HH Magazine
Trânsitos Cotidianos

Memória compartilhada

Caracas, 19 de fevereiro de 19: Hoje pela manhã Adela, a mãe do Luis, deixou-me uma mensagem no celular avisando que não ia levar os filhos para o colégio. Por sorte, ela avisou bem cedinho e, por isso, consegui preparar rapidinho o café da manhã, as merendas e o almoço do Aquiles e o meu, que basicamente consistiu numa arepa com queso llanero ralado no café, uma fatia de pão de forma com geleia de morango na merenda do Aquiles e uma marmita de arroz com feijão preto e queijo llanero ralado por cima para o almoço. A frequência recorrente do arroz e do feijão no cardápio da maioria das casas na Venezuela hoje tem a ver com o fato de serem um dos poucos alimentos a que temos acesso graças à caixa do CLAP, que é o pacote de comida subsidiada distribuída pelo governo através dos “conselhos comunais” ou da administração pública. Cada grupo familiar tem o direito a receber uma caixa do CLAP por mês, desde que algum membro da família não seja explicitamente opositor ao governo. Nesses casos, e dependendo da disposição dos responsáveis locais da distribuição do CLAP, há o risco de a família não receber a sua caixa, o que pode representar um cenário catastrófico para sua subsistência.

Enquanto Aquiles tomava banho, eu terminava de arrumar as coisas para irmos ao colégio. A caminhada até lá foi boa. Aquiles e eu pudemos bater um papo gostoso e também nos exercitar fazendo quase uma hora de cárdio. Risos!

Nestas últimas semanas meu calendário tem ficado reservado para os encontros com as testemunhas referentes a minha pesquisa de doutorado. Nas condições atuais, é uma conquista eu ter conseguido a disposição e boa vontade delas para serem entrevistadas e compartilhar comigo suas lembranças e emoções. Escutar o que cada uma dessas pessoas viveu no Caracaço tem me deixado muito sensível. Cada história, cada ser humano – conhecidos ou desconhecidos – que perpassaram e ficaram fixos nas memórias dos sobreviventes com a vitalidade do sangue quente percorrendo nas veias. Um testemunho não vem apenas carregado de memórias, mas de sentimentos, raivas, dores, alegrias e tristezas revividos. E eu tenho tido o privilégio de testemunhar e acompanhar esses atos de reminiscência enquanto presentes.

Após deixar o Aquiles no colégio achei uma padaria que estava vendendo pão galego em preço regulado. Reparei nisso porque na entrada havia uma fila mais ou menos longa. Eu havia marcado o encontro com o senhor Freddy às 10 horas, então tinha tempo suficiente para ficar na fila e comprar o pão para ter em casa. Fora da fila, uma senhora olhava para as outras pessoas em atitude de espera. Ela observava, avaliava e eu percebia que alguma coisa estava acontecendo com ela. Ela se aproximou e me perguntou com a voz muito baixa e um pouco envergonhada:

–Bom dia, moça. Por gentileza, você poderia me doar um pão?

–Claro, senhora! Fique aqui comigo na fila e aí você me acompanha para comprar o pão. Pode ser?

Enquanto a fila avançava, a senhora me falava que ela não era mendiga e que se sentia desconfortável pedindo comida para os outros. No entanto, ela e a sua filha, que a esperava em casa, estavam com muita fome e ela precisava levar alguma comida para casa.

–Fique tranquila, senhora, que nestes tempos muitos estamos na mesma situação e, se a gente tiver para compartilhar, a gente compartilha.

Peguei os pães, dei um para ela e o outro o botei na bolsa que sempre levo para guardar as compras. Saí da padaria constrangida e imaginando a situação da senhora. Enfim… Fui caminhando até o lugar que marquei com o senhor Freddy. Ele trabalha numa litografia e como não pode se afastar do trabalho, perguntou se eu teria problemas de nos encontrarmos ali.

Assim que cheguei, Freddy me apresentou ao seu chefe e levou-me até o cantinho em que faz as provas de cor e as artes das impressões. As máquinas faziam barulho, mas não atrapalharam a nossa entrevista. Freddy começou falar e me levou a uma viagem no tempo, cheia de emoções fortes nas quais eu percorria as ruas da favela em que ele morava na época do Caracaço. Eu acompanhei seu relato até sentir a sua coragem, sua impotência, sua dor. Num momento, ele fez uma pausa, tentando pegar fôlego. Eu olhei nos seus olhos, enchidos de lágrimas, apertei sua mão e perguntei se ele queria continuar me contando. De imediato ele mudou o seu ânimo e me respondeu:

–Vamos continuar sim, minha menina. Esta memória precisa sair do esquecimento e ser compartilhada. Vamos lá.

Nesse momento eu não sabia muito como reagir, só pensava no privilégio de viver esse momento com ele e da sorte por ele confiar em mim. Quanto admirei a sua coragem para falar das suas lembranças. Tratava-se, sem dúvida nenhuma, de um ato político de resistência.

–… Ainda não eram as quatro horas da tarde e nós jogávamos dominó numa mesinha em frente da casa. – Conta Freddy. – Uns funcionários do Exército que estavam perdidos passaram pela nossa rua, nos perguntaram como eles podiam chegar à avenida e nos ordenaram a entrar nas nossas casas. Depois deles irem embora, escutei um disparo e fiquei gelado. Alguma coisa feia acabava de acontecer e eu não consegui ficar quieto. Desci correndo pela rua e alguém que vinha embaixo me pegou e me falou: “Cara, seu irmão, seu irmão!”.

Desde esse dia a raiva, a impotência e a lembrança da imagem do seu irmão assassinado pelo exército acompanham Freddy o tempo todo.

Acabamos a entrevista, Freddy me acompanhou até a entrada da litografia e ali nos despedimos com um abraço parceiro no qual trocamos um turbilhão de emoções. Saí dali levando comigo a imagem dele se despedindo com aquele sorriso que só a serenidade de quem tem vivido coisas difíceis pode oferecer.

Enquanto caminhava, lembrava as testemunhas, à Guara, à Robzaida, todas mantendo viva a memória dos seus mortos e dos mortos anônimos. Sorri quando lembrei a visita da Robzaida, do Juancho e do filho deles na minha casa. Nesse dia eles foram me visitar para nos dar um abraço e aproveitar de pegar o testemunho da Robza, cuja mãe foi assassinada naqueles dias do Caracaço. O dia anterior eu havia preparado, para os almoços da semana, arroz misturado com um peito de frango que havia podido comprar com o dinheiro da minha bolsa de doutorado. Eles levaram a suas marmitas com arroz, feijão preto e troços de mortadela e eu dei ao filho da Robza as poucas peças de frango que havia em meu arroz. Foi um dia lindo e emotivo em que não só compartilhamos o almoço, mas a memória e aquilo que nos mantém vivos.

 

 

 

[vc_row][vc_column][vc_text_separator title=”SOBRE A AUTORA” color=”juicy_pink”][vc_column_text][authorbox authorid = “14”][/authorbox]

Related posts

Uma cerveja

Livia Vargas González
6 anos ago

Kassandra

Livia Vargas González
5 anos ago

Cartões

Livia Vargas González
6 anos ago
Sair da versão mobile