade e pela democracia – para o agir ou não, ou melhor, os referenciais para a ação protensiva ou para o recalque.

Não por um acaso, quando destaco a preponderância dos coeficientes de mudanças nas (re)configurações de experiências e expectativas, por isso na tensão entre elas, indico, também, que as atmosferas (stimmungen) emergem destas tensões, não enquanto “tempo histórico” como apontado por Koselleck, mas como disposição afetiva, ou estado-de-ânimo, que intensifica determinada tonalidade em um quadro sentimental, neste caso a melancolia. Este relacionamento entre uma tonalidade afetiva melancólica e a temporalidade é bem descrita através do argumento de Ludwig Binswanger, citado por Jean Starobinski, em que “a melancolia deve ser compreendida, em sua essência, como uma modificação que intervém na estrutura da objetividade temporal. Incapaz de efetuar o ato “protensivo” que o liga a um futuro, o melancólico vê desmoronar o próprio fundamento de seu presente.”[10].

Considerando-se a melancolia enquanto uma atmosfera (stimmung), vale destacar que atentar para esta mudança na estrutura da objetividade temporal, ou seja, para a maneira como passado, presente e futuro se desestabilizam no quadro melancólico, é considerar alguns elementos constituintes deste quadro: a caracterização desta temporalidade e a constituição do espaço onde se age. O que queremos destacar é um relacionamento específico, no quadrante da melancolia, entre tempo e espaço. Isto não quer dizer que haja uma temporalidade mais organizada fora do quadro melancólico, mas que, pelo menos minimamente, o relacionamento entre passado, presente e futuro se dá dentro de expectativas e experiências mais ou menos estabelecidas que, de certa maneira, sofrem algumas mudanças em sua estrutura. Com isso, o que Starobinski aponta como fundamento da relação entre melancolia e tempo é a impossibilidade do movimento, “ “natural”, isto é, não problemático e não refletido”[11].

Tratando-se da questão do espaço no quadrante da melancolia, pode-se qualifica-lo como uma relação que desvela um paradoxo, um espaço demasiadamente aberto (infinito) fadado ao seu fim (finitude).

 

“Acrescentemos que se trata de um espaço-tempo: o abismo é também o lapso infinito que se abre entre a vida mortalmente atingida e a morte definitiva; é o intervalo entre o que anuncia à vida a sua condenação e verdadeira morte. O intervalo se alarga na dimensão de uma eternidade”[12].

 

Neste espaço “A consciência se vê encerrada, sem esperança de saída, ou sacudida de um lado a outro, sem esperança de acolhida”[13]. O que estamos querendo apontar é que no quadrante da melancolia se apresenta, acompanhada desta mudança na objetividade temporal, um sentimento de desterro.

Destacamos, neste sentido, dois elementos constitutivos de uma tonalidade melancólica: o sentimento de desterro e uma espécie de marasmo no agir, a dificuldade ou impossibilidade de realização do ato protensivo. O que estamos tentando pensar com tais categorias é, no caso do desterro, uma sensação de estranhamento, de estrangeiridade[14], com relação ao espaço em que se atua e, no caso do marasmo, uma sensação de impossibilidade de um agir temporalmente orientado, o que abre espaço para considerações pessimistas sobre o mundo e para um agir indiferente.

Neste sentido, na medida em que os coeficientes de mudança, em determinada temporalidade, se fragilizam e possibilitam a emergência de determinadas atmosferas (stimmung), apontamos que a intensificação destas categorias e sentimentos, marasmo e desterro, são marcantes em determinada literatura[15] no Brasil na década de 1970[16]. Tais elementos se apresentam tanto em seu conteúdo, a tematização e representação do “real”[17], quanto da estética que envolve este conteúdo narrado, seja o seu caráter naturalista, de protesto ou da violência na relação entre quem narra e quem lê[18]. Esta intensificação de determinado quadro sentimental nos incita a refletir sobre as possibilidades existenciais de aberturas em um presente, digamos, fechado (considerando-se o aparato institucional de controle do Estado na década de 70) e nas possibilidades de leitura do próprio presente.

Considerar a relação entre a melancolia, enquanto atmosfera (stimmung), e temporalidade, mais do que atestar a imobilidade do presente e do futuro e a não realização da expectativa passada, é atentar e buscar possibilidades de realizar-se, enquanto projeto pessoal e coletivo, em meio a intensificação da absurdidade da existência e da inconsistência da inevitabilidade do tempo. Esta intensificação da atmosfera melancólica, a sensação de deslocamento temporal e da dissolução do que se identificava enquanto lugar de origem, pode indicar uma reavaliação do que se entende enquanto este realizar-se no mundo contemporâneo, ou seja, que flua em cada poro do corpo a dimensão, até então insuperável, da finitude da existência, dando urgência e relevância àquilo que tendemos a lançar ao tempo. Urgência e revolta que não se confundem com um desespero cego.

 

 

 


NOTAS

[1] LIMA, Luiz Costa. Melancolia: literatura / Luiz Costa Lima. São Paulo. Editora Unesp, 2017.

[2] Não ignoramos que a temporalidade é relevante para a análise clínica da melancolia, mas queremos destacar como e se o quadro pode apontar, enquanto uma atmosfera (stimmung), uma reconfiguração no relacionamento com o tempo.

[3] Como apontam Raymond Klibansky, Erwin Panofsky and Fritz Saxl, “According to this doctrine stars elements and humours could and must be linked with their corresponding colours. The colour of black bile is dark and black; its nature, like that of the earth, is cold and dry. But the colour of Saturn also is dark and black, so that Saturn too must be cold and dry by nature. Similarly red Mars is coupled with red bile, Jupiter with blood, and the moon with phlegm. ” Ver: KLIBANSKU, Raymond; PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Saturn and Melancholy. Studies in the History of Natural Philosophy, Religion, and Art. KRAUS REPRINT. Nendeln/Liechtenstein, 1979. Pp. 127-128.

[4] STAROBINSKI, 2016, P. 469-470.

[5] BERMAN, 1986, P. 22.

[6] Id. 6, P. 23.

[7] KOSELLECK, 2006, P. 308.

[8] Id. 8, P. 308.

[9] Ibd. 8, P. 317.

[10] STAROBINSKI, 2016, P. 493. Grifos meus.

[11] Id. 11, P. 142.

[12] Ibd. 11, P. 342.

[13] STAROBINSKI, 2016, P. 491.

[14] KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos / Julia Kristeva; tradução Maria Carlota Carvalho Gomes. – Rio de Janeiro: Rocco. 1994.

[15] Destacaremos algumas obras: Feliz Ano Novo (1975) de Rubem Fonseca, Um cão uivando para a lua (1972), Os homens dos pés redondos (1973), Essa terra (1973), Carta ao bispo (1979) de Antônio Torres, Quarup (1969) de Antônio Callado, Zero (1975), Dentes ao Sol (1976) de Ignácio de Loyola Brandão, As meninas (1973) de Lygia Fagundes Telles, Lavoura Arcaica (1975), Um copo de cólera (1978) de Raduan Nassar, entre outros.

[16] “Se a respeito dos escritores dos anos 50 falei na dificuldade em optar, no fim da apreciação “disjuntiva”, com relação aos que avultam no decênio de 70 pode-se falar em verdadeira, legitimação da pluralidade. Não se trata mais da coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. A ficção recebe na carne mais sensível o impacto do boom jornalístico moderno, do espantoso incremento de revistas e pequenos semanários, da propaganda, da televisão, das vanguardas poéticas que atuam desde o fim dos anos 50, sobretudo o concretismo, storm-center que abalou hábitos mentais, inclusive porque se apoiou em reflexão teórica exigente. Uma ideia do que há de característico na ficção mais recente pode ser dada pela coleção Nosso Tempo, da Editora Ática, de São Paulo, que publica os jovens em edições cujo projeto gráfico arrojado e vistoso tem um relevo equivalente ao do texto, formando ambos, um conjunto anticonvencional, que agride o leitor ao mesmo tempo que o envolve. E o envolvimento agressivo parece uma das chaves para se entender a nossa ficção presente. ” [16] CÂNDIDO, Antônio. A nova narrativa. IN.: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. P.209-210.

[17] SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? : uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.; SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos / Flora Süssekind. – 2. Ed. Revista – Belo horizonte : Editora UFMG, 2004.

[18] CÂNDIDO, Antônio. A nova narrativa. IN.: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989; SILVERMAN, Malcolm. Moderna ficção brasileira: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Brasília: INL 1978; SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2000.

 

 

 


Créditos na imagem: António Dacosta, Melancolia, 1942.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE O AUTOR” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “30”][/authorbox]

Related posts

Ebulição

Tadeu Goes
5 anos ago

O enigma do Salvator Mundi

Pedro Miguel Camargo da Cunha Rego
2 anos ago

Habitar o mundo: por uma metáfora viva

Kalil Tavares Fonteles
4 anos ago
Sair da versão mobile