Musicianas: a constituição de uma cultura musical no Brasil do século XIX e o papel das compositoras
A trajetória de Chiquinha Gonzaga foi, como sabemos, tema de diversas pesquisas em áreas como a História, a Música e a Sociologia. Para além da esfera acadêmica, seus feitos alcançaram o público também por meio de produções audiovisuais, livros e outras mídias que ampliaram o conhecimento sobre o que representa a sua autonomia para o desenvolvimento de toda uma cena emergente de compositoras. Carolina Murgel (2011) catalogou, em sua pesquisa de pós-doutorado, dados de mais de 7 mil compositoras brasileiras e os disponibilizou para consulta neste site. Do século XIX à contemporaneidade, elas apresentam-se como autoras de obras pertencentes aos mais variados gêneros, com destaque para a polca, para o choro e para a MPB.
Foi buscando uma chave de leitura significativa para falar de Chiquinha Gonzaga e pesquisando na seção da base de dados referente ao século XIX que me foi possível observar a notável quantidade de compositoras de polcas e de choros. Chiquinha, Ambrosina Saint-Brisson, Adélia Delmira Teixeira, Capitolina Álvares D’Araújo Gallo, Ernestina Índia do Brasil, Leopoldina Porto Carrera e tantas outras definidas enquanto compositoras de gêneros que figuravam então entre o erudito e o popular. Tal fato me levou ao questionamento acerca das origens e dos desdobramentos sociais desses dois gêneros musicais. Teriam a polca e o choro possibilitado maior visibilidade e alçado mulheres a um reconhecimento profissional até então não noticiado no país?
É de nosso conhecimento que as musicistas tenham se visto com a necessidade de lograr caminhos alternativos ou, ainda, de encarar e até dar preferência a estereótipos do que perder a sua liberdade de criação e de exercício de suas atividades fora do âmbito doméstico. Inseridas em um panorama impositivo de convenções sociais de gênero pensadas para restringir o acesso das mulheres a carreiras profissionais autônomas, tendiam a repercutir enquanto subversivas num sentido de rebeldia, de heresia e de errância. Gonzaga precisou, por exemplo, lidar com a sabotagem da sua família quando iniciou as vendas das suas músicas, pois havia se divorciado – de um homem que a agredia de diversas formas, mas, seguindo as convenções da época, saíra ileso da situação.
Nas pesquisas realizadas na Hemeroteca da Biblioteca Nacional e no acervo digital da Casa do Choro, o quantitativo de menções a autoras de polca e de choro remete, muitas vezes, a notícias pontuais sobre a publicação de partituras por alguma editora e às execuções de obras em eventos. Casos como os de Chiquinha Gonzaga, Beatriz Brandão e Amélia de Mesquita, em que se percebe uma constância de atuação e um reconhecimento mais explícito por parte dos veículos de comunicação e do público são menos recorrentes. Isto sinaliza, no entanto, outra observação relevante: em ambos os casos, de vasta e de pouca visibilidade, a semântica utilizada nas reportagens ou notas tende a não apresentar tantas críticas negativas ou depreciativa, exceto em casos em que há componentes sociais polêmicos, como o conhecimento público de um divórcio ou afastamento da família em prol da autonomia profissional apareciam. A diferença entre as abordagens das publicações quanto a obras pictóricas e obras musicais é ainda um assunto pouco debatido na historiografia e pode apontar para um estudo acerca de uma possível complexidade de sociabilidades brasileiras muito interessantes.
O primeiro gênero em que se observa o despontamento das compositoras brasileiras é o erudito, no qual se incluem a valsa, a música barroca e a sacra, e as atividades de regência de orquestras – que, inclusive, também apresentam grande número de mulheres protagonistas e poderia viabilizar um estudo específico acerca da formação em Regência no Brasil sob a perspectiva de gênero. As maestrinas são, durante boa parte do século XIX, as mais mencionadas.
Com a chegada e a popularização da polca, o foco passará a ser nas compositoras deste gênero. Originada da Boêmia (atual República Tcheca), a polca (ou polka) se disseminou rapidamente pela Europa e pela América, juntamente com valsa. No Brasil, o seu sucesso foi grande entre a elite e as classes mais altas da sociedade. Do outro lado da situação, na chamada cultura popular, o mesmo acontecia com o lundu, gênero de origem afro-brasileira que ganhava as ruas do mesmo Rio de Janeiro. O que ocorre é que a polca esteve dentre os gêneros ensinados às mulheres na educação musical doméstica e, por apresentar grande potencial de visibilidade e fruição, tornou-se uma das responsáveis pela projeção de diversas compositoras até então. É importante pontuar, contudo, que a definição de polca, dada a mistura do gênero boêmio com os de origem brasileira, tomou várias subdivisões como a polca-tango, a polca-lundu e o maxixe. Nessa esteira, o choro despontaria da união entre a polca e o lundu como o próximo gênero a se tornar extremamente conhecido pela sociedade brasileira. Ambos foram, a polca e o choro, responsáveis pela popularização do piano, instrumento definido como erudito – e aqui destacamos a importância das compositoras supracitadas e de outros músicos que se aventuraram a fundir o erudito/clássico com o popular e a quebrar com tais divisões culturais que se refletiam em práticas sociais de discriminação.
Voltando à cartografia elaborada por Carô Murgel, observamos que os fins do século XIX e, sobretudo, o caminhar do século XX apresenta uma progressão excepcional no quantitativo de compositoras visibilizadas no Brasil. É nesta mesma época que ocorre a abertura dos cursos superiores para mulheres, em meados de 1891, e um aumento de espaços de sociabilidades artísticas no Rio de janeiro – fatos potencializadores desta emergência. Foi possível concluir, a partir das leituras iniciais das fontes encontradas, que dentre as origens sociais ligadas às trocas culturais entre países e às circulações de gêneros musicais, bem como as suas assimilações, destaca-se, ainda, a atuação de compositoras e musicistas no que diz respeito à popularização da polca, do choro e de outros gêneros. Neste interim, reforça-se a necessidade de estruturas e de mudanças que possibilitassem a consolidação profissional dessas artistas, que já vinham apresentando, com autonomia, o seu alto potencial criativo e ajudando a moldar perspectivas culturais com maior enfoque na diversidade brasileira.
REFERÊNCIAS:
Acervo digital Chiquinha Gonzaga.
Cartografias da Canção Feminina, por Carolina Murgel. Acesso em 02 de maio de 2023.
MURGEL, Ana Carolina Arruda de Toledo. A canção no feminino. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, Julho/2011.
ROSA, Luciana Fernandes; MODESTO, Márcio; BERG, Silvia Maria Pires Cabrera. “Naquele tempo, tudo era polca”: reflexões sobre a multiplicidade de designações de gêneros na formação da música popular urbana brasileira. In: Anais do VIII Simpósio Internacional De Musicologia (Emac/Ufg). Pirenópolis, 17 a 21/06/2018.
Créditos na imagem: Reprodução: Mostra resgata origem negra da maestrina Chiquinha Gonzaga. Veja. (Foto/Dedoc).
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Paula de Souza Ribeiro
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