No interior de algum lugar, Rosa e Miguel assistem, do sofá, ao Jornal Nacional. Uma casinha amarela, simples e aconchegante. Casados, casados amarelinhos, em casa, na igreja e no papel, assistem ao jornal. Miguel é professor de geografia, Rosa é cuidadora de crianças em uma creche. Ela trabalha na creche há mais ou menos quatorze anos, tempo de seu casamento com Miguel. Também há quatorze anos trabalha em casa. Já há algum tempo ela perde o sono ao pensar sobre isso, um incômodo difuso toma conta, pensa sobre essa condição estar quase debutando junto com sua relação. Há muito o casamento roda praticamente no modo automático. Miguel enquanto agulha, Rosa enquanto vinil. Os dois carregam apenas leves traços do que eram quando se conheceram, e a única coisa que continua como sempre é a vida de Rosa, que – entre algumas distrações – sai do trabalho na creche para o trabalho em casa e vice-versa. Isso, de uns tempos pra cá, começou a ferroar-lhe. Dentre os ferrões que ela sente que se acomodam entre suas costelas quando se deita e mira o teto, um lhe espeta um pouco mais agudo: as cuecas do marido. Não lhe saem da cabeça, nem das mãos. Quatorze anos nessa casa, quatorze anos lavando essas cuecas: mijo, porra, merda, sangue, eu e o tanque, pensa enquanto vê a névoa de seu sono se dissipar ao contato com o ventilador de teto. Rosa fazia em casa tudo o que ela aprendeu que deveria fazer. Miguel vez ou outra lavava um prato, o que era até mais do que ele aprendeu que deveria fazer. Rosa nunca se acostumou, nem mesmo depois de quatorze anos, e agora isso vinha lhe incomodando cada vez mais. Da cama, ela olhava pro teto e via as cuecas no varal, limpinhas, podia sentir o cheiro de sabão.

Isso já havia sido motivo de alguns desentendimentos entre o casal. Rosa tentou, por vezes, problematizar a sua condição doméstica. Miguel, sempre cansado e sem tempo para essas falsas questões, derretia a discussão. São só cuecas, respondia impacientemente. Rosa chegou a gritar e berrar, talvez fosse um problema de volume, Miguel batia a porta e o casamento seguia na paz dos manicômios. Rosa matutou sobre aquela situação dia e noite, por meses. Levava muita coisa em consideração: a rotina cansativa de Miguel, a vida desgraçada que ele havia levado até ser professor e o quanto ele era importante em sua vida, mas isso servia apenas como um breve anestésico tópico para o incômodo permanente. Ela estava convencida, não havia nada que justificasse a sua condição. Ora, se ele trabalhava fora de casa, ela também. Se ele tinha problemas no trabalho, enquanto professor, ela os tinha em dobro enquanto cuidadora de uma creche ― e dona de casa. Rosa dava voltas, pensando. Pensava em saídas. Não queria se separar. Tentou por vezes tirar aquelas ideias da cabeça, a fim de salvar seu casamento, mas toda vez que via uma cueca suja, tudo aquilo voltava com força maior ainda. Ela executava tarefas bem mais cansativas e desgastantes do que lavar cuecas, tanto em casa quanto na creche, mas foram as cuecas, depois de muito, a corrente de ar quente que faltava para fazer daquele morno temporal um tornado. Sentindo o tornado se aproximar, Rosa se afundou nos livros. Ela precisava de uma válvula de escape, outras realidades, já que até seus sonhos vinham se tornando monotemáticos.

Mais um dia daqueles. Ao se deitar, começou a pensar, mais uma vez, sobre seu casamento e a vida infeliz que vinha levando. Pensava como Miguel também parecia insatisfeito, mas não movia uma palha, e quando lavava um prato fazia questão de anunciar. A raiva de Rosa era imediata mas também retroativa. Quatorze anos. Rosa leu “O cobrador” e passou a esboçar algumas formas para o seu sentimento. Por mais que os dois estivessem insatisfeitos, era ela quem lavava a casa, o banheiro, o quintal e, de quebra, as cuecas. Ela seguia naquela vida, já que sair da vida é decisão muito decisiva. Mais um dia se passou, ordinário. No trabalho de Miguel, cada hora é uma hora. No trabalho de Rosa, cada hora são cinco, e como ela trabalha oito horas na creche e no mínimo três horas em casa, isso dá um total de mais ou menos cinquenta e cinco horas de trabalho por dia. Miguel descansa ao chegar em casa, Rosa – às vezes – o faz quando dorme. Deitaram-se. Quem ficou matutando dessa vez foi Miguel. As discussões com Rosa o incomodavam, e, mesmo quando ele a ignorava ou fazia pouco caso dos problemas trazidos, aquilo ficava de alguma forma lhe incomodando, não se dissipava, era como uma azia, mas uma azia que ele julgava não carecer de remédio.

Uma noite, excepcionalmente, Rosa adormeceu mais rápido que o marido. Sonhou. No sonho, ela estava deitada na grama, não era a grama do quintal de casa, apesar de ser o quintal de casa. Era uma grama fofinha, parecia um tapete, grama de rico. Fazia um sol forte e amarelo, mas mesmo assim o tempo estava agradável, o sol intenso não a queimava e não a cegava. Ventava moderadamente. As cuecas que outrora ela imaginava – e até via – ao se deitar, limpinhas e cheirosas no varal, sempre brancas, estavam lá. Ela, deitada na grama, mirava o céu sobre o varal e observava as cuecas balançando com o vento, branquíssimas. Um varal repleto de cuecas, dezenas delas, todas brancas. Rosa fechou os olhos por alguns instantes e sentiu o mundo leve, a paz, e o cheiro de sabão. Parecia mesmo um comercial de televisão. Só abriu os olhos depois de sabe-se lá quanto tempo, quando sentiu uma gota cair no seu colo. Quando se deu conta, as cuecas brancas estavam completamente imundas, sujas com alguma coisa que parecia ser uma mistura de terra e sangue, a gota que havia caído sobre seu colo era de sangue, mais gotas começavam a pingar. De alguma forma, Rosa identificou o cheiro do seu sangue naquele sangue fresco que gotejava das cuecas imundas. A brisa fresca se transformou em um vento frio. Começou a cair uma chuva bem fininha de pingos rosé. O sangue agora não pingava só das cuecas. Rosa permanecia deitada, impassível. A chuva foi engrossando rapidamente, as gotas de sangue que caíam do céu estavam se transformando em aparentes coágulos que se espatifavam com força contra seu rosto. Ainda assim, o céu continuava lindo, nada de nuvens e, afundada na grama, sentia que ela a envolvia como um útero. Abruptamente, um forte cheiro de sabão em pó invadiu seu olfato e seu paladar e tomou o lugar do cheiro de sangue fresco que ensopava seus sentidos. O sangue continuava pingando das cuecas no varal e a chuva caía, mas ela já não sentia o cheiro de sangue, só do sabão. Então limpou os olhos e percebeu que a chuva tinha voltado a ser de água. Água, sabão e amaciante. A chuva de sabão foi lavando as cuecas e o corpo de Rosa, bem lentamente, e ela ali, deitada, por horas. A grama, apesar da chuva, da espuma que ela trouxe e da brisa fria, continuava morna e aconchegante. O sol foi se escondendo e, aos poucos, no lugar da lua, surgiu o ventilador de teto, do quarto do casal, logo acima do varal e das cuecas. Rosa despertou.

Já era manhã. Aparentemente, o sonho tinha durado a noite inteira. Ela estava exausta e assustada. Arregalou os olhos e inspirou com fome de ar, como que para voltar a vida. Ao recobrar a respiração, notou um leve cheiro de sabão em pó, das roupas de cama, e um cheiro forte de sangue fresco. Não era o mesmo sangue do sonho. Não ouviu o ronco de seu companheiro. Sentiu um bafo quente muito próximo do seu rosto e, ao olhar pro lado, viu que a espingarda do marido repousava, ainda morna, em cima do seu travesseiro. Se assustou e levantou num pulo, quando viu o marido deitado na mesma posição em que tinha dormido, com um pequeno buraco na nuca, de onde parecia nascer tímido riacho de sangue. Ela, de pé, observou aquela cena por algum tempo. O tímido riacho começou a ficar um pouco menos tímido, era tempo de cheia. O sangramento começou a molhar roupa de cama. Rosa tentava respirar, acreditava ser uma brincadeira sem graça de seu subconsciente, dois pesadelos daquela natureza na mesma noite. Então se tocou e se sentiu, pisou forte no chão. Nos sonhos os socos nunca funcionam. Resolveu dar um soco nas costas do marido, o soco funcionou. Não era sonho. Tonta, respirou. Deitou-se novamente, ao lado do marido e ali ficou, paralisada, olhando para o teto e sentindo o cheiro de sangue fresco que tomava conta do quarto. Pouco tempo se passou. Não estava mais desesperada, exceto pelo fato de ter feito aquilo enquanto sonhava. Um estado inédito: misto de alívio, angústia, e culpa – mas sem desespero. Ficou deitada ali por uma hora, então o sangue começou a molhá-la e ela se levantou. Pela primeira vez não se sentia mais como espectadora da própria vida. Acreditava, de forma confusa, que havia tomado para si as rédeas da própria existência. Se levantou, apoiou a espingarda no canto da parede, empurrou o corpo do marido da cama e o deixou estendido no chão. Tirou a roupa de cama, encharcada de sangue, aproximou a trouxa do nariz e respirou bem forte esperando sentir alguma coisa. Ânsia de vômito. Levou a roupa de cama para o quintal. Lavou, na mão, a colcha, o lençol e as fronhas. Deixou as roupas de cama no varal e foi tomar um banho. Deixou-se demorar, tomou um banho de mais de uma hora, colocou a roupa que usava para limpar a casa e foi para a delegacia de polícia, que ficava a dez quadras de distância. Se entregou, arrasada e aliviada. Foi muito breve na declaração ao delegado. Alegou ter matado o marido em legítima defesa e disse que não precisava de advogado, ela mesma faria sua defesa perante o júri, se houvesse júri. O delegado a questionou sobre conflitos físicos e agressões passadas, ao que Rosa respondeu dizendo que isso jamais havia ocorrido. O delegado então considerou que ela não gozava de plena sanidade e não fez mais perguntas. Ordenou que os policiais a conduzissem até o presídio feminino e fossem até sua casa para apurar os fatos. Os investigadores não encontraram nenhum sinal de luta corporal na cena do crime e nem no corpo do marido. O local do ferimento também tornava mais improvável a hipótese de legítima defesa. Não havia denúncia prévia de agressão da parte da esposa contra o finado marido e jamais alguém da cidade presenciou algum desentendimento entre o casal. O fato dela ter tirado as roupas de cama e as lavado antes de se entregar intrigou os investigadores, que encontraram a cama e os travesseiros nus e as roupas de cama ainda molhadas e manchadas no varal.

Um mês se passou. Sua família não foi visitá-la. Miguel era muito querido por eles, Rosa fora transformada em um monstro. Durante esse mês, ela não ligou para ninguém e recebeu apenas uma visita, no terceiro dia, de uma amiga do trabalho, a quem pediu que trouxesse para ela um caderno e duas canetas, a fim de que ela escrevesse sobre o ocorrido e começasse a pensar como faria sua própria defesa no tribunal. Nos quarenta dias que se seguiram, Rosa rabiscava suas possíveis falas e as possíveis réplicas e tréplicas. Estava sozinha na cela, não tinha com quem conversar. Encheu o caderno com seus rabiscos. Durante toda sua vida não havia feito nada parecido, gostava de ler mas não tinha o hábito de escrever. Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso consideraria aquele um ato de legítima defesa, pensava. Carregava consigo só um arrependimento: ter vivido aqueles quatorze anos daquela forma. Era doloroso saber que tinha matado Miguel, mas ela não se arrependia, acreditava ter voltado a ser quem era antes do casamento. Algumas semanas se passaram, Rosa e o caderno na solitária. Por toda a situação, o encarceramento, a solidão, a alimentação do presídio, com a qual não estava habituada, suas condições físicas e emocionais se debilitaram e ela adoeceu pouco antes da data do julgamento. No hospital, recebeu a visita de uma advogada. Oi, Rosa. Meu nome é Helena e venho informá-la sobre o adiamento do seu julgamento para daqui a sessenta dias por conta do seu problema de saúde. Fui designada para fazer a sua defesa. Sei que você não quer uma advogada, mas é meu dever aconselhá-la que … Shhh .. Rosa sentou-se na cama e perguntou se era possível que fosse julgada sem estar presente, ao que a advogada respondeu que não era o ideal, mas que sim, era possível. Rosa então pediu que o julgamento não fosse adiado, já que estando presente ou não, estaria ausente, seria invisível. Ela não queria mesmo estar presente. Mas disse que só autorizaria a advogada a defendê-la se a defesa fosse baseada no que ela havia escrito nas páginas de seu caderno, que se encontrava na sua gaveta de pertences, na prisão. A advogada temeu, por um breve instante, pelo destino de Rosa, mas diante da determinação dela, cedeu. Afinal de contas, nada mudaria se o julgamento fosse adiado. Rosa iria, por contra própria, depois de sessenta dias, e faria a própria defesa, pensou Helena. Então a advogada foi até o presídio, recolheu as anotações de Rosa e foi para casa ver o que poderia fazer com elas. Ela tinha três dias até o julgamento. Se encontrou mais uma vez com Rosa, dois dias antes do julgamento, para conversar sobre suas anotações e tirar algumas dúvidas. Sem saber o porquê, Rosa estava confiante em sua absolvição, ao contrário de Helena, que queria traçar uma estratégia para tentar reduzir a pena dela. Chegou o dia do julgamento de Rosa. O juiz já havia sido avisado sobre a ausência da ré. Foi iniciado o ritual do julgamento. O promotor, considerando que tudo aquilo já estava decidido, leu a acusação mecanicamente perante os presentes: a advogada de defesa, um jornalista da cidade, alguns conhecidos de Rosa e Miguel, e o júri, composto por onze pessoas. Perguntou, então, se alguém teria alguma dúvida e passou a palavra para Helena. Bom dia a todos. Venho até o tribunal condicionada por uma exigência da ré de fazer a sua defesa baseada em seus próprios escritos na prisão e assim o farei. Lerei agora a última página do caderno de anotações de Rosa em sua defesa, da qual não tirei ou acrescentei nada, e não o faria ainda que fosse autorizada. “Não mereço a prisão. Não agora que consigo me imaginar livre depois de quatorze anos. Por quatorze anos eu vivi com um senhor chamado Miguel, professor e bom marido. Por quatorze anos Miguel foi meu senhor, ainda que jamais tenha me agrilhoado ou chicoteado. Miguel jamais sequer me ameaçou ou me acorrentou, mas era o meu senhor, sutil senhor da minha vida. Miguel entendia o mundo, era, de fato, muito inteligente. Nunca entendi como um ser assim, capaz de tanto elaborar, nunca lavou a própria cueca em quatorze anos. Nem a casa. Nem a louça. Nem as roupas de cama. Eu trabalhava na creche e em casa. Isso nunca pareceu incomodar meu senhor, pelo menos não o suficiente pra ele lavar as próprias cuecas. Como sabem os senhores e senhoras do júri, eu aleguei que fiz o que fiz em legítima defesa e mantenho minha posição. Eu poderia dizer que, por um momento, perdi a sanidade, que não sabia o que estava fazendo e quando me dei conta já havia feito, mas não. Não foi um ato premeditado, mas foi um ato consciente. Ora, se um homem, ao espancar sua companheira, seja lá por qual razão, é morto pela mesma durante a briga, não temos um legítimo caso de legítima defesa? Por que, senhoras e senhores, eu, ao por fim a quatorze anos de exploração doméstica – eu fiz as contas na prisão, são mais de cinco mil dias – matando meu senhor, sem requinte algum de crueldade, com apenas um tiro na nuca enquanto ele dormia, devo ser condenada? Existe alguma equação possível que nos ajude a calcular quantos anos de servidão doméstica representam uma porrada na cara, um espancamento ou um episódio de abuso? É possível ter a dimensão de quanto de mim morreu nesses quatorze anos? Do que eu poderia ter feito e não fiz? Eu não conseguia me ver livre daquela relação, não conseguia me imaginar fora daquilo e sim, nós nos amávamos! Agora que saí, que me libertei daqueles carinhosos grilhões, não acho justo ser condenada a ficar enjaulada por mais quatorze anos. Caso isso aconteça, ficarei profundamente triste, mas em paz e tranquila comigo. Eu pensei por vezes em terminar aquela relação, mas eu não tinha forças pra isso. Só me arrependo de não ter acabado o meu casamento de outra forma e me livrado disso há muito tempo. Não consegui. Por fim, reafirmo que não mereço a prisão e que, a não ser que meu sustento dependa disso, nunca mais lavarei uma cueca na minha vida.”

A advogada tinha a voz embargada ao final da leitura, parte do júri se emocionou com o texto de Rosa, o jornalista gravava tudo aquilo com os olhos arregalados para depois transcrever. O juiz decretou um intervalo de uma hora para a deliberação do júri. Na volta, todos de pé, um dos jurados entregou o papel com o veredicto ao juiz, que, de pé, leu: “Da acusação de homicídio doloso, declaro a ré, Rosa Barbosa Alves, inocente. Está acabado o julgamento.” A advogada não acreditava no que ela tinha acabado de ouvir. Ficou em êxtase. Rosa saiu do hospital de volta para sua antiga casa, e teve as acusações contra ela retiradas. Não a aceitaram de volta na creche onde ela trabalhava. Mesmo que houvesse sido absolvida, era uma assassina. O jornalista presente no julgamento dedicou certo esforço para que aquele episódio e seu resultado se tornassem conhecidos nacionalmente. Era um veredicto inédito e inesperado, as pessoas custaram a entender o que havia se passado. O caso de Rosa e Miguel virou notícia no Brasil inteiro e até em outros países. Rosa voltou para sua antiga casa, se desfez das roupas de cama e dos restos queimados de cueca do marido. Matutou por um bom tempo sobre como iria voltar à vida. Precisava de um emprego e acreditava que ninguém estava disposto a ajudá-la. Enviou currículos para vários lugares, creches, escolas, padarias, lojas, escritórios. Quando não foi ignorada recebeu respostas violentas. Procurou ajuda dos pais e eles simplesmente a ignoraram, assim como outros familiares e amigos, até mesmo sua ex-colega de trabalho que havia lhe comprado o caderno e levado para ela na prisão. Se envolver com Rosa, ajudá-la, ser visto com ela, era motivo de boatos e acusações, por isso até as pessoas que consideravam justa a decisão do julgamento a evitavam. Suas economias estavam perto do fim e ela, desesperada, começou a procurar por empregos informais, temia acabar na prostituição. A única resposta positiva veio de um casal de vizinhos dela, Mário e Cida, que tinham um filho adolescente. Propuseram que ela trabalhasse para eles por período integral e recebesse por meio período. Pegar ou largar. Rosa aceitou. Ganhava mal, mas tinha casa própria e o que recebia dava conta de suas despesas mais imediatas. Não encarava aquilo como algo definitivo. Se pegou tendo que lavar cuecas para viver. Não eram as do marido, não se tratava da mesma coisa, exercia um trabalho digno, mas a ironia da coisa lhe angustiava. Rosa, silenciosamente, amaldiçoava a existência. Conspirava contra o mundo ao som das cuecas cantando na esfregadeira. Não vai durar muito, não vai durar muito, não vai durar muito…

Ao voltar para casa, ligou a televisão e viu no noticiário internacional da noite uma mulher, cujo nome era Mirna, a ser entrevistada em uma delegacia, direto da Colômbia: “Parecía un día más normal. Tomé un baño, me puse el camisón y fui a fumarme un cigarrillo mientras mi marido veía el noticiero de la noche. Se terminó el cigarrillo, se terminó el noticiero y nos fuimos a acostar. Cinco minutos de cama e ya Ramón roncaba, mientras que yo, insomne, miré para el techo e vi una cuerda repleta de calzoncillos…”

 

 

 

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